Pela revogação imediata!
1. Apresentação.
No dia 01 de julho, em plena pandemia do coronavírus no Brasil e no mundo, foi publicada a Instrução Normativa Conjunta nº 01/2020, assinada pela Secretaria de Desenvolvimento Econômico (SDE), Secretaria de Desenvolvimento Rural (SDR), Coordenação de Desenvolvimento Agrário (CDA) e Procuradoria Geral do Estado (PGE).
Embora esteja sendo divulgada pelo Governo do Estado como uma grande conquista para as comunidades tradicionais de fundos e fechos de pasto e quilombolas, a leitura cuidadosa da normativa nos mostra que, na realidade, quem se beneficia com a sua edição são as empresas de geração energia eólica, que buscam segurança jurídica para seus negócios e terão os seus processos agilizados.
Para ajudar na compreensão da Instrução Normativa Conjunta nº 01/2020 e dos impactos que ela causa nas comunidades tradicionais, destacamos a seguir o que propõe a IN, além dos principais problemas que envolvem a sua edição e conteúdo.
2. O que propõe a Instrução Normativa (IN)?
De maneira resumida, a Instrução Normativa (IN) cria um procedimento específico (chamado de modelagem especial) para a instalação dos empreendimentos de energia eólica em terras devolutas estaduais. Devemos lembrar que centenas de comunidades tradicionais de fundos e fechos de pasto, quilombolas e de outros segmentos ocupam estas terras e, portanto, os seus direitos também estão em jogo com a edição dessa normativa. O procedimento previsto, segundo a IN, para que a empresa eólica se instale nas áreas dos “corredores de vento” é o seguinte:
a) a empresa de energia eólica indica o local onde quer se instalar e assina um “Protocolo de Intenções de Investimentos” com o Estado da Bahia;
b) a empresa se habilita na Secretaria de Desenvolvimento Econômico, apresentando a comprovação de que já possui torres de teste instaladas há pelo menos 18 meses na área e também outros documentos. Atenção: desde o momento de instalação das torres de testes as comunidades já estarão sendo impactadas pelo empreendimento, já poderão ter conflitos internos entre as famílias, chegada de pessoas de fora querendo grilar as áreas para colocar torres, etc;
c) após a habilitação, a empresa de energia eólica contrata e remunera outra empresa para fazer um “Diagnóstico fundiário territorial” na área em que está prevista a instalação do Parque Eólico. Assim, a empresa contratada pela eólica irá a campo medir as áreas (posses), inclusive dos territórios tradicionais, recolher documentos, elaborar mapas, etc. Vejam que o processo está seguindo sem que as comunidades tradicionais de fundo e fecho de pasto e quilombolas opinem em nada!;
d) a partir do “Diagnóstico fundiário territorial” elaborado pela empresa contratada pelo empreendimento de energia eólica, a Coordenação de Desenvolvimento Agrário (CDA) poderá iniciar uma ação discriminatória ou poderá fazer a arrecadação sumária das terras;
e) serão abertas matrículas no Cartório de Imóveis em nome do Estado da Bahia das áreas que forem consideradas devolutas
f) assinatura de “Termo de Compromisso” entre o Estado da Bahia e as empresas de energia eólica. O Termo de Compromisso autoriza a empresa a concorrer nos leilões de energia, pois comprova que ela pode utilizar aquela área. De acordo com a IN, para que este Termo seja assinado, os ocupantes da área devem concordar. Porém, caso os posseiros não concordem, essa área poderá ser reservada pelo Estado da Bahia e destinada às empresas eólicas;
g) regularização fundiária dos posseiros que forem identificados no local. Apenas após todo esse processo, ocorrerá a chamada regularização fundiária dos posseiros, que, de acordo com a IN, seria a emissão de títulos individuais e de contratos de concessão de direito real de uso das áreas comunitárias;
h) ao final, o Estado da Bahia e a empresa eólica assinam um contrato de concessão de direito real de uso, por meio do qual as empresas passam a ter o direito de utilizar durante décadas aquela área, pagando ao Estado apenas 0,5% do faturamento que obtiverem.
Em resumo, o que podemos ver nesta Instrução Normativa é que o seu objetivo é dar maior segurança às empresas de energia eólica, que agora terão um procedimento regulado e com rápida tramitação, assegurado pelo Estado da Bahia. De acordo com informações divulgadas pela CDA, a expectativa é que todo esse processo dure apenas 06 (seis) meses.
