Desde o dia 26 de setembro, diversas comunidades do município de Licínio de Almeida, no sudoeste da Bahia, ocupam um trecho da BA-156 em protesto aos impactos causado pelo transporte de minérios por parte da empresa Bahia Mineração. Somam-se aos moradores também diversos movimentos de lutas populares, a exemplo do Movimento Pela Soberania Popular na Mineração (MAM), do qual Venício Montalvão faz parte, compondo a Coordenação Estadual do MAM na Bahia. Em entrevista, Venício faz uma análise de conjuntura sobre a relação das lutas populares no Brasil e o momento eleitoral, e expõe os desafios que a classe trabalhadora tem pela frente nesse momento histórico. Leia a entrevista completa a seguir:
O MAM está há mais de 30 dias na construção da ocupação da BA-156 em conjunto com as comunidades e organizações populares, num dos momentos políticos da história brasileira mais perigosos e decisivos, e por dois dias também ocuparam os trilhos da Ferrovia Centro Atlântica – FCA. Como o movimento encara o segundo turno eleitoral tendo o desafio de também sustentar uma luta longa e decisiva para a população de Licínio Almeida?
Venício: Primeiro, a luta das comunidades do município de Licínio de Almeida (localizado no sudoeste da Bahia, a 690 km de Salvador, próximo à divisa com Minas Gerais) é consequência desse modelo mineral que se torna ainda mais violento às populações e trabalhadores/as desde o golpe de 2016 e após eleição de Bolsonaro.
Segundo, a política de Bolsonaro e da sua base de apoio aqui no estado (no caso, o candidato a governador ACM Neto) sempre foi inimiga dos movimentos populares e por isso tem como centralidade a criminalização da luta popular. Sabemos que o objetivo do fascismo é tomar o poder, o que exige combater as organizações de esquerda, populares e democráticas. Por isso, a própria sustentação das possibilidades de luta, do ponto de vista das mobilizações da classe trabalhadora em geral e da abertura de debates sobre o modelo mineral em particular, passa nesse momento também pela eleição de Lula e Jerônimo.
Terceiro, ocupações são formas de luta dos trabalhadores quando vêem esgotadas as possibilidades de diálogo e são obrigados a fazer luta aberta para garantir direitos. Esses momentos de luta são pedagógicos, pois elevam a consciência, estimulam a criatividade, a resistência e abrem condições para fortalecer a organização do povo. A construção e a sustentação de um programa que atenda os interesses populares vai exigir cada vez mais organização, formação das massas e luta dos/as trabalhadores/as que se encontram, em geral, numa situação de defensiva.
O que significa a classe trabalhadora estar numa defensiva e quais são os desafios da luta popular, com destaque na mineração?
Venício: A situação defensiva da luta dos trabalhadores/as no mundo é uma realidade há muitas décadas, apesar de avanços de experiências locais ou por certo tempo, que não mudam a situação geral de defensiva. A última grande vitória de uma revolução proletária ocorreu em 1979, na Nicarágua, e desde a queda da União Soviética, em 1989, aprofundou a correlação de forças internacional desfavoráveis. No Brasil a situação defensiva da luta dos trabalhadores/as tem como momento de mudança de qualidade o golpe de 2016, que aprofundou a debilidade da esquerda brasileira, com sua baixa capacidade de representação política diante da secundarização da formação e organização em torno de uma estratégia de poder, capaz de enfrentar o desenvolvimento da crise capitalista enquanto resultado de um longo período histórico.
A debilidade de representação das organizações de esquerda, os erros acumulados nas últimas décadas e a ofensiva do capital internacional e da burguesia associada instrumentalizando a operação Lava-Jato, junto à forte ofensiva midiática e parlamentar criminalizando a esquerda, é acompanhada do desenvolvimento de um movimento de massas fascista, que busca a conquista do poder. A crise do modo de produção coloca na berlinda as formas políticas de organização da sociedade, por isso a crise do sistema político. As frustações abertas por esse sistema passam a ser disputadas por forças que se apresentam com capacidade de incidência política. O fascismo busca na confusão decorrente a articulação das crises econômica, política, social, ambiental e sanitária abrir um perigoso precedente, quando coloca a possibilidade das forças de extrema direita canalizarem a insatisfação popular para o reforço da ordem burguesa num projeto totalitário e reacionário contra a organização da classe e a ampla exploração das massas populares.
