Comunidades tradicionais de Barra, Muquém do São Francisco, Ibotirama, Santa Maria da Vitória e Correntina no Oeste da Bahia, tiveram três audiências para relatar situações de conflitos em seus territórios.
Amanda Alves e Diosvaldo Filho – Comunicação da Comissão Pastoral da Terra – BA
Entre os dias 27 e 29 de agosto, comunidades tradicionais do Oeste da Bahia receberam a 4ª Missão da Comissão Nacional de Enfrentamento à Violência no Campo (CNEVC). A Comissão, instituída pelo Decreto nº 11.638, de 16/08/2023, visa acolher relatos e buscar encaminhamentos e soluções em casos de maior complexidade relacionados a conflitos socioambientais no campo, bem como, encaminhamentos para garantir os direitos humanos básicos das comunidades envolvidas. As atividades da CNEVC, hoje coordenada pela doutora Cláudia Maria Dadico, contou com o pioneirismo do Desembargador Gercino José da Silva Filho, importante Ouvidor Agrário. Esta Missão, no Oeste da Bahia, faz parte dos esforços da Articulação Quilombo Liberdade (AQL), da Comissão Pastoral da Terra – Centro Oeste (CPT-CO), da Associação de Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais da Bahia (AATR-BA) e do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).
Foram realizadas três audiências públicas, onde representantes das comunidades puderam relatar situações de conflitos em seus territórios. O primeiro dia de escuta, 27, ocorreu no quilombo de Igarité, distrito de Barra, às margens do Rio São Francisco. O momento reuniu cerca de 20 comunidades, dentre elas, quilombolas, indígenas, ribeirinhos, posseiros e fundo e fecho de pasto e contou com a participação de aproximadamente 150 pessoas.
Foto: Thomas Bauer – CPT Bahia/ H3000
Dentre os conflitos mencionados, os relacionados à posse e propriedade da terra foram marcados nas diversas falas dos representantes das comunidades. Os representantes da comunidade de Torrinha, do município de Barra, relataram sobre a necessidade de regularização do seu território e suas preocupações com a manutenção das suas culturas e identidade. Os comunitários clamam: “queremos o nosso território livre para poder plantar e criar os nossos animais”. Além disso, os representantes ainda falam sobre questões relacionadas ao Casarão da comunidade, o qual guarda memória das suas histórias, e que os comunitários estão proibidos de entrar.
“Os indígenas da região oeste são invisibilizados”
A assessora jurídica Lethícia Reis de Guimarães, do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), relata a invisibilidade enfrentada pelos povos indígenas do Oeste da Bahia, destacando a resistência e a permanência dessas comunidades na região, apesar das constantes ameaças. Ela ressalta o caso do povo Xacriabá, que enfrenta sérias dificuldades para acessar seu território ancestral, sendo alvo de ameaças e violações de direitos. O povo Pankarú, por sua vez, vê suas terras invadidas por fazendeiros, o que agrava ainda mais a situação de conflito e desrespeito aos direitos territoriais indígenas. Além disso, o povo Potiguara, que divide o território com os Pankarú, também enfrenta desafios semelhantes, lidando com a pressão externa e a necessidade de proteger suas terras.
Letícia também destaca o protagonismo das mulheres indígenas na luta pela defesa de seus territórios e direitos. Elas estão à frente das mobilizações e têm desempenhado um papel crucial na resistência contra as violações, demonstrando força e liderança nas comunidades. A assessora reforça que o papel dessas mulheres é fundamental para a continuidade da luta, garantindo que as gerações futuras possam preservar suas culturas, identidades e territórios.
Além disso, os representantes das comunidades indígenas Tuxá, Kiriri e Tapuya, presentes na audiência, expressaram suas preocupações com o Rio São Francisco, mencionando o impacto negativo do desvio do rio e o assoreamento em suas regiões. Eles também alertaram para os constantes desmatamentos, que não apenas ameaçam o meio ambiente, mas também a sobrevivência e os modos de vida tradicionais dessas comunidades. As preocupações ambientais estão no centro de suas reivindicações, pois o equilíbrio ecológico do rio e das florestas é essencial para a continuidade das suas culturas e tradições.
Em Santa Maria da Vitória e Correntina camponeses denunciam grilagem de terra
O segundo dia de audiência, 28, aconteceu em Santa Maria da Vitória, com as representações de comunidades de Fundos e Fechos de Pasto e Comunidades Quilombolas da Bacia do Rio São Francisco, reunindo aproximadamente 70 camponeses. As comunidades denunciaram as violências ocorridas nos Territórios de Destocado, Gleba Jacurutu-Salobro, Poço de Dentro e Mutum – Santa Maria da Vitória e Cachoeira município de Santana, denunciaram o processo histórico de grilagem dos territórios de uso comunal, evidenciando que uma única família pratica atos de grilagem na região a quase 40 anos, insistentemente invadem as áreas com atos violentos e ameaçam as comunidades e pessoas, que vivem com medo e sem paz.
Estiveram presentes também, representações das comunidades quilombolas de Lagoa da Piranhas, Lagoa do Peixe, Fortaleza, Barrinha do São Francisco do município de Bom Jesus da Lapa e Barra do Parateca município de Carinhanha, que denunciaram crimes ambientais, a grilagem de seus territórios, atos de violência, e a morosidade do Estado no âmbito Nacional e Estadual em relação a regularização fundiária dos territórios.
