A 43ª edição da Missão da Terra reuniu cerca de quatro mil trabalhadores e trabalhadoras rurais, estudantes de escolas família agrícolas e agropecuárias, sindicalistas, leigos e religiosos de 26 paróquias, neste domingo, em Senhor do Bonfim, a 385 quilômetros da capital baiana (Salvador). O encontro foi o primeiro feito de forma presencial, após dois anos de atividades virtuais, devido à pandemia de covid-19.
O evento deste ano fez reflexões sobre às ações irresponsáveis contra o planeta, que nos alimenta, e partilhou experiências de vida em diversas comunidades. O objetivo da romaria sempre foi conscientizar os trabalhadores a respeito de seus direitos, além de ajudá-los a se organizar e se defender.
Em 2022, o tema dos romeiros foi “O Grito da Mãe Terra é o grito dos Povos! Cuida, liberta e partilha!”. Já o lema se baseou em um trecho bíblico (Mateus 5,10). “Bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor à justiça”. A concentração das caravanas municipais ocorreu no Parque da Cidade.
No aquecimento para a caminhada, dona Luci Francisca da Silva, que planta hortaliças e verduras orgânicas na comunidade Bela Conquista, em Itiúba, disse que só não esteve presente em uma edição da Missão da Terra.
“A romaria é muito boa. A gente se junta, se encontra com os amigos e conhece novos irmãos. Aqui aprendemos que dá para transformar o Brasil. Se a gente não se juntar, não acha nada e ficamos sem ter como lutar por nossos direitos” – disse a agricultora.
Valdemir Alves Oliveira, 77 anos, agricultor de Várzea Nova desde a infância, é outro entusiasta da Missão. Para ele, o que é mais marcante é a organização e a participação do povo.
A caminhada de aproximadamente dois quilômetros e meio até a Praça Nova, passando pelas imediações da antiga estação de trem e pela catedral, representa a Via Sacra. No trajeto, há três paradas, nas quais representantes de comunidades relatam casos de destruição da natureza e de como estão se organizando para tentar reverter a situação.
A “primeira estação” ocorreu diante do fórum da cidade. Vilobaldo Farias relatou o que está acontecendo nas comunidades tradicionais de Lagoa Grande, Mucambo e Borda da Mata, onde o que se vê é a omissão do estado e da prefeitura diante da destruição feita por mineradoras, tanto com relação às nascentes, quanto ao modo de vida da população.
As águas das nascentes escorrem para os rios e seguem para a barragem do município de Ponto Novo, que abastece milhares de pessoas. Apesar de terem sido feitas denúncias para os órgãos públicos, nenhuma providência foi tomada. Milhares de blocos de pedras foram retirados, sem nenhuma fiscalização.
“Vocês também dependem das nascentes do Itapicuru. Vocês já devem estar bebendo água contaminada” – alertou.
Já Dailane Mota, do acampamento Sol Nascente, na localidade de Quicé, em Senhor do Bonfim, relatou os momentos de tensão e insegurança que a comunidade está passando. A área hipotecada foi tomada pelo Banco do Nordeste e ficou ociosa. Há mais de 15 anos, os trabalhadores rurais ocuparam as terras e passaram a produzir milho, feijão, mel e criar pequenos animais, preservando a caatinga e gerando renda.
As 10 famílias da comunidade pleitearam a concessão da propriedade ao Incra, mas não obteve sucesso. No final de 2021, no entanto, o Banco do Nordeste leiloou a área pela terceira vez – nas demais não houve compradores – e uma pessoa arrematou. Em seguida, o comprador obteve reintegração de posse na justiça. Posteriormente, a relatoria do tribunal derrubou a imissão de posse e o caso está tramitando em tribunal superior.
Mesmo sem decisão final, o adquirente contratou seguranças e iniciou a venda de lotes, além de permitir o desmatamento da área.
Na segunda parada da romaria, foi entoado “Ladainha dos mártires da terra”, inspirada na canção dos mártires da Amazônia.
Hélio Pombo, presente em nós!
Felinto Alves, presente em nós!
Antonio Mendes, presente em nós!
Senhor do Bonfim, piedade de nós
José Augusto, presente em nós!
Moises Vitório, presente em nós!
Carlos Augusto, presente em nós!
Senhor do Bonfim, piedade de nós
Cipriano José, presente em nós!
Jailton Bispo presente em nós!
Gracindo Pinto, presente em nós!!
Senhor do Bonfim, piedade de nós!
Romildo da Silva, presente em nós!
Josimar Neves, presente em nós!
Luís Alberto, presente em nós!
Senhor do Bonfim, piedade por nós!
Tiago Dias, presente em nós!
Antonio do Plínio, presente em nós!
Leonardo Leite, presente em nós!!
Senhor do Bonfim, piedade de nós!
João Pereira, presente em nós!!
José Raimundo, presente em nós!
Trabalhadores rurais sem-terra, presente em nós!
Senhor do Bonfim, piedade de nós!
