O projeto de construção da Ferrovia de Integração Oeste Leste – FIOL remonta a década de 50, quando elaborou a proposta que ligava o Porto de Campinhos que fica em Maraú na Bahia até o Porto de Iquito no Peru para ligar o Oceano Atlântico ao Pacífico. Mas, somente, seis décadas depois é que iniciou a retomada do projeto sob a égide de um novo período desenvolvimentista. O neodesenvolvimentismo tendo como fiador político o Partido dos Trabalhadores e sob a direção política da burguesia interna entre as suas frações e as construtoras que viam no projeto uma atividade rentavelmente para esse setor.
A ferrovia terá aproximadamente 1.527 km de extensão e ligará a Bahia à Tocantins. A construção foi dividida em três trechos: o primeiro começa na Bahia, em Ilhéus, mais precisamente no Porto Sul e vai até Caetité, o segundo segue de Caetité até Barreiras e o terceiro de Barreiras até Figueirópolis no Tocantins.
O projeto faz parte do modelo econômico agrário/mineiro exportador colonial que representou nos governos petistas o sustentáculo econômico e manteve-se com nuances nos governos golpistas de Michel Temer e no governo de Bolsonaro. A FIOL é então a expressão da extensão da nossa dependência, uma construção visivelmente voltada para fora, com vista a atender os interesses externos a partir do saque e escoamento das nossas riquezas.
O projeto é defendido acriticamente sejam pelos setores neofascista e neoliberal puro, como no caso de Bolsonaro e o Democrata respectivamente diante a posição subordinada que assume junto ao imperialismo e as potencias econômicas no mundo, assim como pela esquerda reformista, como o governo Rui Costa diante a miopia no que tange um projeto de soberania e o papel dos nossos minérios e riquezas nacionais. O espectro almejado e propagandeado é um desenvolvimento universal, mas, que omite os objetivos e desigualdades aprofundadas na esteira da construção desse projeto de cunho colonial.
Mas, como a aparência esconde e revela a essência, o dito desenvolvimento deixa explicito as veias abertas de contradições ao longo do seu percurso. E diante o esforço da classe dominante em omiti-la, nos cabe destacar o que é visível nos territórios cortados pela ferrovia ao longo dos 31 municípios e três biomas (Mata Atlântica, Cerrado e Caatinga) do estado da Bahia.
Conflito Fundiário e racial
São inúmeras comunidades tradicionais, em especial, no sudoeste da Bahia que contestam a apropriação de áreas coletivas de fecho de pasto pela VALEC a partir de intermediadores, grileiros, para garantia da construção da FIOL. Muitas dessas comunidades já reivindicaram a Coordenadoria de Desenvolvimento Agrário – CDA o reconhecimento enquanto comunidade tradicional e a regularização fundiária, como é o caso da Comunidade de Manoel Vicente no município de Caetité, porém, sem resposta dos órgãos do estado.
Sendo o impacto desses projetos contra os interesses dos trabalhadores, em sua maioria camponeses e boa parte sendo trabalhadores negros e negras, os conflitos da ferrovia envolve uma dimensão racial. Pois, envolve as comunidades de Fecho de pasto, negando seu direito ao território com a entrega aos interesses da FIOL e capital mineral. Além de envolver comunidades quilombolas, a exemplo dos impactos em quilombos como Araçá Volta, no qual a FIOL corta ao meio, acirra os conflitos, inclusive, entre lideranças. Tem uma resistência estabelecida, mas o Estado deixa bem explicito a sua posição de classe e não atende as reivindicações do povo quilombola, com destaque para a demarcação do território.
Conflito ambiental (hídrico) e social
Em grande parte dos trechos da FIOL o seu percurso dizima nascentes com o desmatamento (já que ao longo do trecho necessita de 80 metros de largura livre de qualquer vegetação causando uma transformação no meio natural e na paisagem) de inúmeras áreas dos três biomas atravessados pela FIOL (Cerrado, Mata atlântica e Caatinga) e aterramento de áreas, assoreia rios, reservatórios de águas e outros. Essa problemática é ainda mais grave nas áreas semiáridas, onde as chuvas são cada vez mais escassas. Outro aspecto envolve a abertura de poços artesianos para atender a molhagem das estradas e obras da FIOL, inviabilizam os poços de agricultores que fazem uso da água para a produção agrícola, já que os poços abertos para atender a FIOL são mais profundos dos que os já existentes e utilizados pelos trabalhadores. Associado a isso, há um uso excessivo dessa água diante a crise hídrica que vivem os municípios, somente a título de exemplo, no lote F5, Caetité – Ba, um único trabalhador em um mês de trabalho em 2020, fez 61 viagens com caminhão pipa transportando água potável, totalizando o equivalente a 2.177.700 litros de água. Destaca que Caetité não tem fonte própria de abastecimento, sendo o atendimento hídrico feito pela adutora do São Francisco. O município vizinho de Licínio de Almeida decretou ano passado estado de emergência pela falta de água. Enquanto um único projeto, a FIOL para atender o escoamento de minério de ferro para a China sob o controle de investidores Cazaquistanês controla o uso indiscriminado de uma água escassa ao consumo humano.
