Desmatamento aumenta número de ataques de onças às criações de sertanejos na região do Baixio de Irecê
Thomas Bauer (CPT-BA/ H3000) e Paulo Oliveira (Meus Sertões)
Quando Jadiel, um menino franzino e esperto de 11 anos, brecou o cavalo na porteira que dá acesso ao terreiro da casa simples onde mora com os pais e irmãos ainda estava ofegante, com o coração disparado. O inusitado encontro com uma onça suçuarana [1], popularmente conhecida nas caatingas como onça bodeira, deixou o menino muito assustado.
Sentado em um banco de madeira debaixo de um pé de umbu, ele conta que o encontro com o bicho ocorreu no final de uma tarde. Como de costume, o menino foi buscar o jegue na roça do pai, montado no seu cavalo velho sem nome. Jadiel carregava uma panela com milho para atrair o jumento.
“Eu me aproximei da baixada e vi a onça atrás da moita. Ela rosnou. Só fiz rumar [2] a panela e saí em disparada” – conta. Este episódio ocorreu na localidade de Várzea da Cerca, no município de Itaguaçu da Bahia, há 547 quilômetros de Salvador, capital da Bahia. Nos últimos meses, agricultores e pequenos criadores de animais de comunidades tradicionais [3], ao longo de 70 quilômetros do rio Verde, relatam encontros com felinos e acham marcas de pegadas por todos os cantos.
A presença das onças próximas às comunidades e os ataques aos animais de criação se intensificaram por causa do projeto de Irrigação do Baixio de Irecê, uma espécie de versão da obra de transposição do rio São Francisco em território baiano.
O empreendimento, capitaneado pela Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco e Parnaíba (Codevasf), órgão vinculado ao Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), foi realizada para beneficiar empresários do agronegócio e causou desmatamento em uma área de cerca de 105 mil hectares [4].
Nascido e criado em Várzea da Cerca, Gilberto Caetano da Silva, 45 anos, disse que toda a vida teve onça na região. No entanto, depois da desmatação a situação piorou. Até agora ele perdeu 50 cabeças de bodes:
“A tendência é haver mais devastação nos municípios de Xique-xique e Itaguaçu da Bahia antes do final da obra. Já foram liberadas mais licenças para desmatamentos. Vão acabar com tudo até à beira do rio. Assim, as onças invadirão as casas” – prevê, angustiado. A lista de prejuízos acumulados desde 2022, quando novas autorizações para supressão de vegetação foram expedidas pelo Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), só fez aumentar. As licenças foram concedidas apesar de existirem lotes do projeto do Baixio, limpos e leiloados, sem produção.
“As da minha família estão acabando e das 50 que eu cuidava para outra pessoa só restam 20. Vou mandar avisar ao dono para vir buscá-las. Vou cuidar apenas do nosso moinho” – planeja
Além da onça bodeira, foram avistadas, embora raramente, onças-pintadas, ameaçadas de extinção.
Na comunidade Poço Fundo, Gildásio Félix Bonfim, 54 anos, não sabe mais o que fazer para conter o ataque de onça. Ao longo dos últimos 15 meses, ele perdeu 150 cabeças de criação miúda.
“Agora tem outra onça maior rondando. Ela já matou dois bezerros e 10 poldros” – conta com tristeza.
Na roça vizinha, Albino Dias de Luna, 61 anos, também se queixa. Das cento e poucas cabeças, entre bodes e ovelhas, que possuía só restaram quatro, que agora ficam presas em um cercado atrás da casa. Já do gado que insiste em criar, perdeu 15 bezerros. Ficaram apenas os animais adultos.
“As vacas chegavam tudo com o úbere cheio porque o bezerro já não existia mais” – lembra. Para evitar a morte dos bezerros sobreviventes, o criador agora os alimenta com ração comprada em Jussara, a 90 quilômetros de distância, e com ramas de arbustos que retira das matas.
Cevar o gado e a criação miúda em uma região onde o costume é soltá-los nas caatingas, sem cercas, torna-se muito dispendioso. Além disso, altera o gosto da carne dos animais criados com a vegetação nativa. Verdadeiras iguarias, muito procuradas pela população urbana de Irecê e Xique-Xique, que estão desaparecendo. Outra consequência é a redução da fonte de renda dos criadores, cuja manutenção nas roças estão ameaçadas.
A situação é bem-parecida na comunidade Muquém. Hoje, o medo impede os criadores de irem atrás do rebanho no final de tarde, como era de costume. Ivete Ribeiro mostra satisfeita as cabras e ovelhas que seu pai deixou de herança. Com muito esforço, ela conseguiu aumentar o criatório e chegou a contar com trezentas e cinquenta cabeças.
“Foi antes deste desmatamento aí. Antes dos lotes dos irrigantes ficarem próximos aos locais onde nosso rebanho come e aonde a onça caça nossas criações” – lamenta.
Do rebanho de Ivete hoje restaram aproximadamente cento e cinquenta cabeças de pequeno e grande porte.
ESTRATÉGIA
Para defender-se dos ataques e inúmeras perdas de criação, Nilton Barbosa da Silva, 64 anos, também morador em Muquém, arrumou uma tática diferente.
“Compro fogos de 12 tiros e solto para afugentar as onças” – diz ele, que conta ainda com três cachorros para defender o rebanho.
