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CPT BAHIA

A pega da novilha de porteira

Thomas Bauer (CPT-BA/H3000) e Paulo Oliveira (Meus Sertões)

Criar o gado solto na caatinga sempre teve grande importância na vida de Francisco de Assis Ribeiro, conhecido por Chico Peba, 62 anos, casado e pai de seis filhos, morador na comunidade Poço Grande, na beira do rio Verde, município de Itaguaçu da Bahia.

“Mexer com os animais pra mim é a minha vida. Eu nasci e me criei trabalhando com meu pai” – conta.

Foi a paixão pelos bichos e a vontade de preservar a tradição dos vaqueiros no interior da Bahia que fez Chico Peba aceitar o convite do amigo Paulo César Santos Ferreira, da comunidade vizinha Nova Vereda, para organizar uma Pega da Novilha de Porteira.

Diferentemente de perseguir o boi no mato, onde os vaqueiros trajados com roupa de couro e gibão se embrenham nas caatingas, a pega da novilha acontece em um espaço limpo e preparado. Antes da competição, para a terra ficar fofa, é passado o arado no corredor cercado nos dois lados.

“A terra dura é ruim para o animal e para o vaqueiro. Ali se corre o risco de o vaqueiro cair. Assim não se machuca. E se for na terra dura corre o risco de se machucar” – explica Chico.

O cuidado com os animais e vaqueiros é uma das questões centrais. Muitos competidores presentes não participam da pega do boi na caatinga. Na pega de porteira, observa Chico, não corre sangue. A novilha não é derrubada pelo rabo. Ganha quem consegue arrancar e devolver no menor tempo a fita amarrada no pescoço do animal.

Além disso, nesta modalidade todos tem como assistir, ao longo do corredor, a dupla de vaqueiros cercando a novilha. Everaldo Carvalho, 50 anos, apaixonado pela tradição veio da comunidade Sanharó, município de Sento Sé, há 90 quilômetros para observar o movimento.

“Para participar de um evento como este: o vaqueiro tem que saber o lado de correr. Se ele quer tirar o colar do gado com a mão direito ele vai ter que correr do lado esquerdo. De mão trocada ele não vai conseguir um colar daquele nunca na vida” – ensina.

Segundo Everaldo, outro ponto importante para conseguir passar a mão na fita em volta do pescoço na rês é colar o gado no corredor da cerca:

“É preciso combinar com parceiro. Se eu tenho um cavalo melhor, falo com ele que vou sair na frente. Mas os dois vão pegar o mesmo lado do gado, encurralando-o na cerca para tirar a fita com facilidade. Mas, se deixar a novilha pegar o meio da arena, ela terá espaço para correr em qualquer direção. Aí, fica difícil” – diz.

A melhor tática para tirar a fita de couro do pescoço da rês é encurralando ela na cerca. Foto: Thomas Bauer

Chico Peba, que hoje não corre mais na arena, acrescenta que é importante lembrar que a Pega da Novilha visa incentivar e preservar a cultura dos vaqueiros da região. Por isso o espaço também garante a participação dos vaqueiros mirins, os mais jovens, além dos adultos acostumados a correr gado.

Para esta 4° Pega da Novilha Chico e Paulo prepararam 64 cabeças de gado. É importante que o todas as rês tenham um padrão bom. Senão pode haver reclamação da parte dos vaqueiros de que alguns foram favorecidos porque uma novilha corre bem e a outra é mais fraca.

No total se inscreveram 130 vaqueiros. Depois de várias corridas pelo corredor levantando poeira os vencedores foram Manchinha e Gigi. Eles conseguiram devolver a fita em oito segundos e oitenta e oito milésimos faturando o prêmio principal de 1.500 reais. A segunda dupla levou um prêmio de 1.000 reais e a terceira, 500 reais.

A terra da cancha é afofada para que durante a corrida não ocorra acidentes. Foto: Thomas Bauer

Conflitos

Bem antes de a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco e Parnaíba (Codevasf) começou a implantação o Projeto de Irrigação do Baixio de Irecê (PBI), em 2013, comunidades de fundo e fecho de pasto, ribeirinhas, quilombolas e de pesca artesanal já sofriam com a grilagem, capitaneada por empresas, fazendeiros e políticos. Desde as décadas de 1970 e 1980, eles perderam cerca de 105 mil hectares, após ameaças, agressões e expulsões. É nessa área que o projeto está sendo desenvolvido.

Divididos em nove lotes, a obra licitada pela (Codevasf), foi iniciada em 2013, com a alegação de que era necessário transformar o sertão baiano em área irrigada. No entanto, não foram levados em conta pelos governos federal e estadual os impactos sociais, culturais, ambientais e os conflitos gerados a partir da instalação do plano agrícola.

A construção e a operação do PBI causam sérios danos. Elas contribuem para o assoreamento dos rios São Francisco e Verde, prejudicando a agricultura familiar e os pescadores artesanais.

O Projeto de Irrigação do Baixio de Irecê causa danos para comunidades tradicionais. Foto: Thomas Bauer

A disputa por terra continua gerando embates e despejos, muitas vezes com a intervenção de forças de segurança. O modo de vida dessas populações também é afetado, pois com a redução da área os animais tradicionalmente criados soltos na caatinga, os bichos são impedidos de buscar alimento no campo. Sem recursos para plantar e criar algumas cabeças de gado bovino e caprino, os moradores em um futuro próximo podem ser forçados a abandonar a região e deixar para trás suas tradições.

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*Legenda da imagem de destaque: A quarta edição da Pega de Novilhas, em Poço Grande, Itaguaçu da Bahia, reuniu 103 participantes. Foto: Thomas Bauer

Leia mais:

A origem da competição

A resistência de Chico Peba

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