Alteração das vias de acessos
As obras não foram debatidas com as comunidades, nem essas tiveram o direito de participar, sendo a atividade uma imposição sobre as culturas e modos de vida, sendo que em vários territórios inviabilizando as vias de acesso das comunidades para deslocar até as áreas de produção agrícola, assim como para o deslocamento entre comunidades e municípios.
Inviabilização de áreas de produção camponesa
As atividades ao longo do trecho da FIOL inviabilizaram inúmeras áreas de produção camponesa, seja pelo assoreamento dos rios, erosão, aterramento de áreas produtivas, inviabilização de poços artesianos e outros danos que impede o desenvolvimento da produção agrícola. Na maioria dos casos não existe indenização ou recompensa pelos crimes cometidos.
Exposição das comunidades e trabalhadores à COVID-19
As obras da FIOL paralisadas por diversos momentos desde o inicio da sua atividade, assume no decreto presidencial Nº 10.329, de 28 de abril de 2020 enquanto trabalho essencial. Permitindo o desenvolvimento das obras e impedindo as condições das comunidades e trabalhadores terem o direito de usufruir o isolamento social. O caso mais emblemático envolve a comunidade de Curral Velho, Caetité – Ba, já que o trecho corta a comunidade e o consórcio responsável pelo lote 5 precisa fazer uso de explosivo para a construção do trecho da FIOL, situação que necessita retirar as famílias dos seus lares e aglomerarem debaixo de arvores expondo-as ao vírus e impedindo o direito fundamental nesse momento que é o isolamento social, produzindo um verdadeiro atentado contra a vida.
Conflito de Gênero
O primeiro aspecto é que as obras da FIOL intensificam as horas de trabalhos dos moradores, pois as atividades geram poeira o que aumenta o trabalho de limpeza. Assim, agrava a saúde como, por exemplo, o agravamento de casos respiratórios, em especial dos idosos e crianças exige o aumento do trabalho e cuidado. Outro fator que envolve é a falta da água que afeta diretamente as mulheres, pois são a elas que são atribuídos as atividades que precisam deslocamento para buscar outra fonte ou dar conta com o pouco que tem nos serviços domésticos. Destaca também que as chegadas de trabalhadores de outras cidades o que aumenta os números de assédio e a violência contra as mulheres.
Esses são alguns impactos que essa obra provoca contra as comunidades e trabalhadores ao longo do seu trecho. Destaca ainda os aspectos relacionado a saúde (decorrente da poeira, acidentes de trabalhos e outros), barulhos e movimentação intensa de caminhões e equipamentos. Por consequência, por exemplo, da inviabilização da produção, danos físicos as propriedades e benfeitorias, sendo muitas sem indenização, estão estimulando a migração dos camponeses para as cidades. Relação que vai intensificando ainda mais o processo de crise da agricultura camponesa, inchaço das cidades, ausência de produtos básicos de gêneros alimentícios, aumento da inflação e crescimento da miséria.
Diante dos fatos sinteticamente expostos, o dito progresso é somente uma caricatura de desenvolvimento para todos. O projeto tem como finalidade atender os interesses do capital agrário do Oeste da Bahia e o capital mineral que visa abrir uma nova fronteira mineral em Caetité. A lógica colonial se mantém, exportamos o minério de ferro para a China beneficiar, gerar trabalho e desenvolver a tecnologia e importamos os trilhos para facilitar o saque dos nossos minérios. Os bens da natureza não estão a serviço do desenvolvimento do nosso povo, a FIOL não está disponível para os agricultores transportarem o milho, feijão e hortaliça produzido ao longo do seu trecho. A obra que já foi investido 3 bilhões de reais, segundo o Jornal Estadão em 2015 [1], vai ser leiloada agora em abril de 2021 para a iniciativa privada para a sua conclusão, sendo a concessão de 35 anos, período necessário para que a BAMIM principal interessada fazer a exportação da produção do minério de ferro. Provavelmente após esse período decretamos o fim de mais uma malha ferroviária, como as muitas que criminosamente foram abandonadas pelo Estado Brasileiro, enquanto o passivo social, econômico e ambiental é universalizado a população brasileira, sendo os trabalhadores os principais receptores das desgraças socializadas pelo capital.
A FIOL enquanto esteira do progresso e desenvolvimento é somente o visível aparente apresentado pela mídia, o Estado (governos, instituições estatais, parlamentares, judiciário) representando os interesses de uma fração ínfima de investidores. A essência se apresenta na violência, poeira, lágrimas, suor, sem terra, sem água, sem trabalho. A ganancia é para transformar a natureza e o povo em pó. Se o trem ainda não passou é preciso decifrar o seu movimento e finalidade para não sermos devorados.
[1] https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,pacote-do-governo-ignora-ferrovia-em-construcao-na-ba,1703975
Escrito por: Beniezio Carvalho, Agente da Região Sul/Sudoeste da Comissão Pastoral da Terra- BA