A 35º edição do relatório que contabiliza dados sobre conflitos e violência sofridas pelos trabalhadores do campo, indígenas, quilombolas e demais povos tradicionais revele que o número de ocorrências (2.054) cresceu 8% em 2020. No ano anterior foram 1.903. A quantidade de conflitos é a maior desde 1985, quando a Comissão Pastoral da Terra (CPT) começou a divulgar as estatísticas.
Os números mostram que os conflitos por terra cresceram 25% em âmbito nacional, passando de 1.260, em 2019, para 1.576, em 2020. A Bahia é o terceiro estado em conflitos (26) causados por disputa pela água – atrás de Minas Gerais (125) e do Pará (31) – e o quarto (127) no ranking de enfrentamentos por terra. Pará (245), Maranhão (203), Mato Grosso (166) lideram.
Os conflitos por terra em território baiano atingiram 9.585 famílias. Ano passado, o agricultor familiar quilombola Antônio Corrêa dos Santos foi assassinado por causa de uma disputa que se arrastava por seis anos, relacionada ao uso da casa de farinha, na comunidade do Barroso, em Camamu. A demora do governo do estado para resolver a questão, mesmo diante das ameaças sofridas pelo líder comunitário, resultou no crime.
Em junho deste ano, o empresário Paulo Grendene foi assassinado a tiros em uma emboscada, após denunciar o esquema de grilagem investigado na Operação Faroeste, envolvendo venda de sentenças por desembargadores e juízes, além da ação de empresários e grilagem de terra.
VIOLÊNCIA NO CAMPO
A apresentação da CPT, colocando a Bahia entre os estados mais violentos e conflituoso, foi feita por representantes da regional da entidade, da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR) e do grupo de pesquisa Geografia de Assentamentos da Área Rural (GeografAR), da Universidade Federal da Bahia.
Ruben Siqueira, assessor da CPT Bahia/Sergipe, apresentou os dados de todo o país, ressaltando que as estatísticas são dolorosas, mas necessárias, pois reiteram que a reforma agrária no Brasil permanece sem solução. Ele anunciou que os conflitos causaram 32 assassinatos e 159 ameaças de mortes.
O governo federal (33%), fazendeiros (23%), empresários (13%) e grileiros (11%) foram apontados por Siqueira como os principais causadores dos confrontos. O coordenador revelou que indígenas (42%), quilombolas (17%), posseiros (15%) e sem-terra (10%) são as principais vítimas.
“Os sem-terra eram os principais atingidos até cinco anos atrás. O aumento dos conflitos nos estados da região da Amazônia Legal (60,8%), incluindo parte do Maranhão, colocaram as terras indígenas no topo das disputas” – disse.
Ruben Siqueira acrescentou que o agronegócio, as mineradoras e os garimpeiros estão por trás de ações violentas. Em 2020 foram registrados ataques às barreiras sanitárias montadas, principalmente por indígenas, para proteção contra a pandemia de covid-19. Um fato marcante ocorreu no dia 20 de agosto de 2020. Dois homens invadiram as terras Capoto/Jarina das etnias Kayapó, Mebêngrôke, Metyktire e Tapayuna, no Mato Grosso, destruíram a barreira sanitária e deram 29 tiros a esmo. Em seguida, foram para outra aldeia.
Já a disputa por água é travada por mineradoras (40%), pelo governo federal (16%), hidrelétricas (13%), dentre outros. As vítimas principais são ribeirinhos, pescadores e indígenas.
CONFRONTOS BAIANOS
A apresentação sobre a situação crítica na Bahia começou com o depoimento de Mônica, moradora do distrito de Juerana, localizado entre Ilhéus e Itacaré, no sul do estado, área que sofre as consequências da instalação do Porto Sul para o escoamento do minério de ferro da Bahia Mineração (Bamin), pertencente a Eurasian Resources Group (ERG). A ERG é uma das maiores mineradoras do mundo e concentra suas operações no Cazaquistão e na Ásia Central.
“O Porto Sul é um projeto de morte. A Bamin faz as comunidades brigarem entre si. Eles tentam convencer que o projeto é bom porque trará desenvolvimento para a região. Mas vão acabar com a pesca no rio Almada e com o turismo da região. Eles querem tirar água do rio para molhar o minério de ferro, mas isso não impedirá o pó de poluir o ar. A mineradora tirou a nossa paz” – declarou a líder comunitária.
A tendência é que ocorra em Ilhéus e arredores situação semelhante à do Porto de Tubarão, no Espírito Santo. Inaugurado em abril de 1966, o terminal levou o incômodo do pó de minério para os moradores da Grande Vitória. A poluição atingiu vários municípios e obrigou a população a viver com os vidros das residências fechados. O resíduo jogado no mar poluiu a praia de Camburi e escureceu a areia.
As estatísticas sobre as disputas por terra e água na Bahia foram apresentadas por Roseilda Conceição, coordenadora da CPT regional. Ela salientou que as estatísticas mostram o que está ocorrendo nas áreas rurais do estado e apontou as três esferas de governo – municipal, estadual e federal – como responsáveis pelo sofrimento da população e favorecimento de empresas.