Por isso, reforçamos quão decisivo é este momento para as forças populares. Mantemos o compromisso da luta fora da ordem, estimulando uma pedagogia de organização popular, associado ao nosso papel de fortalecer a campanha de Lula e Jerônimo para derrotarmos o fascismo expresso na candidatura de Bolsonaro e seus aliados na Bahia com a candidatura de ACM Neto. Reorganizar as forças e construir com protagonismo um projeto popular e de soberania na mineração exige impor derrota a Bolsonaro, e sabemos que essa é uma luta prolongada, já que o fascismo será somente derrotado por definitivo nas ruas, com a retomada da representação política das organizações de esquerda junto à classe trabalhadora e à ofensiva da luta popular.
Qual o papel dessas eleições dentro da geopolítica considerando a dinâmica mineral?
Venício: O Brasil é estratégico para as economias centrais, considerando seu papel na divisão internacional do trabalho, em especial nesse momento que está em curso uma revolução tecnológica protagonizada pelas principais potências do mundo (EUA, Alemanha, Japão, China), que tem como sustentação a exploração do depositário mineral da América Latina, inclusive do Brasil. O segundo aspecto é que a transição energética que a Europa vive atualmente exige muitos dos minerais estratégicos dispostos em território brasileiro, como é o caso do Nióbio, do Níquel, Terras Raras e outros, aprofundando a disputa sobre os nossos minerais. E em terceiro lugar, a guerra na Ucrânia aprofunda a corrida armamentista no mundo, acelerando a demanda por minerais presentes no território específico de Licínio de Almeida, como Ferro, Manganês e Urânio.
O governo Bolsonaro, além de cortar recurso da fiscalização ambiental, flexibilizou a legislação e continuamente estimula uma base fascista de apoio que corresponde a grupos econômicos ligados ao crime organizado, milícias e médios empresários que financiam garimpos para expandir a extração ilegal da mineração Brasileira. Além disso, Bolsonaro se sustenta no racismo enquanto dinâmica necessária na realidade brasileira para alimentar o fascismo e garantir a expansão do capital contra os povos indígenas, negros e populações tradicionais onde se encontra grandes reservas minerais. Esse modelo neocolonial sustentado por Bolsonaro convém ao capital financeiro internacional, as multinacionais da mineração, burguesia interna, a média e a pequena burguesia, ainda que essa relação seja contraditória e de conflito entre as diferentes frações do capital mineral e o governo.
Efetivamente, como combinar a luta eleitoral, tão fundamental nesse momento, como já destacada por você, à construção as lutas de enfrentamento ao grande capital?
Venício: Não há contradição entre fazer a campanha eleitoral e organizar a luta reivindicativa, como é o caso do conflito mineral vivenciado por dezenas de comunidades do município de Licínio de Almeida. Infelizmente, nesse longo período de defensiva, quando a esquerda brasileira deu centralidade para a luta eleitoral, as forças populares, em sua maioria, foram conduzidas a uma redução do imaginário e da criatividade na organização da luta política. Assim, nesse momento em que a possibilidade de impor uma primeira derrota ao fascismo está nas eleições, muitos aprisionam o imaginário da luta de classe estreitamente a esse campo de luta.
Os mais de trinta dias de pedagogia junto às massas camponesas das comunidades de Licínio de Almeida ocupando a estrada, e nos dias 24 e 25 ocupando a Ferrovia Cento Atlântica – FCA, reforçam o ensinamento de Karl Marx de que a Luta de Classes é o motor da história. Na prática concreta da luta do povo vamos observando que ela sacode a poeira, tira a ferrugem e o burocratismo para as quais a frieza dos últimos anos da luta de classe nos empurrou.
Não nos iludimos e sabemos que, no geral, vivemos uma situação extremamente desfavorável. A alteração desse quadro vai exigir capacidade das forças populares de conquistar a representação política na classe trabalhadora, que significa reatar o laço fundamental com as bases, cuja condição efetiva é a inserção concreta junto ao povo, articulando e fortalecendo as lutas e a organização. A capacidade de exercitarmos uma pedagogia de recomposição e reorganização da luta perpassa pela construção e reivindicação de um programa que represente os interesses fundamentais da classe trabalhadora e confronte o grande capital, aprofundando a clivagem entre as frações de classe.
No caso da mineração, o que significa um programa de soberania popular na mineração e qual a relação com a luta das comunidades de Licínio de Almeida?
