Artigo especial[1] do cientista social Ruben Siqueira, da coordenação nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), recorda e atualiza a luta de Canudos, que até hoje é a maior mobilização do exército brasileiro: contra o povo. Nem mesmo a Guerra do Paraguai ou a Força Expedicionária Brasileira na Segunda Guerra superaram o envolvimento de tropas como no combate à rebelião liderada por Antônio Conselheiro. A violência, pública e privada, continua uma marca da vida nacional, multiplicam-se as mortes nas cidades e nos campos, o Brasil sendo hoje o mais violento país do mundo sem guerra declarada, uma guerra contra os pobres.
“A mensagem de Canudos fica cada dia mais atual e necessária. Atravessa os tempos e faz seguidores a ousadia dos conselheiristas, de recriar, nas entranhas do latifúndio respaldado pela República, a comunidade dos primeiros cristãos, onde a única lei era a do amor, pela qual — ainda que entre eles houvesse comerciantes bem-sucedidos — os bens eram partilhados em benefício de todos. A bandeira fincada para sempre no coração do Brasil continua a atrair os pobres e desvalidos. Porque lhes ensina a única lição possível: a eles só resta resistir e insistir na vida, contra os poderes da terra, porque — dizia Antônio Conselheiro — ‘só Deus é grande’. É essa fé, de um povo que não separa religião e vida, crença e luta, que move ainda hoje centenas, milhares, milhões de brasileiros pelos vastos sertões deste latifúndio chamado Brasil, a lutar pela terra e pelo direito à vida digna na terra.”
Leia o artigo na íntegra:
Canudos virou moda há 20 anos, em seu centenário. Houve enorme expectativa à época com o lançamento do filme de Sérgio Rezende, Guerra de Canudos (assista aqui), que foi, rodado na região. Teses, livros, reportagens e seminários foram feitos para a celebração dos 100 anos e continuaram a ser produzidos, trazendo releituras do episódio, discutindo aspectos novos, alimentando a infindável polêmica. O governo da Bahia criou no cenário da guerra o Parque Estadual de Canudos, onde uma equipe da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) realizou estudos de arqueologia histórica. Neste outubro de 2017, vários eventos, sobretudo promovidos por movimentos e entidades sociais, estão acontecendo na pequena cidade herdeira da Canudos conselheirista.
A atualidade de Canudos
120 anos é data por si mesma expressiva, seja do que for. Mas, em Canudos, o quê exatamente se está comemorando? O que tem esse episódio, o que ele encerra — esconde e revela — que atrai tantas atenções?
É que em Canudos, ontem e hoje, o Brasil se vê face a face consigo mesmo, encontra seu desencontro. Canudos não está na memória nacional apenas como uma chaga, a mais ignominiosa das lembranças do passado, onde e quando se detonou toda a carga de violência que mal se esconde sob o manto roto da decantada cordialidade brasileira, praga ideológica que sedimenta a assimetria das relações sociais. Está também como repetição, reincidência, contínuo revisitar. Está como matriz da identidade brasileira e chave de explicação do País e de seu infortúnio como nação moderna, que nunca alcançou de fato a modernidade. Está, pois, como atualidade, contemporaneidade.
Uma primeira prova disso? Ao implantar-se o Parque Estadual de Canudos, por ocasião do centenário, famílias de agricultores residentes na área, muitas delas descendentes dos antigos canudenses, tiveram que resistir à implantação das cercas divisórias do parque porque estas inviabilizavam o criatório de cabras, sua principal fonte de subsistência… Talvez até quisesse o governo da Bahia que se retirassem de vez, para não estragar a composição nostálgica e folclórica do quadro… Ainda bem que os cientistas da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) não embarcaram nessa…
Canudos levanta questões que incomodam a má consciência nacional. Por que mais da metade do efetivo e todo o aparato militar do exército à época foi mobilizada em cinco expedições contra pobres e frágeis camponeses, armados de poucas espingardas e muita fé? Por que ali, numa das regiões mais secas do País, uma multidão de 25 mil destes deserdados encontrou um lugar e construiu, sob a liderança do beato Antônio
Conselheiro, a maior cidade do interior do Brasil à época?
São perguntas cujas respostas foram por quase cem anos evasivas e tendenciosas, justificativas fáceis, ao menos as da historiografia oficial — como as do messianismo fanático, do monarquismo rebelde, antirrepublicano confesso, da desordem e do banditismo. Perguntas e respostas antigas e novas volta e meia vêm à tona, não só quando arredondam-se as datas, mas igualmente quando, ainda hoje, o mesmo monstro da violência pública, estatal e/ou privada, mostra as garras contra os pobres — desempregados, moradores de rua, indígenas (às vezes, estes confundidos com aqueles), negros e pardos, mulheres, crianças abandonadas, encarcerados ou simples transeuntes à noite nas periferias e favelas. Quando “razões de Estado” (o Leviatã?) massacram sem- terra e sem-teto pelas mãos da Polícia Militar…
Afinal, o que esses pobres desvalidos, aos molambos pelas estradas e ruas do País, podem representar como ameaça à ordem estabelecida, intrinsecamente desigual, e justificar tão absurda violência pública, radicalizada de maneira inédita depois do golpe de 2016? Eles são de fato a única ameaça com real poder de subverter a lógica do sistema e transformá-la: os alijados, mal-servidos e descontentes, os que não têm mais nada a perder.