Se não fosse “a tentação das onças”, ele calcula que pelo tempo que se bate era para estar beirando cerca de mil e quinhentas cabeças de criação”. Hoje, no entanto, diante da realidade, tem menos de quatrocentas cabeças no imenso chiqueiro feito cuidadosamente com vara de madeira.
Nilton também já avistou a onça quando foi procurar pelo rebanho. Viu onde a suçuarana sangrou a criação e encontrou carcaças e uma cabeça intacta. Como de costume os criadores marcam as orelhas da sua criação para identificar quem é o dono. O catingueiro aprendeu que a onça não come no local que matou a presa. Geralmente leva para o arrastador, local da caatinga onde não há movimento nem barulho. Ali, esconde o alimento debaixo de ciscos.
Antigamente, segundo os moradores da região, as onças iam beber água no rio e acabavam pegando um animal e outro. Depois se afastavam. Com o avanço do desmatamento, restou como refúgio apenas uma pequena faixa de caatinga entre os últimos lotes no final do canal do projeto Baixio de Irecê e as comunidades na beira do rio Verde. Isso não evitou que várias pessoas se deparassem com onças na estrada de terra, que liga às comunidades e a BA 052, entre Irecê e Xique-xique.
Geni Dias Ribeiro, vizinha de Nilton, lembra que antes do projeto começar a mata era extensa e tinha muitos animais.
“Era muita caça: caititu, veado, peba, tatu-bola. Eles entretinham as onças, que não atacavam o rebanho de ninguém” – recorda.
Mulher disposta, Geni costumava ir atrás do seu criatório montada numa bicicleta ou quando necessário de pé mesmo. Às vezes, a cabra dava crias no mato e era preciso ir atrás para trazer os borregos para o chiqueiro.
“Se deixasse eles no mato, além das onças, os urubus e os carcarás matavam e comiam” – afirma.
Depois dos ataques constantes de suçuaranas, a família lhe convenceu a não ir mais atrás das cabras sozinha. Geni diz que agora está muito perigoso e que das 100 cabeças sobraram apenas 27 “das maiores”.
“Parece que está chegando o dia em que os nossos filhos virão nos visitar e a gente não vai ter mais nada para comer” – expressa-se com tristeza Ana, da comunidade Conceição, que cria apenas 10 cabeças e não se aventura mais pela caatinga sozinha.
Já o vizinho Sebastião Souza Bonfim, 51 anos, não desistiu da lida porque não tem outro modo de sobrevivência na região. Do rebanho de duzentos cabeças, atualmente conta com cento e vinte caprinos.
O último rasto de onça que avistou foi semana passada, bem perto de casa. Mesmo assim, ele prende e solta o rebanho todos os dias para evitar prejuízo. Sebastião diz que quando os bichos dormem no malhador (lugar onde a criação descansa na caatinga), a onça já chegou a matar oito deles.
Depois das chuvas, quando a terra está molhada e os arbustos da caatinga cheios de folhas, há fartura de alimento para os bodes e as ovelhas. Neste tempo é mais difícil da criação voltar para o chiqueiro à noite. Assim, fica mais vulnerável.
ANGÚSTIA
Sebastião, Ana, Geni, Nilton, Ivete e muitos outros que nasceram e se criaram nestas terras estão sem saber o que fazer. Denunciar mais uma vez a situação e exigir respostas da Codevasf não parece mais um caminho sensato como menciona Gilberto:
“A Codevasf nunca dá retorno. Ela faz as coisas e a gente ouve dizer que o caso está na justiça, mas parece que os juízes e juízas estão sempre do lado dela. A gente não pode fazer nada e eles estão sempre desmatando” – revolta-se
Os mais antigos permanecem nas terras angustiados, com medo de perder a fonte de renda. Resistem porque não sabem fazer outra coisa. Já os mais jovens desistem diante de tanto prejuízo e do desgosto de ver os animais mortos no campo. Para eles, a única opção é fechar as porteiras definitivamente.
As comunidades perceberam que está em curso a extinção da população que tradicionalmente soube conviver com o semiárido baiano sem destruí-lo. Muito antes de se falar em aquecimento global, eles aprenderam por gerações a importância de proteger o meio ambiente e as fontes de água, hoje ameaçadas pela agricultura irrigada em larga escala e os pesticidas utilizados. Quem resume melhor o ponto em que a situação chegou é Albino, pequeno criador:
“Se o cara morar aqui e não criar nada, mais antes caçar um buraco e se enterrar.”
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Notas de pé de página
[1] Onça parda ou puma. É o segundo maio felídeo das Américas. Chega a medir 1,68 metros de comprimento, sem cauda, e a pesar 103 quilos.
[2] Jogar a panela em uma direção
[3]São comunidades de fundo e fecho de pasto, e ribeirinhas, localizadas em Conceição, São José, Muquém, Poço Fundo, Poço Grande, Várzea Queimada, Esconso e Maravilha
[4] Para saber mais sobre o projeto, leia “Comunidades tradicionais ameaçadas por projeto da Codevasf” .
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Legenda da foto principal: Criadores prendem bodes e cabras no chiqueiro para evitar que os animais sejam mortos por onça. Foto: Thomas Bauer (CPT-BA/ H3000)