Juntos na luta e/ou nas dificuldades. Expressão acima, muito utilizada pelo povo moçambicano, marcou Marina da Rocha que, juntamente com Elizabete Flores, ambas agentes da Comissão Pastoral da Terra (CPT), passaram dois meses e meio em intercâmbio no país africano.
Dia 30 de setembro de 2017. Nesta data, Elizabete Flores, ou apenas Bete, como é conhecida, e Marina da Rocha partiram do aeroporto de São Paulo rumo a Maputo, capital e maior cidade de Moçambique – país localizado no continente africano. Entre os dias 1º de outubro e 13 de dezembro, o intercâmbio, do qual as integrantes da CPT participaram, propunha conhecer as diversas realidades do país, acompanhar três Comissões Diocesanas de Justiça e Paz nas regiões de Nampula, Beira e Tete, bem como da Ação Acadêmica para o Desenvolvimento das Comunidades Rurais (ADECRU), no que diz respeito ao trabalho com comunidades rurais, além de contribuir na formulação de propostas, metodologias e abordagens de trabalho para enfrentar as situações de usurpação das terras no país.
“A similitude de situações em relação ao acesso à terra entre Brasil e Moçambique é evidente. Entretanto, o Brasil conta com organizações com longa experiência na luta, resistência e elaboração de propostas frente às violações de uso das terras e da exploração de recursos naturais. Neste contexto, a prática da Comissão Pastoral da Terra (CPT) pode ser destacada pelo seu trabalho de base para conscientizar e apoiar o protagonismo das comunidades nessas lutas”. Essa afirmação e análise parte das organizações e pessoas envolvidas na promoção do intercâmbio, como a agência de cooperação alemã Misereor, que apoia projetos de entidades brasileiras, como a CPT, e também moçambicanas.
Na CPT, Bete integra o Regional da Pastoral em Mato Grosso desde o ano de 2010 e também contribui na coordenação da Campanha Nacional de Prevenção e Combate ao Trabalho Escravo. Já Marina da Rocha, que atua na Pastoral da Terra na Bahia desde os anos 1980, já participou de intercâmbios na Alemanha, Áustria e Nicarágua, porém com durações menores. Ela ressalta, a partir dessas experiências de troca de saberes, o quanto isso agrega ao seu trabalho pastoral. “Como agente da CPT, ficou mais forte ainda essa necessidade de conhecer as diversas realidades, sobretudo, no acompanhamento como agente de pastoral, e, especificamente, na partilha dos povos. Cada comunidade tem seus processos”, explica.
Contexto histórico
Em 1975, ano em que a CPT nascia no Brasil, Moçambique começava a deixar para trás sua condição de colônia de Portugal. Entretanto, a partir de 1977, os habitantes do país vivenciaram uma terrível e longa guerra civil travada, principalmente, entre a Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO) e a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). Cerca de um milhão de pessoas morreram em decorrência de combates e também vítimas da fome. Muitos dos/as sobreviventes carregam até hoje as graves marcas dessa guerra.
Com o término do conflito em 1992, no ano de 1994 ocorreram as primeiras eleições multipartidárias do país. Desde então, o país tem sido governado por líderes da FRELIMO, todavia, em algumas províncias, quem detém o poder é a RENAMO – esses são os dois principais partidos em um país que ainda enfrenta muito autoritarismo. Importante entender esse contexto histórico e político pois “defender e lutar por direitos em Moçambique é o mesmo que enfrentar a FRELIMO”, disseram várias pessoas, segundo Bete, durante o período do Intercâmbio.
Luta
Na conversa das intercambistas com a ADECRU, uma das organizações moçambicanas que participou do intercâmbio, ficou claro que desde o ano de 2013, quando o país experimentou a volta dos conflitos armados, as intimidações e retaliações por parte do governo se intensificaram contra quem vai para a luta e se opõe às violações de direitos. Conforme organizações do país, tem ocorrido grandes retrocessos, as pessoas estão sendo intimidadas, não querem ir para a rua. Ocorreu a cisão entre os grupos da sociedade civil que não querem ir para o enfrentamento. Contudo, existe também resistência e luta por parte de algumas entidades e movimentos que atuam de forma independente, por exemplo, conforme Bete, as Uniões Provinciais de Camponeses, que existem em níveis distritais, são mais fieis às decisões do povo.
A base da economia moçambicana é a agricultura praticada por camponeses e camponesas em pequenas áreas denominadas “machambas”. No campo, conforme o Fórum Mulher, cerca de 80% da mão de obra é feminina. “A base da alimentação em Moçambique é o milho, e a mandioca em algumas regiões. A alimentação lá tem tipo uma polenta brasileira que se chama ‘chima’, feita de milho branco, o feijão, e o arroz – em algumas regiões. E as pessoas comem muito a ‘mapira’, feita da folha da mandioca, com amendoim e leite de coco. E muito peixe. Carne de gado é raríssima”, conta Bete Flores. A base da alimentação e da economia do país é essencialmente gerada pelo campo, com forte protagonismo das mulheres, todavia, não diferente do Brasil, a intensificação de grandes projetos de mineração e os monocultivos, como de soja e eucalipto, têm modificado paulatinamente a vida no campo africano, com a expulsão de milhares de famílias e alguns reassentamentos que não atendem às necessidades dos camponeses e camponesas.
Diante de guerras, ações autoritárias de governantes, corrupção nas mais diversas esferas da sociedade, e em meio a tantos conflitos, como resistir e existir? A resistência desse povo, para Bete, ainda não é uma resistência muito organizada. “Resistem no dia a dia. E tem uma resistência forte, embora tem essa questão dos líderes corruptos. Mas o povo resiste. Eu penso que a base dessa resistência é a fé. É um povo de muita esperança e de muita fé. E muito alegre, mesmo diante de toda aquela miséria. O sorriso e o brilho no olhar você via em todas as comunidades. Dificilmente a gente via uma pessoa de cabeça baixa, então, eu acho que a resistência desse povo vem disso, dá fé e de acreditar que um outro mundo é possível”.
Pós-Intercâmbio
Após esse período de Intercâmbio em Moçambique e de volta ao Brasil, Bete e Marina continuam em constante diálogo com organizações do país africano – o que mostra que essa troca de experiências e saberes é um processo contínuo e que vai além dos meses que as agentes da Pastoral da Terra estiveram no local.
Há uma proposta de construção conjunta de um curso de juristas populares com advogados e advogadas da Comissão de Justiça e Paz de Moçambique e ADECRU. Assim como avançam as trocas de experiências em relação ao tema “barragens”. E um documentário sobre o período de Intercâmbio será lançado ainda neste semestre.