A regularização fundiária é um direito resguardado pela Constituição Federal e Estadual, cuja prioridade de destinação das terras públicas devolutas são os posseiros, trabalhadores rurais sem terra e povos e comunidades tradicionais que ocupam e fazem uso histórico dessas terras. Com a Instrução Normativa, esse direito fica condicionado à existência do “interesse de investimento econômico” de empresas do setor eólico nas áreas em que estão as comunidades, limitada ao espaço dos “corredores de vento”.
No procedimento aqui apresentado a participação popular é extremamente baixa e sempre condicionada à relação estabelecida com a empresa, o que fragiliza a compreensão da dimensão dos impactos do empreendimento nos territórios tradicionais e impede que as comunidades tradicionais livremente (sem pressões) definam as suas prioridades. Assim, é fácil perceber que o que a Instrução Normativa propõe é atribuir segurança jurídica ao negócios das empresas que cobiçam as terras localizadas nos corredores de vento, e não a efetividade dos direitos já conquistados pelas comunidades tradicionais, como a propaganda do Governo da Bahia tem alardeado.
3. Direitos das comunidades tradicionais que são violados pela IN:
a) O direito à consulta prévia, livre e informada (Convenção 169 da OIT) é, mais uma vez, desrespeitado pelo Estado da Bahia. As comunidades e as entidades que representam os segmentos das comunidades de fundos e fechos de pasto e quilombolas não foram consultadas antes da edição desta Instrução Normativa. Além disso, a própria IN prevê um procedimento que ignora a existência do direito à consulta prévia, livre e informada;
b) A proposta é incompatível com a Lei Estadual nº 12.910/2013. No artigo 2º da Lei constam as formas de uso estão de acordo com a utilização tradicional do território e a atividade eólica não está incluída entre as atividades permitidas nos territórios tradicionais, pois ela altera/impacta o modo de vida tradicional;
c) As empresas continuarão chegando nas comunidades tradicionais sem um protocolo específico que respeite a coletividade e sem fiscalização do poder público, pois muito antes de as comunidades serem ouvidas já terão sido instaladas as torres de testes na área e já terá sido assinado o Protocolo de Intenções entre empresa e Estado da Bahia. Na prática, as famílias e posseiros individuais continuarão sendo assediados por grileiros com a especulação de terras que a chegada das empresas provoca;
d) Não há qualquer previsão na Instrução Normativa de que as empresas devem respeitar o modo de vida das comunidades tradicionais. Por exemplo: não há obrigação de que as áreas das comunidades não sejam cercadas, de que os caminhos tradicionais devem ser mantidos abertos, ou de que os/as moradores/as devem ter acesso às informações sobre o empreendimento para refletirem e tomarem decisões;
e) Não há participação da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (SEPROMI) no procedimento. Assim, a principal Secretaria responsável institucionalmente pela defesa das comunidades tradicionais fica de fora deste processo. Também não há participação da Fundação Cultural Palmares quando afetar comunidades tradicionais quilombolas;
f) O Diagnóstico Fundiário que irá fundamentar a Discriminatória ou a Arrecadação Sumária, e depois as regularizações fundiárias, é realizado por empresa privada contratada pela empresa eólica – inclusive para medição das posses, recolhimento de documentos, etc. Imagine que uma comunidade tradicional que não quer a instalação do empreendimento terá o seu território medido por uma prestadora de serviços contratada pela empresa eólica!
