Levantamento da Comissão Pastoral da Terra mostra que 108 dos 1.270 casos de homicídio registrados na última década foram a tribunal; na região Norte, números não passam de 4%
Índios, posseiros, quilombolas, pescadores, agricultores, ribeirinhos, sem-terra, lideranças religiosas. Somente nos últimos 30 anos, mais de 1.700 deles foram vítimas de assassinatos em conflitos de terra ocorridos nos 26 Estados do Brasil. Os dados estão inclusos nos levantamentos divulgados anualmente pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), órgão pertencente à Conferência Nacional dos Bispos que desde 1985 registra números sobre o tema no País.
Do total de 1.270 casos de homicídio registrados nas últimas três décadas – alguns casos incluem mais de um assassinato –, apenas 108 foram julgados, menos de 10% deles, e somente 28 mandantes dos crimes e 86 executores acabaram condenados por seus crimes. Um total de apenas 114 pessoas punidas em um período em que ocorreram, por baixo, 1.714 assassinatos.
Os números, segundo os especialistas, são consequência direta da ausência de reforma agrária e da falta tanto de segurança pública como de ações do Judiciário. Neste cenário, milhares de famílias vivem em constante conflito com os grandes proprietários rurais e o número de assassinatos caminha na direção oposta ao do de julgados e condenados pelos crimes.
“A distância dos centros urbanos complica. Os casos que ocorrem especialmente na região amazônica sequer são divulgados. Mesmo os números da Comissão Pastoral da Terra (CPT), apesar de altos, são bastante otimistas. Sem dúvida, a quantidade de assassinatos é muito maior do que a que temos registrada em nossos bancos de dados”, avalia José Batista Afonso, advogado da CPT há 18 anos.
Para Afonso, a solução só pode se dar por meio da reforma agrária: “Vivemos em um país em que a concentração de terra é violenta. A terra acaba sendo vista como algo quase intocável e os responsáveis por crimes pela posse de áreas não são punidos e acabam se sentindo numa situação de poder muito grande. É uma mentalidade de coronelismo que prossegue no Brasil, especialmente em Estados mais afastados, de fronteira com o agronegócio, onde massacres e chacinas brutais sequer são noticiados pela mídia, gerando, assim, a continuidade desses crimes.”
Impunidade absoluta
Em todos os Estados brasileiros – à exceção do Distrito Federal, em que não há registro de mortes em conflitos de terra – a situação é semelhante. Assim como ocorre com boa parte dos crimes contra a vida no País, poucos ou quase nenhum dos casos envolveu punição a seus responsáveis. Na maioria das vezes não há nem julgamento para avaliar a culpabilidade dos envolvidos.
É o caso, por exemplo, do Amazonas, Estado em que os conflitos de terra como consequência do avanço de empresários e grandes proprietários focados no extrativismo ilegal de madeira e minerais e no agronegócio e pecuária levou a ao menos 28 vítimas fatais entre os anos 1985 e 2013. Na unidade federativa, marcada por ações de grileiros responsáveis por falsificar documentos de posse e expulsar posseiros e índios de propriedades, nenhum caso de homicídio foi julgado ao longo de três décadas.
“Temos uma elite ruralista intransigente e insensível fazendo campanha contra os indígenas e pequenos proprietários, dizendo que já há terra demais para eles”, ressalta o antropólogo Spensy Pimentel, professor de Etnologia Indígena na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila). “Da forma como funciona hoje nosso sistema político, o governo está no colo dos ruralistas, de mãos atadas. Nosso sistema político ainda está intrinsecamente relacionado ao poder econômico.”
Menos de 4% de casos julgados
Segundo maior Estado do Brasil, com toda a sua extensão de 1.247.954,666 km² ocupada pela floresta amazônica, o Pará é o recordista absoluto no número de assassinatos em conflitos de terra no País.
