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CPT BAHIA

Pescadores tradicionais sufocados por deserto verde da Fibria S.A temem pelo futuro

 

©Thomas Bauer

Deserto Verde – os monocultivos de eucalipto – controlado pela Fibria S.A ameaça sobrevivência de pescadores tradicionais da região Sul da Bahia, que são criminalizados por defender seus direitos territoriais e a RESEX Cassurubá.

Reportagem / imagens: Thomas Bauer / CPT Bahia

Edição: Elvis Marques / CPT Nacional

 

Os olhos dos pescadores tradicionais mais antigos chegam a brilhar quando falam da riqueza dos manguezais, que fazem parte do Banco dos Abrolhos, situado no litoral Sul da Bahia. De acordo com vários estudos, na região dos Abrolhos localiza-se a maior biodiversidade marinha do Atlântico Sul. A região de longas costas, encontro de diversos rios com o mar, chama atenção pela elevada produtividade de pescado e mariscos, devido à grande quantidade de nutrientes dos rios, do mar e da própria vegetação que margeia o estuário [ambiente aquático de transição entre um rio e o mar].

Os mais velhos dizem que aqui nunca faltava peixe, caranguejo, guaiamum, camarão, siri, sururu, ostras, aratu, entre outros. A fartura era de encher os olhos e gerava um conforto muito grande para as famílias, numa das áreas pioneiras de ocupação e povoamento da Bahia e do Brasil. Décadas atrás, a região contava com uma frondosa Mata Atlântica, rica biodiversidade e inúmeras espécies endêmicas que, ao longo dos anos, principalmente com a abertura da BR-101 no ano de 1973, de Vitória (ES) para Salvador (BA), e chegada dos monocultivos [inicialmente mamão papaia e, a partir dos anos 1980, eucalipto], sofreu grandes impactos. No Sul baiano, o município de Caravelas também é conhecido mundialmente pelo Arquipélago de Abrolhos, onde podem ser avistadas as baleias que anualmente passam pela região.

RESEX em meio ao mar de eucalipto

Analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e atualmente chefe da Reserva Extrativista (RESEX) Cassurubá, localizada no município de Caravelas, Marcelo Lopes destaca que a reserva foi criada em junho de 2009. Hoje, a área conta com 100.687 hectares, e incide sobre os municípios de Alcobaça, Caravelas e Nova Viçosa.

A demanda da criação da reserva foi apresentada pelos próprios pescadores e pela comunidade local a partir de um conflito instalado com uma empresa que pretendia implantar em terras da União uma fazenda de camarão, o que ameaçava a sobrevivência das famílias pesqueiras e marisqueiras tradicionais. Diversas parcerias entre a comunidade, universidades, órgãos públicos, ONG’s, entre outras, contribuíram para impedir a implantação desse projeto e foram decisivas para a criação da RESEX no território do estuário e parte dos corais do Arquipélago.

Criado há oito anos, o atual grupo responsável pela gestão da RESEX, coordenado por Marcelo Lopes, prioriza em seu trabalho a organização social das comunidades – aproximadamente 1.600 famílias de pescadores que vivem em Cassurubá. Mas os desafios não param nesta região. Questionado sobre os monocultivos de eucalipto que chegam a sufocar os mangues e a zona de amortecimento da RESEX e a implantação do terminal portuário em 2002 da empresa Fibria S.A, Marcelo tem uma posição clara. Confira o vídeo:

A Fibria S.A., fundada em 2009, foi constituída a partir da fusão da empresa Aracruz e Votorantim Celulose e Papel, e é uma empresa brasileira de capital aberto e, hoje, líder mundial na produção de celulose branqueada. A empresa exporta o produto para mais de 40 países. Os dois maiores acionistas são a Votorantim S.A., que possui 29,16% das ações e o Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES), com 29,02% das ações, ou seja, o próprio governo brasileiro. São estes dois grupos que definem todas as diretrizes, a política e os diretores da própria Fibria S.A, que ainda possui 43% das ações em circulação (free float) vendidas no mercado financeiro.

A empresa conta atualmente com três fábricas no estado do Espírito Santo. Além destas, uma fábrica em construção no estado do Mato Grosso e inúmeros monocultivos de eucalipto em várias regiões do país, inclusive no extremo sul da Bahia, como é o caso de Caravelas. 90% da área deste município é ocupada pelo cultivo de eucalipto, segundo denúncia da vereadora Julinda Moraes, apresentada em Audiência Pública realizada no ano de 2014 na cidade de Teixeira de Freitas, a cerca de 80 quilômetros de Caravelas, para discutir os impactos causados pela monocultura do eucalipto na região. Notícia sobre esse fato foi publicada pela Agência Câmara.

