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CPT BAHIA

As órfãs da Vermelhinha

Criadora de cabras perdeu animal de estimação e passou a cuidar dos filhotes dentro de casa para eles não serem atacados por onça

Thomas Bauer (CPT-BA/ H3000) e Paulo Oliveira (Meus Sertões)

Luzia Maria Bonfim, a Leninha, da comunidade de Esconso, em Itaguaçu, tem vivido com o coração apertado devido a aparição de onças. Em uma semana perdeu quatro animais para a suçuarana que ronda a região desde que começaram os grandes desmatamentos para a construção do Baixio de Irecê [1]. Diante disso, passou a criar os filhotes dentro de casa. Leninha, porém, reconhece que as onças precisam sobreviver e que a devastação feita pelo empreendimento e por uma eólica também ameaça os animais silvestres.

Como é essa questão dessas aparições de onças que atacam as criações de animais?

Esta onças tá me trazendo apertada. Porque só essa semana já mataram quatro criações grandes. Olha os filhotinhos delas aí. Tô criando esses filhotes aqui dentro de casa porque ainda tem que tirar leite ou comprar leite para alimentar.

Foi a onça que matou a mãe delas?

Sim. Foi aí que a onça pegou. E o pior é que tem várias delas. Ontem mesmo eu tava ali do outro lado e vi dois rastros de onça. Não sei se você chegou a ir até lá.

A senhora já viu essas onças?

Agora no momento não. Mas dias atrás eu vi.

E de que tipo ela é?

É aquela avermelhada que o povo chama de lombo preto (onça parda). Um negócio assim. A preta eu nunca vi.

As onças sempre apareceram por aqui?

Era difícil, mas agora, depois desse fuá, desse Baixio, dessa eólica aí, ficou mais complicado agora pra gente. A eólica fica aí para os lados das serras de Itaguaçu e Uibaí. O pessoal fala que na verdade são os dois, a energia e o Baixio que estão interferindo pra que as onças apareçam.

Por que era difícil?

Porque elas ficavam nas matas. Hoje com o desmatamento do Baixio de Irecê, elas apareceram. Elas têm que procurar o meio também de sobreviver, de comer, né? Então aí está a questão.

O pior é que ninguém (dirigentes da Codevasf e de órgãos ambientais, governantes estaduais e federais,) fala nada. Só diz que tudo é para geração de emprego. Só que eu não tô vendo isso. Mas pra nós mesmo aqui, que somos moradores e criadores daqui, está sendo só prejuízo.

A senhora criava quantas cabeças antigamente?

Moço, toda vida a gente criou. Eu mesmo, eu tinha bastante. Agora mesmo eu tava com uns trinta e pouco. Se tiver muito agora é vinte. Ninguém sabe para onde vai ou como a situação vai ficar. Com certeza, a onça também tá com medo.

Mas a senhora também perdeu um bezerro?

Não. Minha referência é a cabra. Minha cabra era uma cabra de raça, de estimação. Era grande. E foi assim, logo assim quando eu soltei, com poucas horas, a onça comeu. Eu chamava ela de Vermelhinha,

De estimação por quê?

Por causo que é toda vida eu gostei dela. Ela era enjeitada [2]. E aí era a maior do chiqueiro.

E no total esse ano? A senhora tem ideia de quantos animais perdeu?

Um bocado. Tinha também umas marrãs (desmamadas) que tavam nos dias de dar cria. Elas sumiram. Até hoje nunca apareceu, nem morta, nem viva. Com certeza foi a onça também. Foi ela que comeu. E eu agora, todos os dias tenho que tá cortando rama pra ver se seguro o rebanho. Se não fizer isso, vai acabar.

Quer dizer que agora não solta mais? Solto. Mas só que assim: só solto mais tarde. Aí eu tiro rama pra ela não ir para longe, entendeu. Pra ficar mais próximo. E é todos os dias. Além disso, dou milho à tarde pra ver se se segura e se elas não vão pra longe. Porque mesmo assim com a rama não é o suficiente. E no caso, como meu esposo trabalha de diarista, fica só eu para dar a alimentação aos animais. E aí eu tenho que tá todos os dias nessa vida. Tem hora que nem a casa eu arrumo.

