Reunidas em Goiânia (GO) nos dias 27 e 28 de maio, cerca de 60 mulheres de vários regionais da CPT em todo o Brasil discutiram o patriarcado e a luta histórica das mulheres contra a imposição desse modelo, e contra sua reprodução dentro de organizações sociais, como a CPT.
Com assessoria de Romi Bencke, pastora luterana e secretária geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), o grupo debateu as dificuldades enfrentadas por mulheres dentro de nossas organizações, dentro de nossas Igrejas, bem como a manutenção do patriarcado em nossas instituições. Romi trouxe, também, a nova visão do kiriarcado, neologismo criado por Elisabeth Fiorenza, que transmite a ideia de intersetorialidade, por enfatizar as relações de privilégios e poder que estão por trás das dicotomias tradicionais de opressão. Fiorenza visa redefinir a categoria de patriarcado em termos de estruturas múltiplas e relacionais de dominação. De acordo com o seu conceito, patriarcado refere-se a um sistema em que as mulheres são oprimidas pelos homens; o kiriarcado é uma complexa rede de opressões e privilégios que se reforçam uns nos outros.
Divididas em grupos que traziam os nomes das mártires da luta e da CPT, tais como Margarida Alves, Irmã Dorothy, Olga Benário, Marta dos Anjos, Regina Pinho e Nicinha, as mulheres partilharam suas maiores dificuldades nos espaços que ocupam na Pastoral. Muitas dessas dificuldades apresentadas eram comuns na realidade de vários estados, como poucas mulheres nas instâncias de coordenação e decisão, e mesmo quando ocupam esses espaços, a elas são delegadas tarefas de secretaria e administração, enquanto as atividades políticas ainda ficam prioritariamente com os homens.
Gênero e os desafios para a igualdade
“Não devemos ter medo de olhar criticamente para as nossas institucionalidades, para as nossas instituições, pois nossas instituições são humanas e reproduzem a violência da nossa sociedade e seus preconceitos também. Falamos em censura, mas e a censura dentro das nossas instituições? Muitas vezes as críticas não são faladas, não são discutidas”, refletiu a pastora.
Romi falou ainda da necessidade de mantermos sempre um espaço aberto de diálogo e discussão sobre todos os temas, mantendo a diversidade e a pluralidade de opiniões e debates, para que cada um e cada uma seja respeitada dentro de sua particularidade. “A gente quer partir de uma lógica de igualdade, não é colocar homens em segundo plano. Na questão da diversidade também se vive isso. Vivemos no Brasil uma realidade de extermínio das diversidades. Os preceitos da instituição precisam ser revistos e adequados, para que possamos continuar seguindo-os. Precisamos criar espaços seguros de diálogos onde nenhum tema é proibido, todos são permitidos”.
A própria questão de gênero passou a ser mal vista ou demonizada em alguns espaços cristãos. “Algumas Igrejas resolveram tirar gênero como grande ‘inimigo do reino’. A nossa missão primeira é pensar nas pessoas que estão sofrendo violência, inclusive violência de gênero. Esse Deus pode estar preso na lógica do capital, virou um Deus que precisa ser alimentado pelo sacrifício humano, deixou-se de lado a ideia do Deus generoso e misericordioso. Quem induz, portanto, que temas como gênero são perigosos é o próprio mercado, que vai criando inimigos fictícios, para justificar determinadas violências”, analisou Romi.
“A Eva pecadora, até hoje a gente paga pelo pecado universal, é pior do que a dívida externa, não acaba nunca! A partir dessas simbologias foram delegados para nós os papéis. O parto foi colocado como um castigo, sendo que qual é o dom maior do que o dom de dar a vida! Isso se repete em praticamente todas as culturas, a lógica de dominação da mulher. Elizabeth Fiorenza, por exemplo, diz que Deus é inominável – está no primeiro testamento – ‘quem és tu? Qual é o seu nome? Eu Sou o que Sou’. Ela passou, portanto, a escrever D**s, o que não foi bem aceito por muitos teólogos. Gênero é uma categoria de análise, é simples, não é ameaçador, ele só pode ser ameaçador porque questiona como se organiza nossa sociedade, e por ir nos micropoderes, em como eles se organizam, como a estrutura de um casamento se organiza, a divisão de papéis e tarefas, tanto em casa como fora dela. É um tema que envolve a discussão das relações de poderes”, completou a pastora.
Desde antes da década de 1970 as mulheres já contribuíam para ciência, literatura e tudo mais. O que fomos produzindo ao longo da história da humanidade entretanto, não apareceu, e muito do conhecimento das mulheres ao longo dos anos foi atribuído aos homens.
