Por Bruno Dominguez. Fonte: Radis.
Em 2017, 70 trabalhadores e trabalhadoras rurais sem-terra, indígenas, quilombolas, posseiros, pescadores, assentados, entre outros, foram assassinados em conflitos no campo — o maior número desde 2003 (73). O dado é da Comissão Pastoral da Terra (CPT), organização ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) que desde 1975 registra os conflitos que envolvem os trabalhadores do campo e denuncia a violência por eles sofrida. Entre 2004 e 2014, eram por volta de 30 mortes ao ano [veja na tabela]. A partir de 2015, houve um crescimento brusco, passando para 50 (2015), 61 (2016) e 70 (2017). O Pará lidera o ranking macabro, com 21 assassinatos, sendo 10 apenas no Massacre de Pau D’Arco — em 24 de maio de 2017, uma operação policial terminou na morte de 10 camponeses que ocuparam a Fazenda Santa Lúcia no dia anterior. Bahia, Mato Grosso e Rondônia também tiveram massacres [quando três ou mais pessoas são mortas na mesma ocasião].
“As mudanças de governo no Brasil e o processo de desconstitucionalização levam ao uso de mais violência, a mais pressão sobre quem está na terra”, avalia Ruben Siqueira, um dos coordenadores da CPT. O relatório completo “Conflitos no Campo Brasil” não foi divulgado na data costumeira, a semana do 17 de abril [Dia Internacional de Luta Camponesa, em memória aos trabalhadores rurais sem-terra assassinados na Curva do S, em Eldorado dos Carajás, Pará, em 1996], pois a Secretaria Nacional da CPT, situada em Goiânia (GO), sofreu seguidos ataques hackers, direcionados a setores estratégicos, que forçaram a limitação do funcionamento de seus servidores. A previsão é de que até junho outros dados sobre violência no campo estejam disponíveis.
O número de assassinatos em conflitos no campo se manteve estável entre 2004 e 2014. Em 2015, porém, houve um pico e, em 2017, chegou-se a um recorde. A que se deve esse aumento recente?
Tem a ver com o que chamamos de “mercadorização da terra”, a visão da terra como uma ativo econômico importante. Depois da crise do capital financeiro, passou a haver uma procura desesperada por terras e por qualquer base real de geração de valor que sustente a banca do capital financeiro. Interpretamos que as mudanças de governo no Brasil e o processo de desconstitucionalização têm a ver com a imposição do negócio da terra. Na ponta, isso leva ao uso de mais violência, a mais pressão sobre quem está na terra. O povo da terra fica se equilibrando em corda bamba enquanto o negócio da terra vai avançando.
O que seria esse processo de desconstitucionalização?
Houve o emperramento da Reforma Agrária e do reconhecimento de terras indígenas e quilombolas, a desregulação do licenciamento ambiental; a legislação sobre comunidades tradicionais avançou muito pouco. Um exemplo: o Decreto 4.887 foi editado em 2003 pelo ex-presidente Lula para regulamentar o processo de identificação e titulação das terras ocupadas por remanescentes dos quilombos. O partido Democratas (DEM) entrou com Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) no Supremo Tribunal Federal em 2004, pedindo a revogação, por considerar que só deveriam ser tituladas terras que já estivessem em posse de indígenas e quilombolas na época da Constituição de 1988. O processo ficou parado até 2012, quando então foi iniciado o julgamento. Somente em fevereiro de 2018, o Supremo declarou a validade do decreto, garantindo a titulação das terras. Foi uma vitória, mas não adianta garantir uma lei que na prática não vai ser implantada por esse governo ilegítimo, mancomunado com o pior parlamento da história e com um Supremo que age em acordo. A Fundação Palmares titula as terras, mas a parte mais difícil, a desintrusão [etapa final do processo de demarcação de uma terra, medida legal tomada para concretizar a posse efetiva a um povo, por meio da retirada de eventuais outros ocupantes], não acontece porque seriam mais terras fora do mercado, fora do alcance de mineradoras ou empresas de geração de energia eólica.
Como isso se reflete na violência no campo?
As comunidades tradicionais são entraves para o capital financeiro, e um dos recursos para impedir seus direitos é a violência, especialmente aquela direcionada às lideranças. Em 14 de abril, o líder quilombola Nazildo dos Santos Brito [de 33 anos, da comunidade de Quilombo Turê III, na divisa dos municípios de Tomé-Açu e Acará, no nordeste do Pará], foi encontrado morto. [De acordo com a polícia, não foi levado nenhum pertence da vítima, o que reforça a tese de execução]. Trata-se de uma violência “pedagógica”, com extirpação sumária de quem se coloca como obstáculo. A violência visa a cabeça e desmantela a resistência. Nazildo estava no programa de proteção a testemunhas, mas o Estado não cuidou de sua segurança.
Além da execução de lideranças, o relatório denuncia ainda quatro massacres.
