As questões que permeiam a matança do povo negro, no Brasil, por vezes se passam no imaginário social como algo irrelevante, principalmente sob a perspectiva a qual denota que não há racismo no país ou ao menos que uma modalidade conhecida como racismo “Nutella”, como diria o presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, que tem por finalidade combater as formas de opressão racial existentes no país. Esse negacionismo, no entanto, nos coloca em xeque, principalmente, quando falamos em genocídio negro, afinal de contas, do que estamos falando? Sangue? Ou a morte de uma cultura, que por milênios é encarada por uma suposta supremacia branca como uma mancha no planeta que seria feita para sustentar os diversos ambientes de poder e privilégios, reduzindo os negros à subserviência?
Primeiramente, vale lembrar que no ponto de vista social, sabe-se que a mudança da estrutura econômica, ao longo dos séculos foi proporcional às transformações nas relações de poder. O expansionismo europeu oceânico afora foi o marco para uma das principais mudanças no universo capitalista, desigual e predatório, pois, o pensamento de obtenção e acúmulos de riqueza sempre foram metas a serem alcançadas pelo empreendimento mercantilista da expansão marítima, no século XVI.
Apesar de ser contada, em muitas situações, como uma aventura vivida pelos exploradores e o “descobrimento” de uma nova terra, o terror é mascarado pelos autores brancos, principalmente no período de construção identitária brasileira. E pasmem, o índio da primeira geração do romantismo era branco, sintetizando assim o mito do “bom selvagem”. Anos mais tarde, a rota transatlântica tornou-se o caminho da morte, da desigualdade, da violência e objetificação do negro, apesar de trágico, os efeitos duram até agora em todos os espaços de convivência do povo brasileiro, afinal de contas, dizem as más línguas (diria perversas), que morrem mais negros porque a maioria da população brasileira é negra, embora o quantitativo seja uma verdade, seria esse o motivo?
Diante desse contexto histórico é mais que evidente que as diversas formas de violência contra o negro vão além da violência física. Dos 60 mil assassinatos por ano mais de 50% são cometidos contra a população negra. Giuliano Da Empoli, jurista Italiano, em sua obra “Os Engenheiros do Caos” (2019), afirma que a construção do imaginário social faz parte de um orquestramento que mantém a estrutura de privilégio de diversos grupos e, para isso, usam da disseminação de notícias falsas com o tom de negatividade, convidando a população a reagir contra toda a construção de luta popular, parece algo muito familiar, não? Assim, se garante a manutenção do status social da elite brasileira a possibilidade de igualdade social continue como uma utopia.
Essas são questões basilares para às discussões raciais, pois, se houver igualdade racial, do ponto de vista social, político e econômico, por exemplo, não se trata apenas de redução de lucros, mas de não conviver nos mesmos espaços, compartilhar da mesma comida, ouvir a mesma música e frequentar espaços acadêmicos em coexistência. Mas o que tudo isso tem a ver com genocídio, como assim? Falamos de igualdade, de desigualdade, de escolaridade, até agora, nada sobre sangue derramado. Talvez esse seja o pensamento daqueles que foram ofuscados pela desinformação programada na era do silício, em meio às redes sociais, prossigamos.
Do ponto de vista jurídico, no código penal, o genocídio é tipificado, principalmente da intenção do agente em exterminar determinada etnia, raça ou grupo. Dessa forma, no Brasil, segundo o mapa da violência, elaborado pelo instituto SANGARI, um negro tem cinco vezes mais chance de ser assassinado e isso significa que a maioria da população negra está em condições sub-humanas, vivendo da economia informal e exposta as mais diversas formas de violência. Essa situação reflete nos índices de homicídio e a cor. Não adianta dizer que uma estrutura perfeita é alcançada a partir do mérito individual quando, após a abolição da escravatura, a população, teoricamente liberta, não teve seus direitos civis reconhecidos, foram educados ou inseridos no mercado de trabalho. O século XIX é um dos mais importantes para compreender a face das dinâmicas raciais, a realidade brasileira fora construída através dos cortiços, que hoje são as favelas, dominadas pelo crime organizado. O que aparentemente seria uma escolha deliberada, como o ingresso ao crime, é muito mais do que isso.
A autora negra Carolina Maria de Jesus, em seu diário, “Quarto de despejo”, afirma que a favela é o quarto de despejo das elites brasileiras, ambiente esquecido e ignorado pelo Estado. Se as condições mínimas que permeiam o índice de desenvolvimento humano são ignoradas e a exposição de fatores negativos como a violência urbana torna-se regra. Esse grupo está morrendo sob a omissão do Estado e, da definição de crime, na teoria da atividade, a omissão encaixa-se perfeitamente nesse quesito. Assim, é evidente a omissão e cumplicidade do Estado brasileiro com o extermínio da população negra.
Os níveis de violência e violações, nos últimos dois anos têm assustado a todos nós. Nos Estados Unidos, ocorreu a morte do George Floyd, despertando uma série de onda de protestos e revoltas em todo mundo. No Brasil, milhares de negros são assassinados diariamente pela polícia, são abordados de maneira violenta, tem suas casas invadidas em operações policiais sem questionamentos. Não tenho lembranças de ver abordagens policiais em áreas nobres seguindo esse padrão de tapas no ouvido, socos e palavras de cunho ofensivo. O filósofo e jurista negro, Silvio Almeida afirma que tudo isso é parte de uma estrutura sólida e cheia de meandros, assim, intitulando sua obra como “Racismo Estrutural”. Um dos pontos abordados pelo autor é que nenhum fato é isolado, que as questões do genocídio negro são como um empreendimento realizado pelo capitalismo e isso tem a ver para além da violência física. Subjugar um grupo exige uma estrutura ideológica que, de alguma forma, justifique as ações perpetradas para que o objetivo final, a extinção, se concretize.
Um exemplo de como funciona a violência simbólica é o atual cenário, a pandemia do novo coronavírus, que trouxe à tona a desigualdade de maneira estarrecedora. A maioria da população negra do Brasil não tem condição de seguir as recomendações da Organização Mundial de Saúde, o “fique em casa” é privilegio de poucos. Sabemos que 75% dos trabalhadores informais são negros e estão mais expostos ao coronavírus e consequentemente com mais chance de óbitos. O que tudo isso tem a ver com o genocídio negro? Eu sei que essa pergunta está sendo cansativa e repetitiva, mas a história trágica de terror contra o negro se repete, renova, aumenta e arranca nossa esperança de continuarmos vivos, gostaria de terminar esse artigo, porém o genocídio negro é um projeto inacabado pela elite branca brasileira, somos o retrato da reconfiguração dos engenhos no século XXI.
Lu Mota – Mulher negra, Agente da Comissão Pastoral da Terra, Digital Influencer e Jornalista