Por um feminismo que questione todas as formas de desigualdade
Para Romi, precisamos pensar na diversidade que nos torna desiguais, porque o próprio sistema gera essas desigualdades. E exatamente por isso, a ideia da diversidade sempre tem que estar ancorada na ideia da igualdade, seja ela a partir da perspectiva econômica, da transformação, do acesso ao trabalho, aos direitos à terra, entre outros.
Nancy Fraser, por exemplo, questiona o que ela chama de “feministas cor-de-rosa”, que consegue articular muito bem o discurso do feminismo e da diversidade, sem, porém, problematizar a desigualdade econômica e a luta de classes. “O feminismo tem que ser uma perspectiva radical de igualdade”, enfatizou. E tem que ser buscado em todos os espaços sociais, desde a linguagem inclusiva, pois linguagens indicam relações de poder, aos espaços decisórios dentro da nossa sociedade.
Há teorias de que no caso do Brasil nós nunca tivemos uma democracia, mas experiências de democracias oligárquicas, a participação e a representação política fica sempre na mesma elite – branca, masculina e rica – então a nossa participação política é restrita. O acesso à cidadania pelas mulheres é muito recente, cerca de 100 anos apenas. “Nem toda democracia representa a participação de todas as pessoas. Existem formas de democracias que excluem. Lembrando Ivone Gebara, a gente não quer as brechas, a gente precisa ocupar os espaços. Brechas nós sempre tivemos ao longo da história. Temos que entender que a diferenciação não é pelos órgãos genitais e gênero biológico, mas pelos papéis que foram colocados em cada um na sociedade, e à mulher colocou-se o espaço doméstico, e aos homens o espaço político”, complementa Romi.
Após refletir sobre a realidade patriarcal-kiriarcal Romi vivenciou com o grupo alguns instrumentos de leituras feministas da Bíblia, à luz do capítulo 12 do livro de Números. Muitas desconstruções foram feitas a partir de perguntas dirigidas ao texto e pelas intencionalidades teológicas inerentes ao mesmo. Entre estas, a tentativa de deslegitimar o papel de uma liderança feminina popular (Miriã), frente aos conflitos vividos pelo povo, no contexto da organização para a entrada na Terra Prometida.
Das mulheres veio a poesia, da poesia veio a Carta Final
Mulheres brasileiras na CPT
Hoje, maio de 2017, rostos de várias regiões
Trazendo consigo na bagagem muitas razões
Amando o Deus da Vida, elas amam o seu chão
Se estão aqui hoje, não importa onde, há uma paixão.
Dia de encontro das mulheres da CPT
Felizes estamos por aqui estar com você
Saudamos nossas mulheres de compromisso com a Vida
Sempre participando, alegres, partilhando, estão na lida.
Nosso país tem jeito se nos valorizasse
E deixasse que nossas culturas expressassem
Nossas riquezas, cada uma sabe que tem.
Estamos sempre em movimento, felizes, vários além.
O sol não se apagará, a lua não será minguante
Desde que haja união e com mulheres pensantes
Da natureza, da beleza e diversidade somos amantes
Vem mulher, não nos acomodemos, vamos avante.
Quantas Margaridas já passaram pela Pastoral
Dorothys, Olgas, Martas, Reginas, Nicinhas e nós atual
Mulheres urbanas e rurais, todas com problema igual
Buscam ocupar o seguro, lideranças num espaço harmonial.
A Bíblia nos faz refletir sobre a mulher
Os frutos que através da luta vamos colher
Nossa história, nossos direitos, juntas rever
Estudar, discutir, debater vamos sempre fazer.
Discutir cidadania cristã, o sonho de liberdade
Queremos participar, construir, isso não é vaidade
Guerreiras de todos os cantos, participam nesse mutirão
Trazendo sabedoria, conhecimentos, caminhando vão.
De tudo o que acontece, tiramos lição de amor
Caminhamos juntas, refletimos, partilhando nosso saber
Cada uma com seu olhar atento, trazendo seu alento
Falar em gênero, feminismo, valores, será nosso contento.
As mulheres são lindas, cada uma do seu jeito
Felicidade, força feminina sempre trazem no peito
Se estamos aqui nesse lugar, juntas, foi você que quis
Obrigada Deus, por esse encontro, cada uma feliz.
Há luzes de muita esperança e transformação
As mulheres presentes estão atentas e em ação
Por isso aqui estamos reunidas de coração
Fazendo desse momento, mística e canção.
Na CPT pensamos com o coração, há indignação
Há momentos em que pressionamos por nossa valorização
Refletir sempre, pensar na vida, discutir nossa posição
Todo momento é lindo, de conscientização com nossa inspiração.
Autora: Neide Furlan – CPT Santa Catarina
Goiânia, 28 de maio de 2017.
As participantes do 1º Encontro Nacional de Mulheres da CPT