Houve casos nos estados da Bahia, Mato Grosso, Pará e Rondônia. Em 16 de julho de 2017, foi assassinado com 10 tiros na cabeça Lindomar Fernandes Martins, liderança de Iúna [no município de Lençóis, na região da Chapada Diamantina, na Bahia, comunidade em processo de reconhecimento e regularização como remanescente de quilombo], uma pessoa muito amada por todos. Menos de um mês depois [em 6 de agosto de 2017], mais seis quilombolas da mesma comunidade também foram matados [Adeilton Brito de Souza, Amauri Pereira Silva, Cosme Rosário da Conceição, Gildásio Bispo das Neves, Marcos Pereira Silva e Valdir Pereira Silva]. Muita gente foi embora de lá com medo, a escola fechou, chegaram pessoas estranhas. O tráfico de drogas entrou, até como uma estratégia para expulsar os remanescentes. O massacre é a multiplicação da eliminação sumária da população. Não se trata só de tirar a resistência da frente, mas de fazer repercutir, para servir de exemplo do que pode acontecer com todos.
A Polícia Civil identificou o massacre como sendo relacionado à disputa pelo controle da venda de drogas na região.
No caso de Lindomar, primeiro levantou-se a hipótese de latrocínio [roubo seguido de morte] ou mesmo crime passional. Depois do massacre dos seus companheiros, a Polícia Civil apontou o tráfico como motivação de todos os assassinatos, apesar de haver indícios de envolvimento com venda de drogas de apenas um. A condução do inquérito descartou as demais linhas de investigação, principalmente no que se refere à disputa fundiária antiga com empresas do agronegócio. São várias as formas de descaracterizar, eliminar, invisibilizar. É um processo muito terrível.
Ainda existe a suspeita de ter havido um quinto massacre, ainda não confirmado?
Sim, há a suspeita de ter ocorrido um massacre de indígenas isolados, do Vale do Javari, no Amazonas, conhecidos como “índios flecheiros”. Pelas denúncias, seriam mais de 10 vítimas. Mas o Ministério Público Federal no Amazonas e a Fundação Nacional do Índio (Funai) não chegaram a um consenso, e o caso não foi inserido no relatório.
Dos 1.438 casos de conflitos no campo em que ocorreram assassinatos registrados pela CPT entre 1985 e 2017, apenas 113 foram julgados. Isso representa 8%.
A impunidade é um dos pilares mantenedores da violência no campo. Remonta à desvalorização do pequeno trabalhador rural. É uma pessoa vista como sem valor, que pode ser eliminada, cujo direito não se reconhece. Até o direito a um inquérito policial bem feito para apurar a sua morte ele não tem. A Justiça não existe para pós-escravos e novos escravos. A cultura contemporânea tem muito da cultura do passado — e terrivelmente tem a ver com esse presente futuro, de fascismo social, de desregulamentação do Estado para que o mercado domine tudo. A impunidade é parte desse processo.
Além dos assassinatos, há a criminalização de lideranças, como no caso da prisão do Padre Amaro, da Paróquia de Santa Luzia de Anapu, da Prelazia do Xingu, situada no estado do Pará. [O sacerdote, amigo e sucessor da missionária Dorothy Stang, assassinada a mando de fazendeiros em 2005, foi preso em 27 de março].
Essa estratégia também não é novidade, mas há multiplicação dos casos. A história do Padre Amaro remonta à da própria Dorothy, que tinha igualmente muitos processos na Justiça. Isso, porém, não foi suficiente para demovê-la e desmoralizá-la — e por isso acabou sendo assassinada. [A Polícia Civil de Anapu atribui a Padre Amaro a prática de uma série de crimes: ameaça, extorsão, assédio. Para a CPT, o que chama a atenção é a ausência de provas no processo. Há apenas depoimentos de fazendeiros que compareceram à delegacia de Anapu para acusar o pároco por supostas ocupações de suas terras e outros crimes.] No caso de Amaro, a via é a da desmoralização, principalmente com a acusação de assédio sexual sem nenhuma prova, que tem um impacto na comunidade. Ele já teve negados habeas corpus em duas instâncias, e mesmo que consiga a liberdade estará estigmatizado.
O relatório de conflitos no campo não foi integralmente publicado devido a invasões ao banco de dados da CPT. Pode-se avaliar que este é um novo tipo de intimidação?
O banco de dados de conflitos no campo foi invadido por hackers que buscavam nosso levantamento de onde acontecem. Essa informação poderia ser usada, por exemplo, para o mercado de terras: valorizar ou desvalorizar uma área. Além disso, o ataque pode ter sido sim para inviabilizar a publicação de dados da instituição. Tudo isso são faces da mesma situação problemática: a valorização da terra e a desvalorização de quem está na terra.
Quais são as perspectivas para as disputas no campo?
Eu me pergunto para que serve o Estado. Estamos em momento muito difícil, que talvez a gente não tenha vivido nem mesmo na ditadura. Naquela época, ao menos sabíamos que não tínhamos liberdade de manifestação, então criou-se um movimento de resistência que conseguiu abertura lenta e gradual até chegar a um patamar mínimo de estado de bem-estar social. O contexto atual é de intolerância, fascismo, polarização, restrição de direitos. Não só na política, mas no ponto de ônibus, no restaurante, na fila do cinema. É um período muito complicado, talvez como nunca tenhamos vivido. Padre Amaro, se liberto, estará seguro? Ou acontecerá com ele o mesmo que aconteceu a Nazildo?