Luzia protege os filhos de Vermelhinha. Foto: Thomas Bauer (CPT-BA/ H3000)

Cortar rama e comprar milho não torna caro a criação?

Se torna mais difícil por causa é obrigado tirar da boca pra dar a eles. Porque vai deixar morrer de fome? Não pode. Tem que tá comprando milho.

Está quanto o saco de milho? Aonde compra? Traz como?

Nós compramos de 95 reais, no Rio Verde. São 80 quilômetros daqui. Daqui pra Itaguaçu é mais longe. Se torna mais caro porque ainda paga pra trazer. São 15 reais por saco. Tem vez, quando é um saco só, que cobram 20 reais.

E antes também tinha que dar milho?

Não. Foi depois desse fuá todo do Baixio. A gente que criava não tinha que ficar raçuando (arraçoar, dar ração). Antes, as cabras comiam por aí. Agora vê: há dois ou três meses temos uma onça aqui perto de casa. A gente ouve ela turrando [3]. Essa não está mais com medo da gente. Essa onça uma noite pegou um porco a uma questão de 200 metros perto de casa.

Esse saco de milho dá para quantos dias?

Se a gente não for jogar muito, três dias. E se for jogar, em dois dias termina.  Se não controlar, gasta 440 reais por mês. Por isso que eu seguro mais na rama, porque não vai ter esse dinheiro para dar.

E qual é a rama que tem agora?

Moço, eu mesmo agora só tô na rama de Juazeiro. A rama de Juazeiro que é a mais fácil para me subir (ri). A do Itapicuru é mais alto, mais liso para mim tá subindo.

A senhora não fica com medo de sair para cortar rama quando a onça está rondando o terreiro da casa?

É, tem hora que tem medo, outra hora não. Mas pai fala direto, pai fica brigando porque diz que ela é agressiva.

Ela só fica rodando e rosnando. E a zoada é feia?

Moço, parece um miado de gato na verdade. Eu pensei que era um gato. Depois que pai andou aí dentro ele chegou e disse para ter cuidado já que a onça tá andando bem aqui próximo.

 E como resolver isso?

Para resolver isso, eu nem sei. Tem aquela questão que a onça tá em extinção. Mas essas daqui apareceram foi muita. Aí ficou difícil. Porque a gente não pode matar.

Mas vocês já chegaram na Codevasf falando desses prejuízos, dessa situação?

Eu mesmo não. Vou te dizer logo, porque até fora das reuniões me deixaram. Quando acontece as reuniões não tô nem sabendo. Porque quando eu vou eu sempre falo. Ninguém não me comunicou mais nada.

Todo mundo perdeu animais aqui no Esconso?

Sim. Só que o povo fica calado.

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Notas de pé de página

[1] O Baixio de Irecê é um projeto de irrigação localizado no interior da Bahia, entre os municípios de Xique-Xique e Itaguaçu da Bahia. Abrange uma área total de 105.000 hectares, sendo 48.000 hectares irrigáveis. O projeto beneficia grandes latifundiários, com foco na fruticultura e outros cultivos irrigados. Fonte: Codevasf

[2]Bode ou borrego criado com leite em mamadeira na casa do proprietário porque a mãe dele morreu, abandonou o filho ou não tem como alimentá-lo

[3]  A vocalização da onça pintada é o esturro. Semelhante a um ronco profundo, usado para comunicação e marcação de território A onça-parda emite outros sons: ronrado, grunhidos ou miados.

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Legenda da foto principal: Leninha cria filhotes da cabra de estimação morta por uma onça em casa para que elas não sejam devoradas. Foto: Thomas Bauer (CPT-BA/ H3000)

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P.S – O texto foi reproduzido da forma como a entrevistada fala para mostrarmos a linguagem do sertanejo.

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