No último dia 21 de julho de 2024, o Terreiro de Jarê Peji da Pedra Branca e a comunidade do Curupati, localizados dentro do Parque Nacional da Chapada Diamantina (PARNA), foram alvo de ação de fiscalização de agentes do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). O terreiro liderado por Gilberto Tito de Araújo, conhecido como Damaré, foi invadido por agentes do ICMBio, que destruíram o espaço sagrado e mais de 10 casas onde residiam cerca de 35 famílias. A comunidade alega que a ação foi realizada sem diálogo com os moradores, nem notificações prévias, nem negociação com autoridades municipais.
Em nota, a gestão do PARNA argumenta que as construções são recentes e que não tinha conhecimento do referido terreiro, nem identificou o local como centro religioso, no momento da fiscalização. A nota contraria as imagens e depoimentos de moradores locais, que comprovam que a roça pertencia ao pai de Damaré há mais de 45 anos, antes da instalação do parque.
Importante registrar que o PARNA é uma Unidade de Proteção Integral, que proibe assentamentos humanos dentro do seu perímetro. A questão é que há uma sobreposição legal aos direitos dos povos e comunidades tradicionais. Um parecer da Advocacia Geral da União e das Procuradorias Federal e do ICMbio (Parecer 175/2021) prevê o direito básico de defesa das comunidades e determina que ações de demolições devem estar amparadas em processo administrativo individualizado e seguindo o devido processo legal. Segundo as comunidades, esses procedimentos não foram seguidos pela fiscalização na comunidade de Curupati, configurando as demolições como arbitrárias e injustas.
O movimento negro de Lençóis considera a ação um ato de racismo religioso. O diretor de Promoção da Igualdade Racial de Lençóis, Uilami Dejan, informa que estão sendo encaminhadas denúncias das violações à Defensoria Pública da União e Ministério Público Federal. Para o OCA – Observatório dos Conflitos Socioambientais da Chapada Diamantina e CPT – Comissão Pastoral da Terra, a ação viola a Convenção 169 da OIT – Organização Internacional do Trabalho que trata sobre direitos dos povos indígenas e tribais.
A medida pegou de surpresa os membros do Conselho do PARNA. A maioria tem manifestado espanto, estranheza e repúdio. O Campus Avançado da Chapada Diamantina da UEFS, que há muito dialoga com os povos de terreiro e participa do Conselho do PNCD desde o início, através da sua gestora Professora Marjorie Nolasco, acompanha com indignação o processo e exige imediata reparação à comunidade do Curupati e ao Terreiro de Jarê Peji da Pedra Branca.
Para a socióloga e professora Maria Medrado, desde a criação do Parque Nacional da Chapada Diamantina em 1985, comunidades e povos tradicionais lutam para garantir seus direitos, sobrepostos pela Unidade de Conservação. Medrado defendeu uma tese de doutorado sobre a violação de direitos e conflitos socioambientais provocados pela implantação do PARNA.
Segundo a antropóloga Paula Zanardi, especialista em povos tradicionais, o terreiro de Damaré é parte dos poucos terreiros que ainda resistem em Lençóis, preservando e difundindo a memória do garimpo e práticas religiosas afro-indígenas. A pesquisadora estuda os Terreiros de Jarê da cidade e entende que a violação demonstra um desrespeito à memória, às tradições culturais seculares e à diversidade religiosa chapadeira. “A destruição do terreiro representa uma perda irreparável para a comunidade de Lençóis e para a cultura brasileira como um todo”, lamenta Paula.
A antropóloga enfatiza que o espaço religioso conta com diversas sinalizações indicativas de que se trata de um espaço sagrado. Vídeos que circulam na internet mostram uma placa sobre a porta com o nome do terreiro. No interior da casa de santo, estavam imagens e objetos sagrados que confirmavam se tratar de um Peji, onde estão os assentamentos dos caboclos de Damaré. A violação ainda pode implicar em danos para espiritualidade da liderança.
No documentário Profilaxia Mágica (2021), dirigido por Rodrigo Rodowicz, da Zabelê Filmes, o mestre Damaré aparece em seu Peji Pedra Branca, durante a pandemia do coronavírus, como um guardião da natureza e não um autor de crimes ambientais.
A CPT e o OCA compreendem que toda ação de proteção ambiental, sem diálogo com os povos tradicionais que preservaram e conservaram estes territórios, é uma prática racista e ecofascista e de criminalização de lideranças populares. Independentemente do período das construções, a autonomia e os direitos dos povos de terreiro e comunidades tradicionais precisam ser respeitados. Todas essas questões despertaram a revolta e indignação da comunidade chapadeira, que exigem apuração imediata e responsabilização dos culpados.