Os dados impressionam: enquanto Sergipe, unidade federativa menos afetada por essas disputas, somou quatro homicídios intencionais no campo nos últimos 30 anos, o território da região Norte tem em seus registros 645 vítimas fatais no período. Dos 429 casos (muitos abrangem mais de um homicídio), somente 22, ou 5% do total, foram a julgamento. Apenas 14 mandantes e 3 executores foram condenados, enquanto 4 mandantes e 16 executores, absolvidos.
Foram, no total, 840 assassinatos ocorridos no Acre, Amapá, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e em território amazonense. Apenas 33 deles foram julgados, menos de 4%, e 43 pessoas, condenadas.
Relatório mostra relação entre violência contra índios e falta de demarcações:
Mesmo com números inferiores aos da década de 1980, em que as vítimas fatais passavam das 100 por ano, 2014 registrou ao menos 34 homicídios em conflitos no campo no Brasil, segundo os dados da CPT. O mais recente deles aconteceu no Mato Grosso do Sul, quando, em 8 de dezembro, a índia Júlia Venezuela Almeida foi assassinada na Comunidade Tey’i Juçu, em Caarapó.
“Os assassinatos estão diretamente relacionados às conjunturas do momento. Entre 1984 e 1988, final da ditadura militar e início da nova república, tivemos o maior pico histórico, pois se criou a expectativa da reforma agrária. Ocorreram muitas ocupações e os latifundiários as reprimiram com violência”, ressalta Batista.
“Como nada foi resolvido, as ocupações e, consequentemente, a violência diminuíram. Da mesma forma, o Massacre de Eldorado dos Carajás [assassinato de 19 sem-terra no Pará em abril de 1996] também levou a um fortalecimento das ações dos movimentos sociais. Sem ação do governo, novamente tivemos repressão forte até as ocupações perderem força. O governo Lula também foi outro momento de expectativa, mas mais uma vez o resultado foi o mesmo.”
Sem distinção de território
Apesar da ampla maioria de casos terem ocorrido na região Norte do País, a questão dos conflitos de terra terminados em morte abrange todos os Estados brasileiros, sem exceção.
No Nordeste brasileiro, 424 pessoas foram mortas entre 1985 e 2014, enquanto somente 21 casos acabaram indo a julgamento e 48 acusados, entre mandantes e executores, condenados. No Centro-Oeste, foram 181 homicídios em conflitos de campo, 12 julgamentos e apenas 13 condenações (somente uma delas a um acusado de ter sido mandante).
Mesmo regiões mais abastadas do País vivem situação crítica semelhante. Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina tiveram um total de oito julgamentos e oito condenações para 77 homicídios. Em território gaúcho o índice de solucionamento dos casos é ainda pior: foram 15 vítimas fatais no período e somente uma pessoa, executora de um dos assassinatos, condenada.
A situação é igual à de São Paulo, onde 17 pessoas foram mortas no período e somente um suspeito de execução acabou condenado. Rio de Janeiro e Espírito Santo – respectivamente, com 16 e 36 assassinatos cada – tiveram um total de três executores e um mandante condenados.
Recordista no número de casos no Sudeste, Minas Gerais é o Estado que mais julgou e condenou os responsáveis pelos homicídios no campo ocorridos no País. A unidade federativa levou a tribunais 25 dos 68 casos registrados (um total de 89 vítimas fatais), ou seja, 36,7%. Vinte e seis pessoas foram condenadas.
“Onde os movimentos sociais têm mostrado mais força e onde a população faz pressão para as autoridades a questão da impunidade é diminuída”, avalia Batista. “Não é que o Judiciário desses lugares seja melhor aos outros no Brasil. É simplesmente uma pressão popular para forçar uma mudança de comportamento das autoridades. Infelizmente, por enquanto, é a única prática que tem se mostrado efetiva em relação a essa questão.”
Procurado para prestar esclarecimentos sobre os dados da CPT, o Ministério da Justiça não havia respondido ao iG até o fechamento desta reportagem.
Matéria do IG, publicada em 4 de março de 2015