Projetos de mineração ameaçam acesso à água de 16 mil famílias da região semiárida da Serra do Salto, no sudoeste da Bahia. Confira matéria especial no Jornal Le Monde Diplomatique.
Em meados de 1910, Pedro e sua esposa Luzia chegaram à comunidade Taquaril dos Fialhos, localizada às margens da Serra Geral (a popular Serra do Salto), no município de Licínio de Almeida, a 750 km da capital Salvador, no sudoeste da Bahia. Eles tiveram nove filhos, que cresceram, casaram-se e fizeram da comunidade um território familiar. Quando os filhos assentaram a primeira pedra que sustenta a singela capela de São Pedro, certamente não imaginaram que a rocha, símbolo da firmeza, num futuro não tão longe poderia transformar-se em pesadelo.
No decorrer desses mais de cem anos a vida tranquila sofreu diversas ameaças. A mais recente é representada pelo geólogo baiano João Cavalcanti, presidente da Companhia Vale do Paramirim, que em suas entrevistas alega ter encontrado nessas terras depósitos promissores de rochas de minério de ferro, zinco, cobre, entre outros. Ele pretende implantar um novo polo de exploração mineral, a Província Mineral do Vale do Paramirim, projeto que se estende por 12 mil km2, e vem ignorando os protestos e reivindicações das 33 famílias que denunciam a incompatibilidade do projeto com os modos de vida da comunidade. A propaganda afirma que a mineração representa o impulsionamento da economia, mas não aponta as irreversíveis ameaças socioambientais que tal projeto significa aos moradores e às mais de 16 mil famílias da região semiárida abastecidas com as águas que brotam das nascentes da Serra do Salto.
A comunidade
A terra desse vale fértil, um pequeno oásis, cultivado tradicionalmente pelas mãos dos agricultores e das agricultoras da centenária comunidade de Taquaril dos Fialhos, já rendeu bons frutos. Se no início o arroz, o café e a cana de açúcar garantiram o sustento, atualmente, cultivam nas suas roças feijão, milho e mandioca. Criam seus animais em pastos e contam com uma grande diversidade de frutas, além de hortaliças e legumes em abundantes quintais produtivos. Todos esses alimentos servem para subsistência e são vendidos nas feiras locais. Já as frutas, produzidas em maior escala,[1] são comercializadas nos centros de abastecimentos em diversos estados, inclusive no Ceagesp, em São Paulo.
Apesar da abundância, ao longo da história as famílias passaram por vários desafios que foram vencidos graças ao esforço coletivo da comunidade. O acesso à escolarização, antes difícil, tornou-se um elemento importante para o avanço na luta pela garantia de outros direitos. Em 1997 foi fundada a Associação dos Pequenos Agricultores de Taquaril dos Fialhos (ASPAT) e, por meio da organização, de ofícios e de diversas reivindicações, a comunidade conquistou alguns avanços. Entre eles, a energia elétrica, a construção de uma fábrica de cachaça artesanal e vários projetos de assistência técnica. Também por meio do empenho coletivo foi construída a simbólica capela de São Pedro, padroeiro da comunidade, assim como a barragem das nascentes da Serra do Salto. Até hoje os próprios moradores, os guardiões das nascentes da Serra do Salto, se encarregam da manutenção dessa rede de abastecimento que fornece água para as 33 famílias e várias outras comunidades no entorno.
As nascentes da Serra do Salto: águas que brotam vida
A região localiza-se no encontro dos biomas Cerrado e Caatinga, tendo, assim, uma abundante disponibilidade hídrica e rica fauna e flora. A Serra Geral, em especial esta região em torno da comunidade, abriga várias nascentes perenes, a cachoeira “Sete Quedas” e sítios arqueológicos com pinturas rupestres, importantes para o turismo.
Essas águas alimentam o curso do Rio do Salto, depois encontram a Bacia Hidrográfica do Rio de Contas e percorrem uma região predominantemente semiárida, caracterizada pela escassez e alta variabilidade espacial e temporal das chuvas, com longos períodos de seca. Essas águas são as únicas fontes de abastecimento para aproximadamente 16 mil famílias, que vivem entre Taquaril dos Fialhos e o distrito de Tauape, assim como os moradores dos municípios de Licínio de Almeida, Caculé, Rio do Antonio e Guajeru, que também são abastecidos pela Barragem e Sistema do Truvisco, que tem o Rio do Salto como principal fonte.
Diante da possível instalação de empreendimentos de mineração nesta região, as famílias de Taquaril dos Fialhos, comunidades vizinhas e os próprios municípios de Licínio de Almeida, Caculé, Rio do Antonio e Guajeru podem perder esse essencial bem natural, que é a água. Além disso, a própria atividade minerária, pode trazer consequências irreversíveis para a população e o meio ambiente, com o agravamento do processo de desertificação já em curso.
