O modelo mineral brasileiro é a face mais destrutiva da formação econômica brasileira, e a Ferrovia corresponde uma das veias abertas deste modelo. Onde ela está presente materializa um rastro de lágrimas, suor e sangue; e se manifesta onde o trem passa e onde o trem também não passa. É neste sentido que se encontra a comunidade de Serragem, em Caetité (BA), cortada pela Ferrovia de Integração Oeste Leste (Fiol). Essa história viva é contada por muitos personagens que sofrem na pele, as garras deste modelo de sofrimento. As histórias e imagens que seguem faz encontrar o passado e um presente que não logra futuro promissor, a não ser a resistência e a alegria desse povo que mantém um horizonte de esperança e um grito de indignação.
Valdelurdes Nunes, é uma dessas pessoas, nascida e criada na comunidade de Serragem, aponta com um olhar estarrecido o tamanho da destruição que as obras da Fiol causaram em sua propriedade, e afetaram de maneira irreversível seu modo de vida. Segundo ela, a empresa responsável pela obra indenizou 80 metros de largura de sua propriedade, mas cercou e destruiu mais de 100. A vida de Valdelurdes e seu marido, Antônio Nunes, foi duramente afetada, pois parte da propriedade destruída estava na baixada, área mais fértil de sua propriedade.
Não bastante a destruição, o casal agora andam mais de dois quilômetros por caminhos íngremes, cheios de obstáculos, subidas e descidas, que põem em risco a integridade física, pois do caminho estreito se enxerga o abismo por onde passará a ferrovia. O drama de Valdelurdes e Antonio é o mesmo vivido por mais de uma centena de famílias que moram na comunidade de Serragem, no lote 4F da Fiol.
A equipe do Sul/Sudoeste da Bahia, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), chegou a essa constatação durante o mutirão de visita, que ocorreu entre os dias 19 e 21 deste mês. Durante a atividade, a CPT aplicou questionários e realizou um diagnóstico junto às famílias, identificando os danos sociais e ambientais que a obra provocou na vida deles.
Os depoimentos dos outros moradores da comunidade foram semelhantes aos do casal Nunes, e ainda mostraram as casas danificadas pela detonação de explosivos nas rochas. Os moradores relataram também que funcionários da empresa os retiraram de suas casas para efetuar as explosões. “Eles colocavam a gente num ônibus, levava para bem longe, depois traziam de volta. A gente saia sem saber se ia chegar e encontrar a casa em pé. Quando chegava de volta o terreiro tava cheio de pedras, o telhado quebrado, as paredes todas rachadas”, relatou Sebastiana Nunes de Almeida, que mora a menos de 100 metros da estrada onde ocorriam as explosões.
O casal Eli Carlos Ferreira da Silva e Edia Moreira de Souza, por exemplo, passaram por um susto em sua casa recém construída por conta das explosões. “Estávamos na cidade aquele dia, e quando chegamos em nossa casa, nos deparamos com uma cena assustadora. Um buraco em nossa parede e uma pedra de mais de uma tonelada no meio da sala”, afirmou Edia. A pedra ainda permanece no interior da sala, esperando que a empresa cumpra com o compromisso de refazer sua casa, que teve as estruturas fortemente abaladas pelas explosões.
Algumas dessas famílias foram indenizadas pelos danos causados pela ferrovia, e reconstruíram suas casas, mas ainda assim continuam sofrendo com essa obra, como é o caso do morador Júlio Gomes Cardoso, a casa está cheia de rachaduras devido as explosões e o caminho de travessia para o outro lado de sua propriedade está com péssimas condições de passagem.
Além desses problemas, as estradas frequentemente sofrem interrupções e as famílias ficam sem acesso por falta de alternativas que deveriam ter sido feitas pela empresa. Acidentes já ocorreram na região por falta de sinalização e manutenção das estradas; indenizações com valores irrisórios; destruição de mananciais e reservatórios de água da comunidade, que asseguravam a sobrevivência das famílias e a manutenção dos meios de produção. Mesmo diante de um cenário de guerra, tendo em vista tamanha destruição, as famílias iniciam um processo de organização com perspectivas de reivindicar a reparação dos danos causados em suas vidas.
Obras da Fiol
A Fiol tem seu objetivo claro: favorecer o escoamento da produção de grãos do agronegócio do oeste da Bahia e da produção de minérios do sudoeste baiano, em especial da empresa de capital internacional Bahia Mineração, que projeta explorar minério de ferro entre os municípios de Caetité e Pindaí, para os períodos entre 2019 e 2030 (segundo a projeção da empresa).
As obras tiveram inicio no ano de 2011 no trecho saindo de Caetité rumo ao complexo portuário no município de Ilhéus, que não possuía local definido e muito menos licença de localização, nem de implantação. Uma obra orçada inicialmente em R$ 4,3 bilhões e já ultrapassou a cifra de R$ 6,5 bilhões ainda no ano de 2015, e está longe de chegar a seu final. A obra já ultrapassou todos os prazos do cronograma de execução e todas as cifras orçamentárias. Desde o ano de 2015 esse trecho das obras encontra-se paralisado e alguns trechos, como é o caso do 4F, que tinha as empresas Andrade Gutierrez, Barbosa Melo e Serveng, como integrantes do consórcio.
O trem da Fiol propõe levar as riquezas para Ilhéus e de lá para a China. O drama vivido pelas famílias atingidas pelas obras estão expressas nas palavras de Carlos Drummond de Andrade, com o poema “O maior trem do mundo”. O sentimento é o mesmo. Vai sumindo e um dia não sabemos se voltará. Pelo menos a vida do povo da Serragem nunca mais voltará a ser a mesma. Mudou muito e não foi para melhor.
“O maior trem do mundo” – Carlos Drummond de Andrade
O maior trem do mundo
Leva minha terra
Para a Alemanha
Leva minha terra
Para o Canadá
Leva minha terra
Para o Japão
O maior trem do mundo
Puxado por cinco locomotivas a óleo diesel
Engatadas geminadas desembestadas
Leva meu tempo, minha infância, minha vida
Triturada em 163 vagões de minério e destruição
O maior trem do mundo
Transporta a coisa mínima do mundo
Meu coração itabirano
Lá vai o trem maior do mundo
Vai serpenteando, vai sumindo
E um dia, eu sei não voltará
Pois nem terra nem coração existem mais.
(Publicado em 1984 – Jornal “O Cometa Itabirano”)
Texto e Fotos: Gilmar Ferreira/ CPT Bahia – Equipe Sul/Sudoeste