A partir do eucalipto, a empresa produz uma pasta química com base de celulose, material comumente utilizado, por exemplo, para a fabricação de papel. Para se ter uma ideia, apenas na Alemanha o consumo de papel (papel toalha, copos de papelão, papel para impressora, lenço de nariz, e etc) anualmente exige per capita de 235 quilos de papel. Em comparação, no Brasil o consumo per capita é de 43 quilos de papel. Neste sentido, é importante mencionar que os consumidores e investidores dos países importadores são corresponsáveis diante desta expansão que provoca sérios danos socioambientais.

Violento processo de desterritorialização em andamento

Impressiona, desde a aterrissagem no aeroporto de Teixeira de Freitas até a cidade de Caravelas, o profundo processo de desterritorialização tanto na terra como daqueles que trabalham vinculados ao mar. A expansão do eucalipto, que ocupa hoje antigas áreas rurais de perder de vista, tem provocado sérios danos socioambientais e, em muitas situações, graves conflitos territoriais, inclusive mortes, como a do quilombola Diogo Oliveira Flozina, de 27 anos, pai de dois filhos, que teve sua casa invadida por três policiais à paisana, que, segundo testemunhas, mataram o jovem dentro de sua própria residência.

As famílias do Quilombo Volta Miúda, situado no município de Caravelas, local onde Diogo morava, conforme reportagem do portal Geledés (Instituto da Mulher Negra), acreditam que o quilombola foi morto por incomodar os interesses de produtores de eucalipto. O caso ocorreu no ano de 2011. “O quilombo de Volta Miúda é certificado pela Palmares, tem 120 famílias em estado de preocupante pobreza e sobrevivem com muito sacrifício por conta da dominação das empresas de eucalipto. Na região, vive em conflito com polícia e empresários, além da Volta Miúda, cerca de mais 7 comunidades que se sentem isoladas, sem apoio e cobertura nenhuma dos poderes públicos”, contextualiza a reportagem do Geledés.

A esta denúncia somam-se várias outras, como o ressecamento e a contaminação do solo da região, o desaparecimento de centenas de cursos d’água e nascentes, o desmatamento da Mata Atlântica, o declínio da agricultura familiar e a expulsão de dezenas de milhares de pessoas para as grandes cidades, como denunciado em recente Carta Aberta do I Seminário de Fortalecimento Comunitário da RESEX Cassurubá, que ocorreu no final do mês novembro de 2017.

Frequentemente, algumas toras caem no rio e no canal, o que tem provocado graves acidentes.

Além destes impactos, os pescadores alertam que o terminal portuário e a dragagem do canal do Tomba, ambos em de Caravelas, afetam negativamente os manguezais e todo ecossistema da RESEX Cassurubá. Com a dragagem, o canal – que antes servia apenas para a navegação de pequenas embarcações durante a maré alta – foi alargado e, em alguns pontos, chega a 20 metros de profundidade. Esta intervenção da Fibria S/A garante hoje a passagem de embarcações de grande porte, cada uma carregada com cargas equivalentes a 80 e/ou 100 carretas de toras de eucalipto, dia e noite, independente do nível da maré. Muitas das embarcações deixam o porto sobrecarregado e, frequentemente, algumas toras caem no rio e no canal, o que tem provocado graves acidentes e prejuízos para os pescadores tradicionais e seus barcos.

O terminal portuário no município de Caravelas, no Sul da Bahia.

Diversos pescadores suspeitam que o alargamento do canal também tem afetado a cadeia alimentar na região e, consequentemente, a baixa na produção de pescados e mariscos na região. Como o fluxo e a força da água aumentou consideravelmente a partir da dragagem, toda maré grande avança por cima das terras e derruba o que encontra pela frente, causando erosões, como pode ser visto na praia da Barra. Além disso, a força da água retira dos manguezais muitos nutrientes que antigamente ficavam guardados no estuário e perto da costa; em seguida, o pouco que ainda resta perto da costa é afetado novamente na hora da dragagem. Durante este processo, todo o material é retirado do fundo do mar e suspenso pela draga. Em seguida, dispersado nas correntes que levam os nutrientes para longe. Tanto que, segundo os pescadores mais antigos, nunca antes foi possível encontrar o camarão longe da costa, perto da Ilha Coroa Vermelha, o que pode ser um indicador de um processo de migração dos animais para buscar alimentos em locais mais distantes, ou seja, a alteração de toda a cadeia alimentar.