As narrativas dos moradores demarcam que a luta pelo direito fundamental à água e por um território livre de mineração está dividida em duas fases: de 2007 a 2012 e de 2018 até os dias atuais, de forma mais intensificada.
Doze anos de resistência
Nesses doze anos de lutas e resistência contra a exploração mineral, os moradores têm se organizado para se contrapor as propostas das três empresas do setor minerário que já passaram pela comunidade. Em 2007 começaram as primeiras investidas de empresas mineradoras. Representantes da Bahia Mineração (Bamin) tentaram convencer os moradores a autorizar a realização de pesquisas minerais. A empresa pertence à mineradora Eurasian Natural Resources Corpotation (ENRC), com sede no Cazaquistão, que se instalou nas comunidades tradicionais vizinhas Antas e Palmitos, nos municípios de Caetité e Pindaí, por meio do projeto de extração de minério de pedra de ferro.
Desrespeitando a associação local, a Bamin tentou negociar individualmente com alguns proprietários, além de construir “picadas” em terrenos sem autorização. Além disso, desmatou uma parte da vegetação nativa com o intuito de fazer as perfurações no solo para análise de dados.
Por meio de mobilizações, os moradores impediram o avanço da empresa e em 2012 apresentaram em audiência pública os motivos pelos quais não aceitavam aquele projeto minerário – recurso finito, com jazidas que duram poucos anos e que causa impactos socioambientais irreversíveis –, contestando os argumentos da mineradora por temerem perder sua autonomia.
Depois de quatro anos, as ameaças por parte da mineradora contra a comunidade de Taquaril dos Fialhos cessaram. Porém a Bamin continuou avançando sobre as comunidades vizinhas de Antas e Palmitos, que tiverem que ceder seus territórios para pesquisa e exploração de minério de ferro. O resultado dessa ação foi a desapropriação das famílias que hoje se encontram em situação de miserabilidade.
A desistência da mineradora deixou a comunidade Taquaril dos Fialhos mais tranquila, contudo trégua durou pouco tempo. Com a saída da Bamin, a Greystone Mineração do Brasil Eireli foi a segunda empresa a obter licença de pesquisa mineral na região. Quando a empresa chegou à comunidade os moradores já estavam mais bem organizados e eram contra a realização da pesquisa mineral, pois sabiam das inúmeras contradições do projeto. A movimentação da população corroborou para a desistência da empresa em prosseguir com o projeto de pesquisa.
A terceira e mais recente empresa a obter licença de pesquisa na comunidade foi a Companhia Vale do Paramirim. Desde 2018 a mineradora tem assediado os moradores, virtual e presencialmente, para convencê-los a autorizar a pesquisa. Funcionários da empresa e seu principal responsável, João Cavalcanti, têm ido à comunidade, feito conversas individuais, oferecendo altos valores para compra de terras, nos locais onde eles pretendem fazer a pesquisa, mesmo depois de os moradores se posicionarem contra a iniciativa.
Em 16 de junho de 2020, os moradores, assustados pela abordagem invasiva, denunciaram pelas redes sociais o assédio promovido pelo empresário responsável da Companhia Vale do Paramirim. Eles registraram as ofensas proferidas por Cavalcanti quando impediam a entrada dele na comunidade: “Vocês estão tratando aqui agora é com o presidente da empresa. O cara que manda, acabou”; “Aquela galega ali, se ela calar a boca pra mim falar um pouquinho. Aqui é o presidente da empresa”; e “Se não quiser no bem, numa boa. Aí vai ser pior, se vocês querem enfrentar o Ministério de Minas e Energia, o governo federal… Eu também não sou brincadeira não, você baixa a bolinha também”.
Na sequência de sua fala o empresário desmoraliza os moradores, desrespeita as mulheres e os idosos que têm o direito de defenderem seu território. Mesmo com o assédio eles se posicionaram demonstrando a sabedoria popular que foi transmitida pelos antepassados, do modo de ver e observar os fenômenos naturais e de ler o mundo. Após o empresário insistir em dizer que as pessoas que lá estavam eram ignorantes, que não tinham conhecimento, um senhor de 70 anos o interrogou:
– Eu não entendo das coisas não, mas se despejar um balde de água aqui na minha cabeça pra onde é que ela vai correr?
Em seguida, respondeu o empresário:
– Não sei. Você tem seu direito de dizer, mas não significa que o que você está dizendo é verdade.
Insatisfeito com a resposta o senhor de 70 anos interrogou:
–- Não sabe? Olha o morro lá em cima? Olha o Taquaril aqui embaixo. Quando chover a água vai correr para onde? Para vocês tirarem o minério, quando vocês forem trabalhar lá, para onde é que vão essas coisas? Não vai atingir as nossas baixas? Quer dizer que a água vai subir? Quer dizer que depois que vocês começarem a explorar não vai chover lá no alto mais não? Para onde é que vai?
