Mais de 200 pessoas participaram, no dia 24/11, da audiência pública realizada no auditório da escola Silvio Araújo, na cidade de Barra (BA). O objetivo do encontro foi discutir a ameaça às mais de 60 comunidades tradicionais, da área conhecida como Brejos da Barra. A recente descoberta da grilagem de 229.867 hectares de terras públicas, no nome de um escritório de advocacia de Juazeiro, tem mobilizado a população local em torno da questão. O total de área grilada corresponde a quase 20% do território do município.
Se a ação não for revertida, a fraude pode atingir mais de 15 mil pessoas, cujas famílias ocupam a região há quase três séculos. “Foi um impacto emocional dos maiores. A maior grilagem de todos os tempos na região”, conta o morador da comunidade de Bonfim, Hermes de Souza. Ele é um dos impactados pela grilagem da terra na região dos brejos, lugar onde residiu durante todos os seus 55 anos de vida. A terra, que é ocupada tradicionalmente desde os seus avós e pais, pela primeira vez corre o risco de não continuar na sua família. “O pior de tudo é saber que o documento, que forjou essa grilagem, foi constituído aqui, no próprio município”, lamenta Souza.
A situação apontada por Souza começou a ser forjada ainda em 2013, quando a moradora da fazenda Capricho, localizada também na região dos Brejos da Barra, Gilene de Jesus, foi abordada na sua casa por um homem, que se apresentou como Oficial de Justiça. Tendo em mãos os documentos da posse de terra de Israel Rodrigues de Jesus, pai de Gilene, o homem não demorou a revelar a sua proposta. “Ele apareceu com um documento que nem eu tinha e disse que precisava apenas da minha assinatura para instalar uma torre na área. Eu disse que aquelas terras ali eram do governo e que a outra parte meu pai vendeu para os vizinhos”, explica Gilene.
A negativa, no entanto, não foi suficiente para barrar o assédio e na visita seguinte, em troca da promessa de conseguir os documentos de compra e venda para os vizinhos que tinham negociado com o seu pai e que não possuíam nenhum comprovante da posse, Gilene de Jesus foi convencida a dar-lhe uma procuração. No Cartório da cidade de Barra, o homem conseguiu transformar um terreno de 195 braças na escandalosa propriedade de mais de 200 mil hectares, conhecida como fazenda Cristo Rei. A ingenuidade de Gilene de Jesus não a poupou de ser hostilizada pelos moradores da região, que começaram a ver na camponesa, uma traidora. “Eu fui enganada. Assinei para resolver uma coisa e ele, com a procuração, comprou meio mundo de terra”, lamenta.
Conivência dos poderes públicos
A participação de Gilene no evento foi apenas o início de uma série de corrupções, conivências e cumplicidades de representantes dos poderes públicos que, com ações e omissões, levaram à atual situação de temor vivido pelas comunidades tradicionais moradoras da região. A procuração assinada por ela está no nome de Nailton Lopes de Oliveira. De acordo com Gilene, o suposto Oficial de Justiça que a convenceu a passar a procuração, é na verdade o Promotor de Justiça Rildo Mendes de Carvalho, titular das comarcas de Barra do Mendes, São Gabriel e Uibaí.
Na audiência realizada no dia 24 de novembro, Gilene contou publicamente a sua versão da história e provocou nos participantes a cobrança por respostas dos representantes dos poderes públicos e autoridades locais. O prefeito de Barra, Artur Silva Filho, que desde a descoberta das dimensões da grilagem de terra, tem se posicionado a favor das comunidades, teve que responder aos questionamentos sobre a conivência da prefeitura, ao permitir o pagamento do ITBI (Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis) das terras. “O funcionário que realizou o trâmite não teve coragem de questionar um promotor”, explicou Silva constrangido.
