“Corrente ‘véio’ dá água boa e limpa, fazendo o que era seco verdejar” – Sá e Guarabyra cantaram. De suas beiras, entre São Félix do Coribe e Santa Maria da Vitória, na Bahia, à noite de 22 de setembro de 2017, abertura da primavera, somos aqui centenas de beiradeiros correntinos a testemunhar, ver, se encantar e se indignar. Tanta vida há tanto tempo dada. Até conseguimos imaginar Mestre Guarany, de baixo do tamarindeiro ribeirinho, a esculpir carrancas e simbolizar nelas a bela e forte cultura ribeirinha do vale do São Francisco. Mas nossos olhos aflitos também percebem o rio mais seco, assoreado, poluído… Tanta morte tramada a ameaçar. Romeiros e romeiras da 4ª Romaria do Cerrado, de quase uma centena de entidades populares, vindos de diversas paragens dos Gerais baianos e de outras, de perto e de longe, a concluir as atividades educativas, culturais e mobilizadoras da Semana do Cerrado iniciada no dia 10, vimos dizer: Basta! Deixem o Cerrado em pé! Prá corrente do Corrente continuar!
Obrigamo-nos ao testemunho público desta romaria especial, já a quarta, entre o desespero e a esperança que não morre, porque não suportamos ficar calados diante da devastação dos nossos Cerrados. Eles nos criaram e nos mantém como gente, sociedade e humanidade, em conexão com a Mãe Natureza, em interação e equilíbrio com tantas espécies outras de vida, abundantes e únicas. Vemos e vivemos na pele a ameaça cotidiana e crescente de toda esta vida se acabar.
A concentração da terra e da água, das sementes e dos investimentos públicos em grandes empresas agropecuárias aumentou a produção, mas de poucas commodities (soja, carne, leite, algodão…) para exportação e especulação no mercado de capitais. Agora, hidrelétricas, mineração, parques eólicos, solares… O campo esvaziado para domínio dos agro-energias-negócios globalizados, miséria camponesa e degradação ambiental. As cidades violentas e inseguras não param de inchar; a droga, o crime organizado aumentam nas ausências do Estado. Este modelo que se implantou nos Cerrados brasileiros, nos últimos 40 anos, nos marcos da chamada “Revolução Verde”, pretendeu nos enganar como discurso do desenvolvimento, da geração de emprego e renda, do aumento da produção para acabar com a fome… Balela! Hoje mais que evidente! Infeliz quem acreditou, mais quem sofre as consequências!
A responsabilidade maior por esta situação é de uns poucos, uma elite diminuta incrustrada nos poderes da República e do mundo globalizado, a urdir o acúmulo ilimitado de bens e riquezas, a qualquer custo, desfazendo leis, corrompendo órgãos, desviando verbas públicas, violentando a natureza, matando gente. Este ano, no Brasil, já são 63 camponeses e lideranças assassinadas (nove quilombolas só na Bahia); no ano passado todo foram 61. A culpa, pela qual um dia há de pagar, é do governo golpista de Temer, em conluio com o Congresso venal e o Judiciário conivente, a entregar de vez o País à voracidade do capital.
Um marco inicial desta trágica história: no dia de hoje, há 40 anos, foi aqui assassinado Eugênio Lyra, jovem advogado-poeta dos camponeses que resistiam à perda de suas terras e de seus direitos. Vimos celebrá-lo como memória, rebeldia e compromisso destemidos, necessários e urgentes na hora presente. Eugênio vive em nossas lutas, águas em que correm nossas esperanças que, como ele, não morrem jamais. Vive, por exemplo, criada há 35 anos, sob o impacto de sua morte, na AATR – Associação dos Advogados dos Trabalhadores Rurais, de tantos serviços prestados à causa camponesa na Bahia.
Se é verdade que “um rio é como um espelho que reflete os valores de uma sociedade”, queremos que o Corrente e todos os nossos rios reflitam os valores da agroecologia, da agrobiodiversidade, da solidariedade entre nós e com todas as formas de vida, do Bem Viver comum de todos. Esgotado o “desenvolvimento”, comprometemo-nos a recuperar o “envolvimento”, em atitudes cotidianas e solidárias, nas lutas de nossos povos e comunidades tradicionais – geraizeiros e ribeirinhos, indígenas e quilombolas, camponeses dos fundos e fechos de pasto. Com eles aprendendo e fazendo a preservação da terra, das matas, das águas, a defesa de nossos territórios e tradições culturais, a construção da soberania popular – alimentar, hídrica, energética, econômica e política. Com a coragem de Eugênio Lyra e a destreza de Mestre Guarany!
“Corrente ‘véio’ dá água boa e limpa, fazendo o que era seco verdejar. A gente esquece que ainda tem caminho à frente na corrente do Corrente…” Nela seguimos, mais fortes e decididos. Aos pés da Cruz Geraizeira, contando com a força de Jesus Ressuscitado e a ajuda de Santa Maria, juramos não esmorecer, até alcançar a Vitória. Conclamamos a todos e todas a entrar conosco nesta corrente. Basta! Deixem o Cerrado em pé! Prá corrente do Corrente continuar!
Santa Maria da Vitória, 22 de setembro de 2017.