Dias turbulentos marcam os 22 anos do massacre de Eldorado dos Carajás no violento Sudeste do Pará, em uma semana que começou com o assassinato do lider quilombola Nazildo dos Santos Brito, 33 anos, da Comunidade de Remanescentes de Quilombo Turê III, com suspeitas de execução. Ele denunciava a Biopalma e o plantio de palma na Amazônia.
Na histórica fronteira da Amazônia – fronteira perene de conflitos intensos e ininterruptos nos últimos 50 anos – tanto o latifúndio avança nos retrocessos via o Judiciário, cada vez mais antidemocrático e reacionário no Brasil, quanto avançam, sobretudo, os movimentos camponeses e ambientalistas populares.
Por um lado, novas formas de agressões do latifúndio, sobretudo dentro do Judiciário: prisão política de Padre Amaro em Anapu, armada por máfias da grilagem de terra; ações de despejo contra acampamentos em curso; e o alarmante índice de 70 assassinatos no campo divulgados pela Comissão Pastoral da Terra em levantamento sobre a violência no ano passado.
Do lado da resistência, novas estratégias criativas dos movimentos sociais para enfrentar a brutalidade do latifúndio: luta contra a impunidade no caso do massacre de Pau D’Arco, que completa um ano dia 24 de maio, a maior chacina desde Carajás, tem audiência de instrução e julgamento em curso com policiais acusados de pistolagem respondendo no banco dos réus; e a Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa) entregou o título de doutor honoris causa post mortem a familiares do Frei Henri Burin des Roziers, histórico militante contra a violência do latifúndio e em defesa do campesinato na região. “A reforma agrária é uma tarefa inadiável”, declarou o reitor da Unifesspa Maurílio Monteiro na cerimônia em que as cinzas do frade francês foram depositadas num memorial, erguido no acampamento que leva o seu nome.
Frei Henri partiu no final do ano passado, em 26 de novembro, aos 87 anos. Foi um ícone da luta pela democracia, em defesa dos direitos humanos, contra a escravidão, pela reforma agrária, contra a violência brutal do latifúndio, da pistolagem, do ódio. Uma pessoa extremamente corajosa que enfrentou com altivez o terror da pistolagem no Pará.
Intelectual brilhante, formado em direito pela Universidade de Cambridge, com doutorado pela Sorbonne, na França, tornou-se advogado militante no Pará e iniciou a “guerrilha” jurídica contra a imunidade no Bico do Papagaio a partir dos anos 1980.
Após a sequência de assassinatos de sindicalistas em Rio Maria, até a morte do poeta e líder camponês Expedito Ribeiro de Souza em 1991, Frei Henri aplicou uma estratégia de documentar o caso – uma documentação que já vinha sendo construída na região por Padre Ricardo Resende, outro histórico militante -, reportar os crimes, e auxiliar nas investigações, cobrando e fiscalizando a polícia, ficando em cima do judiciário, guerreando em cada batalha jurídica. Era necessário por fim a onda de assassinatos, provocar o que ele chamava de “efeito dissuasivo”.
E conseguiu! Com o trabalho corajoso liderado por frei Henri, não apenas a militância jurídica mexeu no judiciário com a prisão inédita de pistoleiros e mandantes, como iluminou uma série de outras pessoas a também ocuparem esse espaço de luta.
Hoje, talvez o mais brilhante dos seguidores de frei Henri seja o advogado da Comissão Pastoral da Terra em Marabá, José Batista Afonso, que passou a estudar direito após o massacre de Eldorado dos Carajás, em 1996, e é responsável pelas maiores vitórias jurídicas contra o latifúndio (vitória que muitas vezes não significa ganhar, mas impedir que tragédias sejam perpetradas, como despejos violentos pela polícia).
A Unifesspa reconheceu Frei Henri com o título honorífico maior desta nova universidade, criada em 2013. Henri é o primeiro honoris causa da universidade, o que muito vai honrar todos aqueles e aquelas que passaram por ela, um reconhecimento do Conselho Universitário para a atuação da CPT na região.
O diploma foi entregue a Alan des Roziers, sobrinho de frei Henri, e Ana de Souza Pinto, companheira de luta e amiga de frei Henri na CPT de Xinguara, onde ela segue fazendo um trabalho heroico. Em um emocionante ato político, receberam o diploma da universidade e depositaram as cinzas numa capela construída especialmente para a guarda da memória daquele que em vida lutou incansavelmente pelos pobres e necessitados.
O acampamento Frei Henri, em Curionópolis, tem sido constantemente ameaçado e assediado por pistoleiros, que hora atiram contra os acampados, hora montam trincheiras com tratores para ostentar suas milícias de mercenários.
Não longe dali, o acampamento do MST Helenira Rezende, na fazenda do Grupo Opportunity, de Daniel Dantas, foi contaminado por um ataque químico pela pulverização de um avião. NO aeroporto da fazenda os sem-terras encontraram um estoque de agrotóxico, utilizado para atacar a natureza e os camponeses.
A CPT está sofrendo constantes e crescentes ataques. O relatório anual de violência no campo foi atrasado esse ano devido a constantes ataques de hackers, promovidos por setores do agronegócio, para impedir a documentação e a divulgação da violência no campo. Ano passado, foram 70 assassinatos, um numero absurdo de defensores da terra, das florestas e dos rios, ambientalistas populares em sua maioria, mortos pela ganância dos saqueadores e do latifúndio.
No Pará, a CPT enfrenta a prisão política, armada por máfias de grilagem de terra, de Padre Amaro, que segue o trabalho da irmã Dorothy Stang, em Anapu. Batista e a equipe jurídica da CPT hora estão em ação em Altamira, lutando pela liberdade de Padre Amaro, hora há mil quilômetros dali, auxiliando um esforço coletivo de advogados militantes para lutar por justiça no caso do massacre de Pau D’Arco, junto de advogados independentes e da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH).
A memória da violência contra os 19 sem-terras mortos em 1996 em Eldorado dos Carajás, os 10 trabalhadores e trabalhadoras rurais mortos ano passado em Pau D’Arco ou os nove mortos em Colniza, as 70 pessoas que perderam a vida por crimes do latifúndio, no Pará ela é lembrada ao lado daqueles e daquelas que lutaram contra essa mesma violência. Viva Frei Henri, viva a guerrilheira Helenira Rezende, viva Dorothy Stang, viva Marielle Franco!
Por Felipe Milanez/ Carta Capital