©Thomas Bauer

Outro impacto visível, principalmente na Ilha Pontal do Sul, que fica ao lado da boca do Canal do Tomba, é a morte dos manguezais. O material da dragagem (sedimentos) é despejado no final do Canal, em direção ao mar. As correntes marítimas, por sua vez, devolvem para o canal e às praias esse material, o que tem sufocado os mangues, como é possível notar na Ilha, que pode desaparecer num futuro breve.

Há oito anos foi produzido um estudo ambiental pela H.M Consultoria de Projetos e Engenharia Ltda e Aracruz Celulose S.A, intitulado “Dragagem do Acesso ao Canal do Tomba Caravelas/BA” (Relatório Técnico HM RT-007-08, 10 Volumes), o qual afirma que “as atividades de dragagem no meio ambiente marinho da região não impactam os recifes e corais, sendo detectáveis apenas impactos pontuais, de baixa magnitude e rapidamente reversíveis, que não ocasionam efeitos deletérios permanente ao meio ambiente”. O que tem sido questionado através de um parecer independente da Coalizão SOS Abrolhos, que engloba diversas entidades, ONG´s e universidades.

Embarcação da Fibria S.A ao entrar pelo canal do Tomba com mangue seco.

O documento produzido por este grupo sobre o estudo ambiental da Aracruz Celulose do dia 23 de abril de 2009 chega a afirmar que “é imprescindível que a Aracruz Celulose reconheça e assuma os impactos ambientais e socioeconômicos de suas operações no município de Caravelas, para que a partir daí, possamos ter uma discussão técnica fundamentada sobre as alternativas para mitigação e compensação destes impactos”.

Diante das graves denúncias apresentadas pela comunidade local e por organizações, a Assessoria de Comunicação da empresa Fibria S.A foi procurada para comentar sobre a problemática, entretanto, até a publicação desta reportagem, não obteve-se resposta.

Protesto dos pescadores

Diante destes impactos e das reivindicações não atendidas pela empresa Fibria S/A, não restou outra alternativa aos pescadores tradicionais, que organizaram um protesto nos dias 22 e 23 de  julho de 2017 para chamar a atenção das autoridades. Essa foi a segunda manifestação dos pescadores que ocorreu neste ano – a primeira foi realizada no dia 1º de julho. O pescador Chanto fala sobre a última mobilização:

O protesto pacífico durou quase dois dias, mas foi interrompido por uma ordem judicial concedida pelo juiz da cidade de Teixeira de Freitas, que acusou quatro pescadores e o movimento autônomo de violar o direito da empresa e ir e vir, bem como perda de lucros cessantes, tanto no local do embarque como na fábrica em Aracruz. Como o foco do protesto foi a empresa Fibria S.A., os participantes do ato garantem que outra acusação feita pelo juiz, de ter obstruído o canal e impedido o tráfego e entrada de outros barcos, não é verdade.

A pescadora Maria Braz, filha do município de Alcobaça, que há 40 anos reside em Caravelas e conhece a região como a palma da mão, lembra-se dos tempos de fartura. Segundo a mulher, com a instalação da Fibria S.A. na região muitas coisas mudaram. “Nós não somos errados, protestar diante desse desastre que está acontecendo. É um direito nosso. Cada dia a gente passa mais dificuldades”, ressalta ela.

Na verdade, os pescadores não esperavam e nem queriam que a tensão entre a Fibria S/A e os mesmos chegasse a este extremo. Os pescadores veem essa criminalização como uma forma de intimidação. Entretanto, ciente de seus direitos, os pescadores garantem que mesmo sofrendo esse processo de criminalização não vão desistir de lutar por seu território e a comunidade tem despertado diante da perda de seu espaço. Para os pescadores, a empresa mostrou mais uma vez como desrespeita as famílias de pescadores tradicionais dentro de seu território. Juntos, os pescadores estão conscientes de que perder o seu território tradicional significaria a extinção do pescador artesanal local e do seu modo de vida, bem como a destruição dos manguezais com sua infinita biodiversidade, possível de acontecer diante dos danos socioambientais já causados dentro da RESEX Cassurubá e da sua zona de amortecimento.

 

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