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CPT BAHIA

Direito à terra, condição à dignidade humana

Desde o início da história da humanidade, as questões territoriais ocupam lugar central, seja nas comunidades ancestrais ou posteriores à descoberta da agricultura, o que possibilitou a fixação das pessoas em determinada porção do espaço, atribuindo-lhe o sentido de pertencer e ser pertencido/a ao mesmo tempo.

A posse da terra é condição fundamental para o acesso à alimentação, moradia, saúde, lazer, segurança e LIBERDADE, sem ela, as possibilidades de produzir e reproduzir a vida são restritas.

Podemos lembrar da história do povo Hebreu descrita no livro do Êxodo, na Bíblia. O povo foi escravizado pelo Rei do Egito e o caminho da libertação estava em enfrentar o poder opressor da época, organizar-se para superar os desafios da jornada e retornar à terra prometida de Canaã, terra “onde corre leite e mel” (Êxodo 3). Da mesma forma, na história dos nossos ancestrais, nações seqüestradas em África e povos originários deste lugar que foi chamado de Brasil, em termos continentais de América Latina, “o controle sobre o direito à terra foi historicamente utilizado como instrumento de opressão e colonização”, a expropriação da terra significou o início e a perpetuação do cativeiro, até que se retome o direito, “na marra”, pois aqueles que regem as Leis, o fazem em causa própria.

Neste sentido, Tatiana Emilia Dias Gomes, em um dos seus artigos publicados nesta Coluna, demonstra claramente como sistemas jurídicos, políticos e econômicos podem ser administrados para garantir o privilégio dos/as brancos/as no acesso à terra, e propõe a ideia de “racismo fundiário” para tratar dos conflitos e mecanismos que restringem o acesso à terra e exercem violências sobre os territórios e corpos dos povos negros, indígenas e comunidades tradicionais. (Coluna Vozes das Mulheres, março 2019).

As histórias de “racismo fundiário” estão muito próximas de nós, fazem parte da nossa história enquanto nação e de muitas histórias pessoais que talvez nem saibamos ou estejamos começando a descobrir. Estão presentes nas/nos nossas/nossos ancestrais, negras e negros, indígenas de diferentes nações expulsos de seus territórios, lavradores e lavradoras, extrativistas, migrantes, andarilhos/andarilhas, pessoas que precisaram ou precisam pedir para sobreviver, pessoas escravizadas ontem e hoje, trabalhadoras domésticas, operários/as, trabalhadores e trabalhadoras sazonais… Estão presentes em muitas mulheres sobre as quais o acesso à terra é ainda mais desigual, a quem a cultura patriarcal cospe, espanca, estupra, apedreja, cega e mata.

Esses povos vivem à margem do mercado e da sociedade capitalista, seja no campo ou na cidade, e são alvos constantes de preconceitos, discriminação, racismo, são vítimas de ataques aos seus territórios e corpos, com sucessivas violações de direitos humanos fundamentais, entre eles, o direito à vida e aos meios para produzi-la. Expulsos da terra e excluídos na cidade, a luta pela vivência se torna um verdadeiro calvário. Os  povos negros, indígenas e as mulheres sabem bem o significado da crucificação de seus corpos, perfurados por balas, asfixiados, mutilados, queimados…

Esses povos são ao mesmo tempo protagonistas das resistências, conforme aprendemos com o Patrono da Educação Paulo Freire. Somente o(a) oprimido(a) se liberta ao descobrir sua opressão e ao engajar-se na luta organizada, em comunhão com outros(as) oprimidos(as).

 Neste momento em que o sistema político e econômico hegemônico no mundo é confrontado por um vírus letal, o coronavírus, o atual contexto do Brasil tem causado ainda mais preocupação, visto que o país está sendo governado por bandidos com motivações neofacistas, cujos planos de aproveitar a pandemia para “passar a boiada” sobre os territórios e os corpos, em benefício de interesses privados, foram revelados sem nenhum pudor em reunião ministerial divulgada pelo Supremo Tribunal Federal que, por sua vez, tem sido alvo de constantes ameaças. Não é de hoje que a democracia brasileira vem sendo atacada, mas nunca estivemos tão perto de um novo golpe cívico-militar.

Quando se está à beira do abismo, não há como seguir em frente, o inimigo precisa ser enfrentado e vencido. Somos 70% contra o governo e as ideias neofacistas, a favor da proteção da vida e da Democracia. É preciso  fortalecer o caminho que vem sendo apontado com as ações de solidariedade e cuidado, a agroecologia, as mobilizações antirracistas que estão ganhando visibilidade, na permanência e no retorno à terra-território-abrigo. A pandemia está forçando inúmeras pessoas a voltarem aos seus lugares de origem, como alternativa de vivência. Os povos, comunidades tradicionais e os movimentos de luta pela terra conhecem bem o caminho. Muitos em diversas partes do mundo estão defendendo suas terras e seus jeitos de viver, ou lutando para retomar seus territórios para garantir seus modos de vida, suas economias comunitárias, em equilíbrio com a natureza.

Na Bíblia, Javé, o Deus dos pobres, está sempre presente na travessia do povo rumo à libertação com seu braço forte. Ele derruba do trono os poderosos (Magnificat – Lucas, 1,39-56). De igual modo, os povos negros, as nações indígenas sempre contaram e continuam contando com as suas divindades, os orixás, os guias de luz, os encantados/as que estão presentes dando orientação e força para vencer os inimigos. Então, coragem, avante! Muito mais do que o medo paralisante, temos viva a esperança!

Maria Aparecida de Jesus Silva -Mulher negra. Agente da Comissão Pastoral da Terra. Bacharel em Teologia, Pedagoga, Especialista em Desenvolvimento e Relações Sociais no Campo. 

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