– Você não sabe, você não é engenheiro de minas, não é geólogo! – retrucou o empresário.
No entanto, o senhor não se intimidou pelos argumentos de falta de escolaridade e com muita sabedoria respondeu:
– Mas eu vejo meu amigo! Para onde é que correram as lamas que mataram o povo de Brumadinho?
Com intuito de esquivar-se da situação o empresário logo responde:
– Nós não temos nada a ver com Brumadinho e Minas Gerais, não! Eu gero 30 mil empregos e vocês geram quantos? Nenhum?
Em seguida, uma moradora argumentou:
– Nós não estamos aqui preocupados e pedindo emprego, nós estamos aqui querendo cuidar do que já é nosso!
– Você tá humilhando o pequeno, você tem estudo, mas não tem educação para conversar com nós – acrescentou outro morador.
Para demonstrar seu poder, o empresário fez questão de afirmar que sua vinda não se tratava de ameaças:
“Ninguém está ameaçando ninguém, vamos imaginar, a comunidade não quer, não aceita, e aí quem vai definir chama-se Ministério de Minas e Energia. Olha o pessoal não quer deixar entrar para fazer a sondagem, eles vão nomear o Exército ou Polícia Federal para acompanhar a entrada da sonda, o que vai acontecer vai ser isso.”
A empresa recentemente entrou na justiça contra um dos proprietários para obter o acesso ao território, bem como contra a Prefeitura de Licínio de Almeida, que até hoje não concedeu a licença da ocupação do solo. O prefeito Frederico Vasconcellos Ferreira garantiu, em reunião virtual no dia 12 de março de 2020, aos moradores da comunidade e que consta em ata que não foi concedido nenhuma autorização para a empresa.[2]
A região é considerada pelo Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema),[3] como de relevante interesse ecológico. Ou seja, qualquer intervenção na área precisa de estudos ambientais prévios e de licenciamento ambiental. Mesmo sem uma decisão, já que os processos estão tramitando em segunda instância, a Vale do Paramirim continua assediando os moradores, mesmo durante a pandemia do novo coronavírus.
A fé e as novas parcerias
São Pedro é o padroeiro que alimenta a fé e a esperança local. Não por acaso, Pedro é a pedra, a rocha que sustenta a igreja. Certamente, além de homenagear o patriarca da família dos Fialhos, os cristãos que escolheram o santo como padroeiro da comunidade não imaginaram que hoje ele é a perfeita analogia com a luta por um território livre de mineração.
Com esta fé e esperança a comunidade em parceria com a Comissão Pastoral da Terra da Bahia realizou um trabalho de sistematização que resultou no documentário Não é só uma terra… Nada paga a vida que temos aqui, com o objetivo de conscientizar ainda mais as pessoas na região. Em julho de 2020, foi lançada, em parceria com outras entidades e o Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), a campanha “Em defesas das Nascentes da Serra do Salto”, disponível nas páginas do Facebook e Instagram, além disso, a comunidade fez um abaixo-assinado solicitando que seja feito um estudo técnico, com envolvimento e participação efetiva da sociedade, para que seja criada uma Área de Proteção Ambiental (APA) na Serra do Salto, conforme discussão iniciada em 6 de agosto de 2010, na Câmara dos Vereadores de Licínio de Almeida.
A campanha pretende realizar um mutirão de informação para conscientizar as 16 mil famílias da região sobre os impactos das atividades minerárias para o meio ambiente e para a população. É imprescindível a proteção das nascentes e das águas da Serra do Salto, assim como de todas as outras fontes desse bem comum. Porque uma vez sem água, a vida de todos e todas está ameaçada.
Andréia Lisboa é filha da comunidade Taquaril dos Fialhos, professora e militante no Movimento pela Soberania Popular na Mineração.
Leila Lôbo é filha da comunidade Taquaril dos Fialhos e professora.
Thomas Bauer é contratado pela HORIZONT3000 (organização austríaca de cooperação para o desenvolvimento) e contribui com o regional da CPT Bahia e as comunidades acompanhadas.
[1]Segundo o Censo Agropecuário de 2017, no município Licínio de Almeida a safra de maracujá chegou em quase 2 mil toneladas, boa parte da comunidade Taquaril dos Fialhos, arrecadando R$ 2 milhões naquele ano.
[2] Ata da reunião com prefeito, 12 de março de 2021
[3] Ofício no 00023970939/2020 – INEMA/DG/DIFIS/CODEJ, Salvador/BA, 9 nov. 2020.
Por Andréia Lisboa, Leila Lôbo e Thomas Bauer – Le Monde Diplomatique