CPT – Sul Sudoeste
A comunidade do Àṣẹ Ojú Oòrùn e representações populares do município de Caetité realizaram, na última segunda (18), uma caminhada de mobilização para a luta e contra a discriminação e a intolerância religiosa.
A acolhida e o ponto de encontro foram no próprio terreiro da comunidade, de onde os manifestantes partiram em direção à sessão da Câmara de Vereadores para denunciar a violência criminosa praticada em favor da especulação imobiliária e contra a cultura e as práticas religiosas deste povo, ressaltando a necessidade de políticas de defesa dos direitos e de reparação por parte do poder público municipal e estadual.
Em nota publicada nas redes sociais no dia 13 de março a Comunidade do Àṣẹ Ojú Oòrùn denuncia que “sofreu um duro golpe de intolerância religiosa, racismo religioso, invasão a seu patrimônio religioso, destruição de símbolos religiosos e ataque a biodiversidade e aniquilamento de uma pequena mata sagrada e conservada pela comunidade para louvar os ORIXÁS (depositando ebós e oferendas) e para coletar as folhas ritualísticas e fitoterápicas. Esse espaço do terreiro era a morada do Èṣù Igbó que teve seu assentamento arrastado pelo trator. Além do mais, é nesse espaço onde está localizada a pequena casa do Bàbá Egum Ikulainá”.
Em razão dos fatos foi organizada a mobilização e a ocupação do plenário da Câmara Municipal de Caetité para a denúncia e a reivindicação do povo. Foi concedida a palavra a Alan Vinícius da Silva Ribeiro, bàbátebeşé do Ilé Àşe Orun, Apa Otun do Ilé Àiyé Azawany e Ojé Mariow responsável pelo culto a Egungun na comunidade atacada, que se pronunciou em nome desta.
No seu pronunciamento, Alan destacou que não é comum invasões a templos cristãos, mas quando ocorrem, os fatos são nacionalmente noticiados, tendo em vista ocorrência de crimes contra o sentimento religioso, previstos no art. 208 do Código Penal (1940): “Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso” e que prevê pena de detenção, de um mês a um ano, ou multa.
Entretanto, destaca ele, “segundo os dados do Ministério dos Direitos Humanos, somente em 2022, foram 1200 ataques a templos de religião de matriz africana, os quais não geraram nenhuma repercussão”. O ano referido por Alan Ribeiro ocorreu durante o governo Bolsonaro, período em que houve alta nesses índices. Pesquisa coordenada pela Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (RENAFRO), em que foram ouvidos representantes de 255 terreiros de todo o Brasil, apontou que quase a metade desses templos registrou até cinco ataques nos últimos dois anos do mandato do ex-presidente.
No pronunciamento na Câmara de Vereadores, Alan Ribeiro chama atenção para o fato de Caetité ser conhecida como “Terra da Cultura”, tendo como referência Anísio Teixeira que lutou pela cultura e pela educação pública, gratuita e laica. Ainda assim, ocorre um atentado gravíssimo ao primeiro princípio que nossos pais nos ensinam em casa, o respeito ao próximo.
Na comunidade do Àṣẹ Ojú Oòrùn encontram-se duas casas de candomblé que juntas somam mais de 40 anos de atividades religiosas. Nos últimos anos, o território vem sendo profundamente ameaçado pela especulação imobiliária, gerada pela expansão urbana, e sofrendo investidas de empresas donas de parques eólicos, que vem se ampliando e apropriando de áreas historicamente reconhecidas pelas populações locais como terras públicas ou devolutas.
Ao final destacou na sua fala: “Para que fique registrado em ata, solicitamos que providências sejam tomadas por parte do executivo e legislativo. se há uma licença ambiental emitida pela secretaria de meio ambiente do município, quais foram os limites, como essa licença foi outorgada sem uma consulta prévia quanto ao espaço à ser licenciado? Assim, é inadmissível que na terra da cultura não se respeite a cultura do próximo, e caso não haja respeito, somos uma sociedade de regras e direitos, e essas regras que preveem esse respeito devem ser respeitadas. Por fim, chega de coronelismo nessa cidade, vocês não vencerão no grito, ao povo de santo: continuemos juntos por nossos direitos, pois é uma só dor e uma só luta.”
Destaca-se que apesar da derrota do governo Bolsonaro nas eleições de 2022, as ideias que expressam o Bolsonarismo são anteriores ao seu governo e se fortalecem a partir de um projeto a longo prazo, materializado na chamada Teologia do Domínio. Leonardo Boff (2024), em texto publicado para o site a terra é redonda, destaca que a teologia do domínio nasceu nos EUA, por volta dos anos 1970, num contexto do reconstrucionismo cristão calvinista. Segundo ele, Calvino instaura no século XVI, em Genebra, um governo religioso extremamente rigoroso e violento, que aplicava até mesmo penas de morte. Sendo um modelo para o mundo todo, ressalta: “O dominionismo agrupa várias tendências cristãs fundamentalistas, inclusive integralistas católicos que postulam uma política exclusivamente religiosa, de base bíblica, a ser aplicada em toda a humanidade com a exclusão de qualquer outra expressão, tida como falsa e por isso sem direito de existir. É a ideologia totalizadora central para a direita cristã no campo da política e dos costumes.”
O ataque sofrido pela comunidade recentemente está dentro do âmbito de ofensiva ideológica liberal conservadora expressada na teoria do domínio que nega a pluralidade religiosa e, no caso específico de Caetité, associa-se aos interesses econômicos envolvendo a especulação imobiliária e a investida do capital internacional, que vem se apropriando e instalando grandes empreendimentos econômicos, como os minerários e energéticos. São esses interesses e projetos que vêm afetando as relações sociais dos povos de comunidades camponesas, tradicionais quilombolas ou fecho de pasto, quer seja em relação à produção material (comércio e consumo) ou à imaterial (cultura e espiritualidade). Esse processo conduz à expulsão dos povos do campo para a cidade, o que gera desemprego e negação de direitos e espaços.
O ato representou um grito dos injustiçados e excluídos numa terra construída com escravidão e violência da classe dominante, que logra influência nas representações políticas e tem domínio das propriedades privadas locais baseado nessas relações históricas: a manutenção do poder e do status quo. Essa violência no território de Caetité reforça a necessidade de unidade das classes populares em defesa de um projeto que tenha como âmago a soberania, a solidariedade e o direito à vida na sua diversidade. Esse projeto somente é possível a partir da consciência, organização e mobilização do conjunto das classes populares.