g) A prestadora de serviço contratada pela empresa eólica indicará no seu relatório “possíveis conflitos, proprietários ou ocupantes que se recusaram a prestar informações e/ou contribuir com o levantamento, indicando a respectiva localização geográfica”. Isso poderá levar à exposição das pessoas e comunidades que forem contrárias a esse processo, colocando a integridade delas em risco;
h) Não há previsão de visita técnica da CDA em campo, apenas na hipótese em que seja realizada ação discriminatória ou se o Estado for provocado pela empresa contratada. De acordo com o Manual, “Em caso de ocorrência de conflitos deverá ser solicitada a participação de servidores da SDE e/ou da CDA”, deixando de fora a SEPROMI;
i) Não estão previstas reuniões do Estado da Bahia com as comunidades sem a participação da empresa eólica;
j) Não há regulação dos contratos entre as comunidades tradicionais e as empresas eólicas. Sabemos que as empresas apresentam às famílias contratos extremamente violadores de direitos para conseguir o “arrendamento” das áreas. A Instrução Normativa não faz sequer uma observação sobre esses contratos, ou melhor, no item 7.2 reafirma que esses contratos substituem a concordância dos posseiros! Se fosse, de fato, para proteção das comunidades tradicionais de fundos e fechos de pasto e quilombolas poderiam ser estabelecidas diversas regras como: preço mínimo; proibição de que as áreas sejam cercadas; proibição de multas abusivas e cláusulas de sigilo; respeito às representações coletivas (não fazer abordagem individual) e ao modo de vida; garantia de acesso ao projeto em linguagem acessível, etc;
l) As comunidades tradicionais que não aceitarem assinar o Termo de Compromisso poderão ter as suas terras “Reservadas” e destinadas à energia eólica. Isso significa que o Estado da Bahia não vai reconhecer a sua posse e vai destinar essas áreas para a empresa eólica (item 12 da IN). Essa previsão é totalmente ilegal e preocupante!;
m) Durante o período de validade do Termo de Compromisso a área é praticamente doada à empresa, os valores recebidos pelo Estado estão muito abaixo do preço de mercado. Por exemplo, a empresa pagará R$ 172,39 pelo hectare em Sento Sé, R$ 31,47 em Canudos, R$ 87,14 em Brotas de Macaúbas, sendo que este pagamento é feito apenas uma vez e assegura a disponibilidade da área por até 30 meses para a empresa;
n) A Instrução Normativa não estabelece qualquer limitação às empresas quanto à proteção ambiental e proteção de patrimônios culturais, históricos e arqueológicos. Não são indicados, por exemplo, áreas em que não podem haver a instalação de parques devido às suas qualidades ambientais, sociais e culturais específicas. Não há nada sobre proteção de mananciais de água, nascentes, rios, riachos, etc., que abastecem populações do campo e da cidade;
o) A Instrução Normativa e os documentos que a acompanham desconsideram o potencial econômico e a função ambiental que as comunidades tradicionais cumprem a partir da manutenção do seu modo tradicional.
4. O que precisamos refletir diante dessa Instrução Normativa?
> Como fica a situação das comunidades de fundos e fechos de pasto e quilombolas que ainda não se autorreconheceram como comunidades tradicionais? A empresa privada contratada pela eólica vai apontar a sua existência no diagnóstico territorial? Sabemos que não… essas comunidades estarão em situação bastante fragilizada;
> Os posseiros (individuais e comunidades) terão que apresentar seus documentos a uma empresa privada contratada pela empresa eólica durante o diagnóstico territorial (CPF, RG, ata de eleição, comprovação de posse e propriedade, etc). Por exemplo, as comunidades se sentirão seguras de entregar seus documentos a uma empresa contratada e remunerada pela eólica?
> Como ficam as comunidades tradicionais que não quiserem participar desse processo? No Manual há uma previsão de que apenas na fase da Ação discriminatória elas serão excluídas da área a ser arrecadada. A comunidade deveria ter o direito de ser excluída dessa “modelagem especial” desde o começo, em caso de não concordância com a empresa interessada quanto à medição das terras. Além disso, é dever do Estado arrecadar a terra, assim como é direito da comunidade ter as terras destinadas para sua associação representativa!
> Como ficam as comunidades fora dos “corredores de vento”? Qual a capacidade da CDA de atender estas comunidades frente à prioridade que será dada às empresas eólicas? Na prática, o baixo efetivo de servidores da CDA será destinado para essas questões de interesse das empresas;
> A IN fala que as áreas de “terras devolutas não ocupadas” ou com posses “não passíveis de regularização” serão destinadas para as empresas via contratos de concessão de direito real de uso. Há bastante preocupação sobre quais áreas serão incluídas nestes conceitos. Qual o conceito de “ocupação” que será utilizado? Lembrando que para as áreas que forem consideradas sem ocupação o procedimento de destinação à empresa eólica será simplificado (arrecadação sumária); além disso, o Estado só fará visita a campo quando provocado pela empresa ou se houver ação discriminatória.
> Por fim, e, a talvez a principal questão é: quem se beneficia com essa Instrução Normativa e com a entrada desses empreendimentos nos territórios tradicionais? É de interesse das comunidades que o direito à demarcação e titulação dos seus territórios esteja condicionado à cobiça de uma empresa privada pelas suas terras?
Precisamos ficar em alerta! É preciso debater, informar e pressionar pela imediata revogação da Instrução Normativa nº 01/2020, pelo fim do prazo inconstitucional e ilegal da Lei nº 12.910/2013 e pela garantia de direitos das comunidades tradicionais no Estado da Bahia!
Em defesa da terra, do território e da vida! Revogação da IN já!
Assinam:
Articulação Estadual das Comunidades Tradicionais de Fundo e Fecho de Pasto
Comissão Pastoral da Terra (CPT-BA)
Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia (AATR/BA)
Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA)
Grupo de pesquisa GeografAR (UFBA)