Acesse o Caderno de Conflitos no Campo Brasil 2023

CPT BAHIA

O momento histórico e o povo de Deus

Há alguns meses o planeta foi surpreendido por um desconhecido coronavírus que tem assustado e silenciado o mundo. Tempos atrás era inconcebível pensar em um isolamento ou afastamento social nos moldes dos que estamos vivendo ultimamente e sem perspectivas de normalidade. Pelo menos é o que ouvimos dos profissionais de saúde em nível mundial.

Tudo o que construímos e criamos se tornou frágil e supérfluo, exceto a casa, nosso lar, ainda que, para ter uma boa segurança, houve necessariamente mudanças de hábitos como higienização mais rigorosa. Foi um mudar- se de vida por completo, por mais que pareça muito estranho, porém, de extrema necessidade para o momento.

Com a ânsia e a grande ganância em busca da construção do bem estar a todo custo e manutenção de um sistema capitalista selvagem e faminto, destruímos e poluímos o planeta. Adoecemos a terra. Como afirmou o papa Francisco em sua mensagem a Roma e ao mundo: “Continuamos com guerras, pobreza, não ouvimos o grito do planeta Terra. Pensávamos que poderíamos continuar saudáveis em um planeta doente”. Para estarmos bem é necessário que a casa esteja saudável, mas não tivemos uma consciência do cuidado para com a nossa casa comum.

Entendemos que a história da humanidade foi marcada por desafios que levou o povo muitas vezes a perder a esperança ou repensar a forma de vida de outrora. Olhando o percurso do povo de Deus, na perspectiva bíblica, podemos observar quantos desafios enfrentou ao longo de sua história: exílio, escravidão, guerras, conflitos internos, pragas, quebra de aliança com Deus, mas algo muito importante sempre esteve com eles, a presença de um grande líder, que sabia conduzir o povo em todas as adversidades. Ao pé da montanha sagrada o povo construiu um bezerro de ouro e enfraqueceu o pacto que fizerem com Deus e levou Moises à fúria. Mas ele, como um grande líder não desistiu da luta e do sonho almejado.

No exílio da babilônia, em muitos momentos o povo foi obrigado a cantar seus cantos para animar os inimigos, como nos relata o Salmo 137: “Nos salgueiros de suas margens penduramos nossas harpas. Lá, os que nos exilaram pediram canções, nossos raptores queriam diversões; cantam para nós um canto de Sião”.  O povo chacoteado, humilhado, vai tentando reorganizar as suas lutas a cada dia. Buscavam sempre reconquistar as suas terras.

Com a vinda do mestre Jesus, o grupo dos mais vulneráveis daquela sociedade fortaleceu a esperança e eles acreditaram que tinha chegado um líder capaz de libertá-los, dando-lhe vez e voz, mas o líder esperado e aclamado por todos foi parar numa cruz. Foi a pior, mais dolorosa e humilhante de todas as mortes. Foi julgado e morto cruelmente como o pior dos assassinos para a época. Mais uma vez a esperança na comunidade de Jesus foi abalada. Mas eles não desistiram.

Na nossa sociedade muitos continuam sendo torturados e humilhados pelo sistema opressor e operante que crucifica e mata inocentes, sejam eles/as crianças, jovens negros das periferias, mulheres, trabalhadores, comunidades tradicionais, indígenas e muitos outros. Muitos são colocados na cruz na tentativa de matar a esperança e o entusiasmo das lutas em busca dos direitos e da defesa da vida, em todas as dimensões. Situação tão clara nestes tempos de pandemia em que se exigem o recolhimento e o cuidado para não contrair o coronavírus, mas os donos dos mercados saíram às ruas pedindo a saída da população trabalhadora e vulnerável a exposição no trabalho. O isolamento forçado nos últimos meses para conter a proliferação do vírus que assola todo o planeta e o nosso país, e com atitudes de muitos gestores do Brasil faz nos sentir desolados e desapontados com a forma de fazer a política. Mas não é hora de desistir.

Sentimos como os discípulos de Emaús narrado no evangelho segundo São Lucas, 24, 13 – 35. Ao saber da morte de Jesus dois discípulos quiseram voltar para um povoado chamando Emaús, e seguiram a estrada tristonhos, abatidos e sem esperança. Acreditavam que aquele homem era capaz de restabelecer a paz em Israel, mas teve uma morte de cruz. É como muitas vezes nos sentimos, desamparados ou descartados nesta cultura de inversões de valores. O ser humano passou a ser pensado ou valorizado pelo que tem, e não pelo ser. Jesus valorizava a pessoa por inteiro, sem distinção. Principalmente os mais necessitados e excluídos, que muitos não consideravam nem como gente. Jesus se fez próximo deles.

Jesus é condenado e morto por romper paradigmas. Um pequeno exemplo é a descentralização do encontro com Deus, especificamente no templo, Ele faz da casa o lugar do encontro e propagação do reino. Jesus adentrou em casa de pecadores de todos os tipos e pregavam acima de tudo o amor, o perdão, inclusão e a misericórdia. Não condenou ninguém.  Hoje em tempos de Covid-19, quando estamos impedidos de visitar e frequentar os “sagrados” templos, a casa e as redes sociais são os lugares reais do encontro com Deus, e da partilha da fé. 

Queremos crê, que a vivência destes dias, mesmo que nos trouxe preocupações e exigiu uma série de cuidados e custou um afastamento das pessoas, precisa nos ajudar a manter viva a esperança por dias melhores para as nossas comunidades.  É necessário engrossar as nossas lutas em prol da vida e da justiça para todos/as. O povo de Deus, mesmo diante das adversidades e desafios enfrentados, sempre se recompôs e seguiu o seu caminho. Jesus dependurado no alto da cruz derramando o seu sangue é vitoria para os cristãos. Ele não parou na cruz, ressuscitou, para dar vida ao mundo. O episódio da cruz é preciso ser entendido como denúncia de todos os crimes e injustiça cometidos também em nosso tempo. “Jesus não morreu em vão”. (Carta de Paulo aos Gálatas 2, 21) Morreu para a libertação do seu povo. Libertá-los, de um sistema de morte, mesmo que lhe custou a vida.

Portanto, que todos nós tenhamos ânimo de seguir lutando com coragem e esperança. Refazendo conjuntamente um novo caminho. É preciso refletir o momento atual com ânsia de mudança. Buscando uma nova normalidade.

Texto: Nilson Ladeia – agente da CPT Sul Sudoeste/BA

Gostou desse conteúdo? Compartilhe