Foi gente assim que gerou Antônio Conselheiro e constituiu, em Canudos, uma tentativa de sociedade diferente, uma alternativa àquilo que o País lhes negava, mais justa e igualitária, pelo menos onde se sentissem e fossem alguém.
É por demais sintomático que o maior envolvimento bélico brasileiro da história tenha acontecido contra o próprio povo e não na Guerra do Paraguai ou através da gloriosa Força Expedicionária Brasileira na Segunda Guerra, como quer acreditar a história oficial. A vitória final sobre Canudos é celebrada até hoje pelo Exército Brasileiro como data da sua modernização, quando foi usado pela primeira vez um canhão de repetição, a “matadeira”, como diziam os canudenses. Os pobres são o “inimigo interno”, muito mais perigoso.
A base latifundista do poder explica aquele e outros Canudos
Em meados do século XIX, o negócio do tráfico de escravos africanos, que fora a base do comércio internacional e da empresa colonial portuguesa, já não era mais compensador, com o advento do industrialismo e do capital industrial. Antecipando-se à iminente abolição da escravatura (o Brasil foi o último país a aceitá-la e proclamá-la), as oligarquias agrárias ascendentes —versão atualizada dos sesmeiros, que tinham sido a classe dominante da Colônia Portuguesa— trataram de criar a Lei de Terras, em 1850. À parte pretender a colonização de terras públicas —como muitos países à época, em especial os Estados Unidos da América—, na prática a lei promoveu sua apropriação privada fraudulenta e fortaleceu o latifúndio, ao decretar que a terra, antes doação da Coroa, passasse a ser adquirida por compra. Desse modo, ex-escravos indígenas, negros e camponeses pobres (moradores, agregados, rendeiros e toda sorte de lavradores não-proprietários), os “trabalhadores livres”, recém-libertos, foram mantidos afastados da propriedade da terra e do direito de propriedade, da cidadania que, na sociedade capitalista, nele se assenta. Foi essa a gente que “inventou” Canudos.
Ao final do século, a República estava madura e foi proclamada como expressão da nova ordem, que perpetuava o poder das elites proprietárias, recicladas nos “ideais republicanos”. Há quem defenda que Canudos deu à nascente e titubeante República a oportunidade de, pelo violento massacre, afirmar-se definitivamente. Para tanto valia a estigmatização dos conselheiristas como fanáticos monarquistas.
Nascido sob o signo do latifúndio, o Brasil nunca se livrou dele, do que representa como sistema político em que a sociedade é criada, dominada e instrumentalizada pelo Estado patrimonial e clientelista. Como diz José de Souza Martins, “a propriedade latifundista da terra se propõe como sólida base de uma orientação social e política que freia, firmemente, as possibilidades de transformação social profunda e de democratização do País”[2].
À concentração da propriedade da terra equivale a concentração do poder econômico, político, social, cultural em mãos de poucos e a consequente exclusão das maiorias empobrecidas, tidas como partícipes do Brasil mas na condição de “cidadãos de segunda categoria”, às quais se têm sistematicamente negado os reais direitos da cidadania. Ainda hoje é assim, vide a “bancada ruralista”, a mais expressiva base parlamentar de sustentação do governo golpista de Michel Temer. Basta ver as levas de desempregados e desprotegidos sociais jogados a cada dia pelos campos e ruas, em nome da “austeridade” e do “equilíbrio financeiro do Estado”.
As revoltas populares que sempre eclodiram no campo (e na cidade), desde o período colonial, testemunham a sistemática da exclusão. Guardadas as devidas distâncias no tempo e no espaço, sempre estiveram presentes as condições históricas que produziram Canudos e, depois (para não falar de antes), Contestado (fronteira Paraná/Santa Catarina, 1912- 16), Revolta do Sudoeste do Paraná (1957 — há 60 anos!). Igualmente, Trombas e Formoso (Goiás, 1948-64), Caldeirão (Ceará, 1926-36), Pau de Colher (Bahia, 1936-38) e, num outro patamar de organização política, as Ligas Camponesas (Pernambuco-Paraíba, 1954-64). Mais recentemente, os movimentos das ocupações de terra, como o MST, e episódios “a la Canudos”, como Corumbiara (Rondônia, 1995) e Eldorado dos Carajás (Pará, 1996). Todas elas manifestações camponesas pela terra e por condições de vida digna na terra. Todas duramente reprimidas.
É uma chacina. Levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de outubro de 2017 indica que, entre 1985 e 2017 ocorreram nada menos que 45 massacres no campo brasileiro, com 214 assassinatos em nove Estados do país –são considerados massacres com três ou mais mortes na mesma ocasião.
