Vivemos tempos de distopia, mas como disse Ivone Gebara num encontro do coletivo nacional de mulheres da CPT (agosto/2020), “é preciso enxergar as gotas de alegria, prazer e gozo que dão sentido à vida” e animam a caminhada. Na mesma direção, Cora Coralina em um dos seus belíssimos poemas diz: “A vida tem duas faces: positiva e negativa, o passado foi duro, mas deixou o seu legado, saber viver é a grande sabedoria…. Nasci em tempos rudes. Aceitei contradições, lutas e pedras como condições de vida e delas me sirvo, aprendi a viver”.
Certamente não é fácil acordar todos os dias e ter notícias de fatos que revelam os aspectos sombrios dos tempos vividos, seja por problemas da estrutura capitalista, patriarcal, racista, escravista, neocolonial e genocida que constitui o Estado Brasileiro, perpassando a forma como estão organizadas as relações sociais. Não só no Brasil, mas em boa parte do mundo ou por problemas conjunturais. Podemos citar como exemplo, as alterações na legislação a fim de garantir maior facilidade para “passar a boiada” do agrohidronegócio, da mineração, das grandes empresas energéticas e outras políticas que seguem a agenda neoliberal devastadora, enquanto a população (e não só) padece com a destruição dos biomas, com a invasão de seus territórios tradicionais, com despejos de seus lares e com o desemprego que já ultrapassa 13 milhões de pessoas no país.
Soma-se a isto, a situação das mulheres que além das múltiplas opressões entrelaçadas vividas historicamente, com os efeitos da pandemia da Covid 19, retrocedem anos nos direitos conquistados, sobretudo, no acesso ao mercado de trabalho. Os/as jovens veem seus sonhos cada vez mais distantes e o mundo é tomado pelo crescimento devastador de problemas relacionados à saúde mental e emocional, estando o Brasil entre os primeiros países no ranking mundial de depressão e ansiedade, tendo no suicídio a terceira principal causa externa de mortes no país, de acordo com o Ministério da Saúde.
Diante disto, felizes são aquelas/aqueles que não se deixam contaminar pelo vírus da indiferença, capaz de naturalizar as desigualdades e humanizar a desumanização dos corpos marcados por diferenças de classe social, origem, raça, etnia, sexo, gênero, idade/geração, corporalidade e outras configurações identitárias que demarcam as condições de opressão e subordinação no modo como opera o poder dominante nas relações sociais.
São felizes aquelas/aqueles que desconfiam da história dos vencedores e refazem o caminho do povo que luta e resiste, que chora a dor dos filhos e das filhas mortas, mas também, canta, dança, sorri e celebra os frutos da resistência com o ânimo que dá movimento ao corpo para o passo seguinte.
Já se perguntou por que as conquistas do povo não são contadas nos livros da história oficial ensinada na escola? Por quê raramente se vê as heroínas e heróis do povo esculturadas/os nas praças públicas ou celebradas/os nos feriados oficiais? Já pensou, se em vez de nos ensinarem a língua do colonizador nos fossem ensinadas as línguas, os saberes e os fazeres de nossos ancestrais que, ao longo da história resistem bravamente ao projeto de genocídio pensado contra eles/elas?
A dose extrema de violência e crueldade praticadas pelo Estado e pelo mercado contra o povo é usada taticamente para imprimir a marca do medo, a desesperança na possibilidade de mudanças e para selar o lugar da subalternidade, da vulnerabilidade e da obediência aos senhores da propriedade privada.
Para emancipar os/as que estão em condição de oprimidos(as)/explorados(as), é preciso olhar para o passado e reaprender com a própria história, com as lutas populares e com as iniciativas presentes nos territórios silenciadas propositalmente afim de alimentar a distopia e reduzir a capacidade de resistência popular. É necessário olhar para o futuro, mirando a utopia, que como diz Eduardo Galeano, “serve para nos fazer caminhar”.
Ao mirarmos o horizonte da utopia, nos deparamos com mulheres e homens que ousam acreditar no mundo novo possível, por isso, rebelam-se todos os dias contra a ordem da dominação estabelecida e ousam dar as mãos para unidos/as romper as correntes da escravidão, as cercas da morte e dançar a ciranda da liberdade.
Benditas sejam as mãos que cultivam, trocam e ajudam a natureza a multiplicar as sementes crioulas – sementes da revolução, da soberania, da segurança alimentar, da autonomia… Que não se rendem ao agrohidronegócio qual, além de monopolizar a terra e a água, precisa deter o monopólio do ar, do sol e também das sementes, transformando tudo em mercadoria à serviço do poder opressor.
Benditas sejam as mãos que produzem a agroecologia, que rompem as cercas dos latifúndios da terra, da cultura, da educação, da justiça, do poder… Mãos que constroem relações sociais de igualdade e de justiça entre mulheres, homens, crianças, jovens, idosos/as no dia-a-dia dos lares, instituições e estruturas.
Benditas sejam as mãos que acolhem a diversidade e se fortalecem com as diferenças, promovendo o igualitarismo, a solidariedade e a equidade. Mãos que cuidam do “próximo caído”, da mãe Terra, da água, das florestas, dos animais, da vida em todas as suas formas. Mãos que respeitam e zelam dos sagrados.
Benditas sejam as mãos que se erguem para denunciar as injustiças e reivindicar direitos para que todas e todos possam viver com dignidade. Mãos que curam os corpos e as almas feridas, a Terra e, a sociedade contaminada pelo vírus do capitalismo, do racismo, do patriarcalismo, pela indiferença, pelo ódio ao pobre e a todas as expressões das diversidades.
Benditas sejam as mãos que espalham as sementes do Bem Viver, que fazem o nosso coração arder enquanto andamos pelo caminho. E ao mesmo tempo em que trememos de indignação ao enxergarmos as chagas abertas do sofrimento humano e da Terra que geme em agonia; no horizonte, vemos brilhar o sol da Terra Sem Males e o frescor do novo dia que nasce. Vamos aprendendo a viver, ajudando a forjar mulheres e homens novas/os capazes de mirar a Utopia e seguir lutando com a alegria de quem caminha de mãos dadas.
Por: Maria Aparecida de Jesus Silva. Mulher negra. Agente da Comissão Pastoral da Terra. Bacharel em Teologia, Pedagoga, Especialista em Desenvolvimento e Relações Sociais no Campo.