“Quando eu fico sem comêr, Tenho tantos versos
que fico qua-
se louca. Com o
estomago cheio O serebro, é semi-nórmal.
Eu chorei porque… as
ideias poeticas em exesso é horrível.”
Carolina Maria de Jesus, 18 de dezembro de 1959
Foi com a alma das mulheres de Pindorama que os caminhos para a espoliação – das terras e dos corpos – abriram-se em capitanias riscadas no novo mapa de mortes, desenhando fronteiras propositalmente traçadas nesta terra que queriam sem gente. Durante os séculos em que ser mãe foi sinônimo de ser fêmea da dor e estar em febre para subsistir, as mulheres indígenas morreram junto com suas famílias e adoeceram nas estradas obscuras da vida. Foram elas também que continuaram tecendo colares de inúmeras histórias, de diferentes memórias, fluxos, montanhas, riachos, espíritos. São elas que cantam o sagrado de um passado em presente resistência e de um futuro que não negará a sua história.
Foi no ecoar dos lamentos de seu cotidiano no cotidiano de outras que Luísa decidiu ser Mahin, e tantas mais ainda depois dela. Entre as vielas de povo empelourado preenchidas pelos gritos de mutilação e injustiça que as vozes-nagô do sofrimento em coro e sangue, banharam o levante escondido na cesta de quitutes que levava as orientações para a honesta desobediência aos brancos -donos de tudo. Nestas vozes de infâncias perdidas nos porões dos navios, as mulheres negras mantiveram vivos os cantos de gargantas que até hoje clamam por uma vida em liberdade, mantendo em seus tabuleiros os segredos do eco que reconhece em si a fala e o ato de resistência.
Foi nos passos secos de Severinas – noites que corriam altas as notícias das cercas que chegavam ao sertão. Onde a fome brava atacava qualquer idade, pedra sonhava com britadeira e cada vida – magra e ossuda – tinha sua particular privação. Ali, na caatinga pesada, foi a densidade vivida pelas lavradoras da terra trabalhando lado a lado em lamparina, que permitiu conspirar coletivamente sobre o dia que daqui a pouco vai querer raiar. Foram mulheres que nos gerais preservaram suas bênçãos. As mulheres da terra pariam ventos, derrubavam cercas, lançavam raios sob as máquinas em chamas e juntas tornavam-se água: cada vez mais forte. É delas que herdamos a coragem na luta que jorra onde hoje se diz Brasil.
Foi, então, nas águas que toda categoria de bicho-gente fez também suas raízes. O viver das águas fez com que as ribeiras de úmido vigor de igarapés amazônicos trouxessem a certeza de que a humildade se faria presente em cada remada forte rio acima. Não estão alegres, é certo. A fumaça escurece o céu de estrelas, o óleo mancha a firmeza dos dias, mas foram os ensinamentos deixados nas carrancas do São Francisco que mantiveram distante o cheiro de pólvora do mar agitado da história. As ameaças e as guerras atravessadas pelas mulheres das águas romperam ao meio o silêncio enquanto a quilha cortava as marolas das manhãs.
O fruto que cabe as mulheres de hoje talvez encontre fonte nas vastas referências que inundam a história silenciada das mulheres que as antecederam. Serão Tupis-Banto, Marias-Carolinas, Josefinas-Santas. Serão Lias de Itamaracá, Cátias de França. Serão Elizabeths Teixeiras, Serão Silvas-de-Jesus. Serão Roseli. Serão Marielle. Serão Elianes Potiguara e não passarão mais fome, fome de alma, fome de terra, fome de mata, fome de história. Serão Mães Menininhas do Gantois e Irmãs Dulce pois não se curvarão ao ódio, a ganância e ao sonho do ouro e do cobre. São Marias, tão bonitas em Dadá e carregam em seus ventres históricos a arte da resistência. São mulheres que em tempos de cólera cultivam a cura em seus quintais.
Serão Conceição Evaristo e não morrerão, pois decidiram viver.
Texto dedicado a todas as mulheres que correm em nossas veias e morreram e nasceram pela luta dos povos brasileiros.
Camila Mudrek – Agente da CPT Bahia pela Campanha de Combate ao Trabalho Escravo, Bacharel em Ciências Sociais e mestranda do programa Desenvolvimento Territorial na América Latina pela UNESP.