Os números da violência no campo em 2016, depois do golpe sob a liderança comum do capital financeiro e dos ricos do campo são dramáticos, conforme dados da CPT:
- 61 assassinatos, mais de 5 por mês (entre as vítimas, 16 jovens de 15 a 29 anos, 01 adolescente e 06 mulheres). No quadro dos últimos 25 anos, número superior a esse só em 2003, com o registro de 73 assassinatos;
- 79 ocorrências de conflitos por terra (ações em que há algum tipo de violência – expulsão, despejo, assassinatos, tentativas de assassinato, ameaças de morte, prisões etc). É o número mais elevado nos 32 anos de registros da CPT;
- 295 conflitos por terra no total (soma de ocorrências, ocupações, retomadas, acampamentos): média de 3,8 conflitos por dia. Número mais elevado desde 2006;
- 172 conflitos pela água, número mais elevado desde quando a CPT iniciou o registro em separado destes conflitos em 2002;
- 536 conflitos no campo (soma de conflitos por terra, pela água e trabalhistas): média de 4,2 conflitos por dia. Número mais elevado desde 2008.
Em 2017, até o momento, somam-se 63 destes assassinatos, sendo a metade (31) em massacres.
São lutas de ontem e de hoje, as mesmas. Sinais, às avessas, da capacidade de resistência, combatividade e utopia dos trabalhadores rurais brasileiros.
Passam os anos, viram-se séculos, a República passa de Primeira para Segunda, de Velha para Nova, da Nova para o regime de restrição brutal à democracia, com o golpe 2016; alternam-se ditaduras e democracias, militares e civis; os social-democratas tornam-se neoliberais; os neoliberais se assumem conservadores e até a ultradireita dá as caras… E a questão social continua sendo tratada como “caso de polícia”, quando não de “segurança nacional”.
E ao desejo popular de vida digna, participação e cidadania responde-se, como em 1897, com a força bruta. Porque é a única que consegue dar solução sem resolver o problema fundamental: solução final, extermínio —como fizeram os nazistas de Hitler, como antes os degoladores dos canudenses aprisionados, como hoje a PM… Segundo o antropólogo Alfredo Wagner, os massacres de índios, posseiros e sem-terra — os “bósnios” do Brasil, prejulgados e condenados à “limpeza étnica” — estão a ritualizar a passagem da chacina ao genocídio. [3]
Canudos revisitado pelas vítimas
Não é apenas como massacre fundamental da “terra-mãe gentil” que Canudos é lembrado. Há quase 40 anos, desde o início dos anos de 1980, há na região um movimento pelo resgate e atualização da mensagem de Canudos. Vencendo o preconceito e o medo, a população remanescente, por meio das organizações sindicais, associativas e pastorais, vem recuperando ao longo do tempo a experiência bem-sucedida de vida social e produtiva adaptada ao semi- árido.
Há revelações da pesquisa história que sepultam a “ideologia da incompetência” com a qual busca-se desmoralizar os pobres. Estudo arqueológico realizado pela Uneb na região de Canudos em 1996 indicou: “Aparentemente sitiados pelo exército, os canudenses contaram na realidade, durante toda a campanha militar, com o eficaz sistema de produção e abastecimento, o que nos indica importantes facetas da sabedoria sertaneja e sua forma própria de encarar a vida e o tempo”[4].
A mensagem de Canudos fica cada dia mais atual e necessária. Atravessa os tempos e faz seguidores a ousadia dos conselheiristas, de recriar, nas entranhas do latifúndio respaldado pela República, a comunidade dos primeiros cristãos, onde a única lei era a do amor, pela qual — ainda que entre eles houvesse comerciantes bem-sucedidos — os bens eram partilhados em benefício de todos. A bandeira fincada para sempre no coração do Brasil continua a atrair os pobres e desvalidos. Porque lhes ensina a única lição possível: a eles só resta resistir e insistir na vida, contra os poderes da terra, porque — dizia Antônio Conselheiro — “só Deus é grande”. É essa fé, de um povo que não separa religião e vida, crença e luta, que move ainda hoje centenas, milhares, milhões de brasileiros pelos vastos sertões deste latifúndio chamado Brasil, a lutar pela terra e pelo direito à vida digna na terra.
Só uma verdadeira reforma agrária e agrícola, a que nunca foi feita, aquela que definitivamente democratize o direito de propriedade e abra caminho para a efetivação dos demais direitos da cidadania — que não são concessões mas conquistas — poderá evitar que outros “Massacres de Canudos” se repitam. Embora Canudos continue para sempre a chaga que dói no peito do Brasil.
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[1] O artigo é uma atualização do publicado sob o título “Um Brasil chamado Canudos”, in Tempo e Presença, nº 295, set/out de 1997. Pgs. 27-31.
[2] Martins, José de Souza. O poder do atraso — ensaios de sociologia da história lenta. São Paulo: Hucitec. 1994, p.12
[3]Massacre, rito de passagem ao genocídio, in: Pastoral da Terra, nº 143, Goiânia, CPT. Jun. 1997, p. 10-11.
[4]Arqueologia história de Canudos. Salvador: Uneb. 1996.
Texto de Ruben Siqueira publicado no site Outras Palavras.