Venício: Viemos acumulando uma análise sobre o problema mineral brasileiro e caracterizamos, de forma simplificada, que o modelo mineral se estrutura a partir do uso permanente da violência contra o povo, a ausência de democracia com vistas a garantir o saque permanente dos nossos bens minerais. Quando analisamos a situação particular de Licínio de Almeida, encontramos centenas de famílias que estão denunciando as violações à saúde, à agricultura familiar e do uso da água. Ou seja, a atividade da empresa BAMIN afeta a saúde e impacta as condições de produção da vida população quando vai inviabilizando a agricultura familiar, associado ao desperdício de um bem fundamental e escasso nas regiões semiárida, como em Licínio, que dois anos atrás se encontrava em situação de emergência por falta de água.
Inspirados no debate que o movimento vem fazendo em nível nacional, considerando essa problemática estruturante da mineração, viemos definindo que um novo modelo mineral deve garantir como pressuposto a democracia, o controle sobre a mineração e da exploração a favor do povo. No caso do município de Licínio de Almeida, por exemplo, essas comunidades que estão sendo impactadas diretamente não passaram por nenhum debate público, ou seja, as famílias não participaram sequer de uma audiência pública. Isso é uma violação grave do ponto de vista da continuidade do projeto Pedra de Ferro da Bahia Mineração.
Considerando esses aspectos, identificamos também que a vocação de Licínio de Almeida, diferente do que as classes dominantes e seus representantes políticos querem nos impor, não é a mineração essencialmente, mas a agricultura familiar, que emprega hoje mais de 2 mil famílias, segundo o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Licínio de Almeida. Ou seja, se prevalecer os interesses da mineração, além da destruição das comunidades teremos um desemprego estrutural dessas famílias e destruição da fonte hídrica que abastece praticamente 50 mil habitantes de 4 municípios da região (Caculé, Licínio de Almeida, Guajeru e Rio do Antônio). Por isso uma das pautas das comunidades envolve a luta pelo debate sobre o problema mineral da região; a defesa de políticas públicas que fortaleçam a agricultura familiar e camponesa; e a fiscalização e controle sobre a água, garantindo o direito constitucional sobre o uso prioritário para o abastecimento e produção familiar.
Quais considerações gostaria de deixar para fortalecer o ânimo dos últimos dias de campanha eleitoral e continuidade da luta em Licínio de Almeida?
Venício: Felizmente tivemos em toda região do interior da nossa Bahia um desempenho eleitoral significativo, já que existe, em especial no campo, a resistência de uma diversidade de organizações populares que mantem um vínculo de trabalho político. Somente em Licínio de Almeida, por exemplo, o desempenho eleitoral foi de 73,16% para Lula contra 23,3% para Bolsonaro, e 66,91% para Jerônimo contra 27,6% para ACM Neto, sendo uma média de votos acima da porcentagem de votação estadual, considerando a votação para presidente e governador respectivamente.
Esse contexto não significa que devemos nos acomodar, mas seguir fortalecendo, como em todos os territórios que estamos inseridos, a garantia dos votos do primeiro turno e conquistas de indecisos em favor das candidaturas petistas. O outro grande desafio é como transformamos essa maioria de apoio eleitoral em maioria política social. Esse processo somente será atingido a partir da organização e articulação dessas lutas numa estratégia de Soberania, onde o povo tenha capacidade de compreender as contradições gerais dessa sociedade e sua identificação com um programa que mobilize e confronte as classes inimigas fundamentais.
Nesse caso, a ocupação é uma tática de luta que nesse momento expressa a última alternativa das famílias que já não suportam tanta injustiça e violência, com vistas a fortalecer a democracia que tanto vem sendo violada, bem como a ruptura política democrática proposta pelo movimento bolsonarista. Quando destacamos que a luta é pedagógica, queremos dizer que ela forma lideranças, dá visibilidade às problemáticas, ensina àss demais comunidades impactadas as possibilidades políticas de reivindicarem e serem ouvidas e, principalmente, estimula a criatividade política necessária para avançarmos nas conquistas populares e abrirmos condições para construção da revolução brasileira enquanto necessidade da classe de se organizar e conquistar o poder político para ter capacidade de decidir os rumos da economia e da mineração brasileira. Já dizia o poeta Thiago de Melo, “os que virão serão povo e saber serão lutando”. E domingo vamos de 13.