Fotos: Amanda Alves – CPT Bahia
Já o terceiro e último dia de escuta, 29, no município de Correntina, reuniu mais de 600 pessoas na quadra de esportes da Escola Anísia Silva Moreira, localizada na sede do município. O encontro contou com a presença de 60 comunidades de Fundos e Fechos de Pasto, representando cerca de 20 territórios. Essas comunidades preservam seus modos de vida, cultura e tradições, utilizando o manejo tradicional para a conservação das chapadas e veredas, em uma das regiões mais estratégicas para a proteção das águas, as áreas de recarga do Aquífero Urucuia.
O Município de Correntina, conforme apontam dados do Caderno de Conflitos da Comissão Pastoral da Terra (CPT), de 1985 a 2023 foram registrados 132 ocorrências configurando a região mais conflitiva do Estado da Bahia. Durante as oitivas foi se evidenciando estes dados, em cada depoimento, que reuniram uma série de denúncias dos atos de violências contra pessoas e comunidades tradicionais. Foram relatos de ocorrências de violências e a ausência de investigações, a grilagem dos territórios de uso comunal, por empresas multinacionais e grandes fazendas, as arbitrárias autorizações do Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (INEMA) para supressão de vegetação nativa em áreas com Ações de Discriminatórias e griladas, liberação desenfreada de outorgas, a morosidade do Estado da Bahia com as Ações Discriminatórias, que se arrastam há anos, sem nenhuma conclusão, proporcionando o avanço do agronegócio sobre os territórios, expondo as comunidades. Os Fecheiros denunciaram o Estado da Bahia pela negligência e falta de ações concretas, que possam mitigar os conflitos por terra e água nessa região.
De 2009 a 2012, foram executadas cinco (05) Ações Discriminatórias Administrativas Rurais na Bacia do Rio Corrente, Gleba Jacurutu-Salobro, Gleba Arrojelândia, Gleba Salto, Gleba Clemente/Vereda do Rancho, e a Gleba Porteira de Santa Cruz. Desde então houve uma paralisação nas Ações Discriminatórias, e somente em fevereiro de 2021, foram abertas Ações Discriminatórias Judiciais, compreendendo os territórios de Capão do Modesto, Porcos, Guará e Pombas, Cupim e Vereda da Felicidade. As Discriminatórias tem se arrastado de forma morosa no Judiciário, e nenhuma área comunal foi de fato destinada às comunidades, que vivem de forma tradicionalmente nestes territórios há mais de 07 gerações.
Fotos: Amanda Alves – CPT Bahia
Durante as Audiências todas as vozes clamaram ao Governo do Estado da Bahia e aos órgãos federais e estaduais presentes pela celeridade das ações, a identificação e bloqueios de matrículas fraudulentas, a exemplo da 2280, fiscalização, revisão e paralisação de liberações de supressão de vegetação nativa e outorgas por parte do INEMA.
Além de todas essas problemáticas supracitadas, os Territórios de Capão Grosso e arredores (06 territórios), denunciaram a invasão de suas as áreas, pela Companhia de Transmissão de Energia Elétrica Paulista (ISA CTEEP) na implantação de empreendimento de Linha de Transmissão e Subestação de Energia.
Os relatos denunciaram que nos últimos meses a ISA CTEEP tem assediado as comunidades, na tentativa de forçar a entrada em seus territórios para a realização de estudos para a futura implantação da linha de transmissão. A empresa ignora o posicionamento e a reivindicação das comunidades, que solicitam que antes de todo e qualquer processo, fosse realizada uma Consulta Prévia, direito assegurado pela Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Conforme relatos, a empresa se apoia na narrativa do interesse público, que justifica a instalação do empreendimento, e ignora o direito das comunidades e a importância socioambiental da área de veredas onde estão as principais nascentes que abastecem as comunidades e deságua no Rio Arrojado.
As oitivas receberam denúncias também de representantes do município de Formosa do Rio Preto, que relataram práticas semelhantes a da Bacia do Rio Corrente, denunciando a forma violenta do agronegócio em seus territórios.
Os momentos tiveram a presença dos órgãos Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (INEMA), Ouvidoria Agrária Nacional, Secretaria de Justiça e Direitos Humanos, Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (SEPROMI), Coordenação Nacional Quilombola (CONAC), Coordenação de Conflitos Fundiários (CCF) do Grupo Especial de Mediação e Acompanhamento de Conflitos Agrários e Urbanos (GEMACAU), Polícia Militar, Polícia Civil, Polícia Federal, Defensoria Pública e Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA), e das entidades Articulação dos Povos, Associação de Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais (AATR-BA), Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e Fundação de Desenvolvimento Integrado do São Francisco (FUNDIFRAN).
Foto: Thomas Bauer – CPT Bahia/ H3000
As oitivas foram coordenadas e mediadas pela doutora Cláudia Maria Dadico, diretora do Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Agrários do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) e coordenadora da CNEVC. Todas as comunidades receberam devolutivas sobre suas reivindicações, com a perspectiva de uma resolução breve.
Foto: Thomas Bauer – CPT Bahia/ H3000