Jovens vítimas de extermínios, intercedei por nós!
Mulheres vítimas de feminicídio, intercedei por nós!
Mártires indígenas, presente em nós!
Senhor do Bonfim, piedade de nós!
Elizabete Cruz, da Serra dos Morgados, em Jaguarari, falou da importância da recuperação das matas na terceira parada da caminhada. Ela citou que com o reflorestamento da área, uma cachoeira seca há 20 anos voltou a dar sinais de vida. O trabalho de recuperação foi feito em conjunto com o movimento ecológico Salve as Serras.
A comunidade foi polo cafeeiro, mas como não conseguia escoar a produção, optou pela criação de gado. A região, porém, não era apropriada para a atividade que demanda grandes extensões e compacta muito o solo. Com a presença do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) para realização de cursos na região, Elizabete pediu treinamento na área de cafeicultura. E teve de cadastrar 30 pequenos agricultores para ser atendida.
Os agricultores da Serra do Morgado preservam até hoje pés de café conilon, plantados há mais de um século. Agora, no entanto, estão trabalhando também com outras espécies (arábica e acauã). Independente do tipo, a produção é orgânica e artesanal. A partir do trabalho desenvolvido e de uma nova embalagem, as vendas aumentaram consideravelmente. Além do café, são produzidas frutas e hortaliças. A criação de uma cooperativa e a realização do Festival do Café, em novembro, estão em andamento.
Apesar da bem-sucedida iniciativa, os moradores da Serra do Morgado estão ameaçados por eólicas e mineradoras. Segundo Elizabete, duas torres de energia foram instaladas para testes e mineradoras começaram a fazer estudos na região.
“Estamos com a nossa mãe natureza muito devastada. Ela chora, ela agoniza. A Missão da Terra mostra a importância de lutar em defesa dela”.
Por volta das 11h30, a Missão da Terra deu uma pausa para o almoço. Os participantes se espalharam pela área central de Senhor do Bonfim. Eles aproveitaram a sombra das árvores e bagageiros de veículos para descansarem.
POEMAS E MISSA
À tarde, no palco armado na Praça Nova, foi realizado o momento cultural, no qual os trabalhadores rurais se apresentam cantando, lendo poemas e declamando cordéis.
A celebração da missa, presidida pelo bispo Hernaldo Pinto Farias, 58 anos, e acompanhada por padres da diocese, começou às 15 horas.
No início da mensagem, Dom Hernaldo criticou a conivência dos poderes públicos com o avanço das mineradoras e outros grandes empreendimentos que ameaçam a natureza. Ele citou que as nascentes espalhadas nos 200 km de serras da região abastecem 51 municípios e 1,3 milhões de pessoas, o equivalente a 7,5% da população baiana. E mesmo estando em Áreas de Proteção Permanente (APPs), protegidas por legislação federal, elas são alvo da exploração de pessoas gananciosas, que desrespeitam os povos nativos e o meio ambiente.
O bispo citou declarações feitas pelos papas Paulo VI, João Paulo II e Francisco. O primeiro alertou, nos anos 1960, o risco de a humanidade ser vítima da exploração inconsequente da natureza. João Paulo II criticou o pouco empenho das autoridades para preservar a ecologia.
Antes de citar a “Oração pela nossa terra”, inclusa na encíclica Laudato Si (Louvado Seja), do Papa Francisco, o bispo foi enfático na defesa do meio ambiente e dos mais carentes:
“Uma especial gratidão a todos que lutam com vigor para resolver as dramáticas consequências da degradação ambiental na vida dos mais pobres. Os jovens exigem de nós uma mudança. Interrogam-se como se pode construir um futuro melhor, sem pensar na crise do meio ambiente e no sofrimento dos excluídos. Torna-se urgente a construção de uma grande rede de diálogo no intuito de gerar uma cultura ambiental sempre cuidando com o meio ambiente e das pessoas, principalmente os mais pobres, que sempre são os mais prejudicados”
Em seguida, leu o trecho da prece a qual a encíclica se refere:
“Tocai, Senhor, os corações daqueles que buscam apenas benefícios às custas dos pobres e da terra. Ensinai-os a descobrir o valor de cada coisa, a contemplar com encanto, a reconhecer que estamos profundamente unidos com todas as criaturas no nosso caminho para vossa luz infinita”.
A celebração terminou com a distribuição de mudas de árvores para os representantes das paróquias plantarem em suas cidades e comunidades.
Também participaram da romaria representantes da Comissão Pastoral da Terra, regional Bahia (CPT-BA), do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), do Movimento Estadual de Trabalhadores Assentados, Acampados e Quilombolas (CETA), da Diocese de Serrinha e de comunidades de Fundo e Fecho de Pasto.
IMAGENS DA MISSÃO
Por: Paulo Oliveira (Meus Sertãoes) e Thomas Bauer (CPT-BA)
Fotos: Thomas Bauer/H3000-CPT-BA