O geógrafo e professor da USP e um dos principais especialistas da questão agrária no Brasil, Ariovaldo Umbelino, também participou da audiência pública e apontou as várias falhas no processo de emissão dos documentos de compra da terra, que comprovam a realização da grilagem. Ao analisar a certidão de registro imobiliário da terra grilada, Umbelino apontou a inexistência de um registro de origem, o que seria indispensável para o registro de escritura de compra e venda no Cartório de Registro de Imóveis. “Como não há um título de origem, o título de terra do escritório é nulo”, afirma o geógrafo. Umbelino também mostrou que há divergência entre a demarcação das terras nos documentos do INCRA e do cartório e revelou que boa parte das terras está dentro de uma área objeto de estudo por parte do Instituto Chico Mendes da Biodiversidade para a criação de diversas unidades de conservação. Em meio aos dados apresentados, Umbelino reforçou a sua disponibilidade em apoiar as comunidades. “Estou pronto para assinar esse laudo, que aponta para a grilagem das terras e assim defender o direito de vocês”, afirmou o geógrafo.
A mesma prontidão demonstrada por Umbelino, não se repetiu entre os representantes dos vários órgãos do Estado presentes no dia, como SEPROMI, CDA, INCRA e SPU, convocados para se pronunciar sobre a situação das terras no evento. Nenhum dos presentes assumiu publicamente como se daria a atuação dos órgãos em relação à questão.
“A nossa expectativa era que fosse um momento de informação e que houvesse também o compromisso dos órgãos do governo com a causa, apresentando soluções. No entanto, não houve encaminhamentos”, analisa Carivaldo Santos, agente da CPT BA, que acompanha as comunidades dos Brejos da Barra há mais de 10 anos.
Ele acredita que depois da audiência, o primeiro passo agora é uma luta mais articulada. “Foram esclarecidos detalhes e agora há uma tarefa árdua para a CPT e para os parceiros. Temos que retomar e fazer um trabalho de base. Ver as potencialidades, porque a força está nelas também”, conclui.
Hermes, que foi surpreendido pela notícia da grilagem há dois meses, concorda. “O primeiro que temos que fazer é nos organizar. Estamos meio dispersos, mas agora vamos buscar isso, articulando o povo”, promete. Hermes diz que as comunidades têm contado desde o início com o apoio da CPT, da Igreja, na pessoa do bispo de Barra, D. Luiz Cappio e do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, mas está esperançoso também com a nova postura da prefeitura.“Agora estou vendo o poder público municipal do lado da gente, mas só depois do problema é que se aproximaram. No início do mandato, o prefeito prometeu parceria, mas não foi isso que aconteceu”, lamenta Hermes. Ele acredita que a solução é a regularização fundiária. “É isso que precisamos. Se já tivéssemos regularizado, não estaríamos passando por isso”, defende.
Soluções
Uma das possíveis soluções para resolver o impasse da grilagem de terras em Barra, é tentar realizar um processo de anulação administrativa, já que é possível constatar algumas irregularidades nos documentos.
As outras possibilidades são ação judicial e ação discriminatória. A advogada da Associação dos Trabalhadores Rurais (AATR), Mirna Oliveira, no entanto, faz ressalvas às ações discriminatórias, que segundo ela, têm servido para fazer um reconhecimento oficial da grilagem. “A ação discriminatória tem que ser uma forma de combate à grilagem e não de apoio. Em muitos casos são feitos acordos para que as empresas que grilaram não tenham prejuízo financeiro”, critica.
Além de reverter a grilagem, outro caminho precisa ser seguido: o da regularização fundiária. Uma das possibilidades é o processo de reconhecimento das comunidades dos Brejos, como comunidades de Fundo e
Fecho de pasto.
Dar prosseguimento a essas medidas, no entanto, esbarrará em alguns empecilhos. Mirna afirma que o que tem acontecido em Barra não é exatamente uma novidade. Desde a criação dessa nova fronteira agrícola conhecida como MATOPIBA (uma referência às áreas de cerrado dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), mais de 13 milhões de hectares foram fornecidos para o agronegócio, em 30 municípios baianos, com o apoio do Estado. Para Ariovaldo Umbelino, isso acontece no Brasil porque a propriedade da terra, mesmo sem nada a produzir, aumenta o patrimônio e enriquece o proprietário. “A propriedade da terra é um instrumento de especulação financeira no Brasil”, explica.
Assim como aconteceu em Barra, em muitos casos a grilagem é feita por escritórios de advocacia especializados em registro de imóveis. “Desde a década de 70, o Estado tem sido o principal incentivador desse processo de grilagem de terra, que tem intensificado problemas sociais graves”, analisa Mirna. “Essa modernização conservadora incentiva a ocupação de terras que nunca estiveram vazias”, aponta.