O levantamento revela que 9.585 famílias foram atingidas pela violência contra ocupação e posse de terras, sendo que 1.850 foram vítimas de grileiros e 925 tiveram suas casas e/ou roças destruídas.
As comunidades tradicionais de fundo e fecho de pasto, que sobrevivem do plantio de roças, da coleta de frutos na caatinga e no cerrado e do pastoreio de gado em áreas coletivas; os quilombolas e os indígenas, nesta ordem, são as principais vítimas. Das 15 ameaças de morte registradas, sete ocorreram em áreas de fundo de pasto e três foram contra mulheres.
No território baiano, a maioria das disputas foram causadas por mineradoras, fazendeiros, empresários, governo federal e por empresas de energia eólica. De acordo com a CPT, os conflitos não acontecem isoladamente. Eles têm ligação com a soja da região oeste e o minério de ferro da Bamin, em Caetité. Várias empresas querem se estabelecer na região e estão aguardando a conclusão da Ferrovia de Integração Oeste Leste (Fiol).
Também têm a ver com a pretensão do governo estadual, apoiada pelo governador Rui Costa e o vice João Leão, de transformar a Bahia no terceiro maior produtor de minério de ferro do Brasil, atrás apenas do Pará e Minas Gerais.
O foco contra comunidades tradicionais tem a ver ainda com o “corredor dos ventos” e empresas que pretendem construir parques eólicos em busca de mais energia, sem especificar para quem ela será distribuída.
Durante a apresentação da CPT, Solange, da comunidade Lagoa dos Bois, em Nordestina disse que a Lipari Mineração, especializada na extração de diamantes e controlada com capital belga e chinês já causou muitos danos. Das 12 comunidades quilombolas existentes no entorno da mina Braúna, nove tiveram casas e cisternas de captação de água de chuva danificadas por detonações.
“A mineradora trouxe inquietação. Ela tirou a nossa paz e nos causou desgosto, raiva e decepção. As cisternas ruíram, as casas racharam. Eu passei a ter problemas de pressão” – desabafou.
CONTEXTUALIZAÇÃO
O advogado e geógrafo Cloves Araújo, do grupo de pesquisa GeografAR, tocou em um ponto relevante ao contextualizar a atual situação fundiária na Bahia. Ele citou a Operação Faroeste, deflagrada para coibir a grilagem de terras e vendas de sentenças por magistrados. Araújo citou três fatores que colaboram para o aumento das relações conflituosas.
O primeiro é o que chama de “território capital” do agronegócio, envolvendo as culturas de eucalipto, algodão e soja (commodities). O segundo é o governo, que ao realizar grandes obras de infraestrutura prepara o terreno para as empresas alterarem significativamente o tempo e o espaço dos territórios do campo, das águas e das florestas. O terceiro é a grilagem, foco das investigações da Polícia Federal envolvendo a magistratura, serventuários da justiça e empresários.
Araújo citou o caso do juiz de Formosa do Rio Preto, Sérgio Humberto de Quadros Sampaio, preso por suspeita de vender sentença para um falso cônsul da Guiné Bissau na disputa por mais de 300 mil hectares de terra (https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2019/11/23/pf-prende-juiz-em-desdobramento-de-operacao-que-afastou-presidente-e-mais-5-desembargadores-do-tj-da-bahia.ghtml)
De acordo com Cloves Araújo, o magistrado por onde passava dava sentenças suspeitas ou polêmicas. Em Xique-Xique, homologou acordo da cessão de 30 mil hectares do governo estadual. Em Gentio do Ouro declarou usucapião em terras públicas, o que não é previsto pela legislação, para favorecer empresas eólicas.
O advogado fez ainda uma provocação: Quem governa o oeste baiano?
“Na prática, a atuação de órgãos estaduais como o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) continua autorizando supressão de vegetação nativa e extração de água na superfície e subterrânea mesmo em casos em que há ação discriminatória. Só na Bacia do Rio Grande, em 2021, o órgão ambiental autorizou a supressão de 70.137 hectares de vegetação e a captação de 926.692 metros cúbicos de água por dia. Isso equivale a metade da água conduzida pelo eixo norte da transposição do rio São Francisco – exemplifica.
A professora Maria Francisca, da comunidade Pascoal, em Sento Sé, é uma das atingidas pela mineradora Colomi Iron. Ela conta que no auge da pandemia, a empresa se instalou no local, apesar de denúncias feitas ao Ministério Público Federal e ao MP Estadual.
Maria conta que a mineradora recebeu licença para instalação e a de exploração quatro dias depois. A extração de minério em carretas bloqueou o acesso dos moradores, espalhou poeira. Além disso, a empresa soterrou nascentes.
“O Inema parece que trabalha para as empresas. Para elas tudo é fácil. O órgão autorizou a mineradora a captar água e desmatar. O povo, que sofre com o impacto e os danos ambientais, grita, chora, e ninguém ouve. Nós não temos a quem recorrer. Não tem diferença entre o governo federal, o estadual e o municipal. Nossa decepção com o governo do estado é grande” – declarou.
Via Meus Sertões por Paulo Oliveira