Vivemos um tempo difícil. Estamos enfrentando um dos maiores desafios de nossas vidas: uma guerra contra um invisível, a qual tem envolvido toda população da Terra – para o bem ou para o mal. Vivemos um momento em que as relações afetivas, produtivas e educativas estão na esfera virtual, sem conjunção de corpos, abraços e proximidades. A terra se converteu em uma grande necrópole, e precisamos nos evitar. Não teremos, por um tempo, conjunção coletiva de corpos.
Sim, precisamos cumprir o isolamento social imposto pela Covid-19. Com isso, o vírus não afetou apenas a “economia”, afetou também as emoções da população em geral. Essa situação tem causado muito sofrimento humano. Porém, para as mulheres e meninas esse sofrimento pode ser bem maior. A necessidade de confinamento, com a conjunção permanente de corpos ameaçados, colocou muitas mulheres no espaço mais perigoso para elas: suas próprias casas. Esse lugar, que deveria ser de proteção, nem sempre o é.
A pandemia revelou, como disse Achille Mbembe, “compromissos novos e ruinosos, com formas de violência tão futuristas quanto arcaicas”. Vivemos uma distribuição desigual da vulnerabilidade, pode-se dizer em ralação às classes, mas também aos gêneros. No caso das mulheres, há a dupla vulnerabilidade, provocada por um vírus pós-moderno e pelo arcaico machismo.
Ao observar o que os jornais têm noticiado e o que é postado em redes sociais, encontraremos muitas queixas de mulheres que necessitam do trabalho para que possam manter suas casas, especialmente as trabalhadoras informais. Dá para sentir em suas falas/textos a angústia de quem está “de mãos atadas”, de quem perdeu o seu sustento e de quem tem de conviver confinada com o seu agressor, do qual só consegue escapar através de uma relativa autonomia financeira.
Devemos lembrar que o isolamento é uma das formas mais antigas utilizadas por agressores para exercer o controle psicológico sobre suas vítimas. Ao reduzir o contato social dessas, em sua grande maioria mulheres, o agressor amplia poder e reduz ainda mais as possibilidades de defesa das mulheres. Dentro de casa, meninas, assim como mulheres idosas, ficam expostas, por mais tempo, aos riscos de agressões e de violência sexual, geralmente praticadas por filhos adultos, por pais, por padrastos ou por vizinhos.
A estatística nos mostra que companheiros e ex-companheiros são responsáveis por 88,8% dos feminicídios no país. Neste contexto de pandemia, os dados apontam que as tensões geradas pelo confinamento aumentaram em 9% o índice de violência doméstica no Brasil (dados das ligações feitas ao 108). Na China, as delegacias registraram três vezes mais casos no período de isolamento social. Vários outros países estão registrando números que só crescem durante a quarentena. Em Campina grande, Paraíba, o comandante do 2º Batalhão da Polícia Militar, em entrevista a uma emissora de rádio local, disse que tiveram uma mudança brusca nas ocorrências policiais, com aumento de 44% para violência doméstica.
Em tempos diferentes da humanidade, sempre se encontrou formas de culpabilizar as mulheres pelos males que as afligem e que afligem a sociedade. Ontem, chamaram-lhes de bruxas e de loucas. Hoje, são elas que provocam a violência doméstica da qual são vítimas, “porque os homens não aguentam tanta reclamação”; e, ademais, sempre que grandes mudanças acontecem são elas que primeiro “pagam o pato”.
O vírus evidenciou que, o “patriarcado como um sistema político e econômico estabelecido a partir de linguagens, determina um universo de sentido violentador, agressivo, destruidor do campo feminino ali mesmo criado, retroalimentando a hegemonia do que o masculino representa”, conforme escreveu a professora Maria Cristina Vidotte Blanco, no Caderno Conflitos no Campo Brasil 2019, da Comissão Pastoral da Terra. As mulheres tentam quebrar essa hegemonia que prevalece em todas as estruturas da sociedade.
Na história, a intensificação das lutas em busca de autonomia, seja financeira, seja emocional, acarretou um número imenso de mulheres presas em manicômios, estruturados para “controlar” os corpos daquelas que já não mais se submetiam às regras da sociedade. Sua loucura? Ter vontade própria. Vejamos as aproximações entre o movimento feminista e o antimanicomial por meio deste trecho trazido pela editora Boitempo, o qual fala das causas das internações de mulheres, segundo suas famílias.
“Gênio independente”, “não obedecia ao pai”, “separou-se do marido”, “escrevia livros”, “trabalhava muito”, “era preguiçosa”, “apaixonou-se por um rapaz”, “cantava o dia todo”, “desobedeceu ao patrão”, “reclamava do salário”, “inclinações políticas subversivas” essas condutas não podem ser consideradas patológicas por si mesmo e também não configuram infrações, no sentido legal do termo. No entanto, eram consideradas aberrações por escaparem às normas estabelecidas para as mulheres da época. A repetição tautológica desses elementos nos prontuários médicos de grandes manicômios brasileiros parecia querer afirmar que aquele comportamento era um traço desviante individual – e não o reflexo de uma mudança social. No início do século XX, o movimento feminista dava os primeiros passos, mulheres começavam a entrar nas universidades e na política. Essa insurgência feminina foi vista como uma ameaça à ordem social estabelecida e houve diferentes tentativas de repressão para controlar uma suposta “crise da família”. Um dos mecanismos de controle era o poder manicomial.
Essas mulheres nunca eram respeitadas em suas vontades, mas aqui não vamos tratar sobre o movimento antimanicomial, nem dos manicômios como instrumentos de controle e normatização das vidas, e sim do assassinato – feminicídio – como técnica de normatização.
“O medo educa”, diziam os mais velhos. “O medo traumatiza e cria neuroses”, diz a literatura psiquiátrica e da psicologia. O medo da morte pode construir normoses, mas também cria neuroses impensáveis. “Taras e manias” pode ser uma expressão romantizada na música, mas para as mulheres é sempre sinal de violência. Assim sendo, a luta contra o patriarcado é uma luta contra as estruturas opressoras da sociedade, contra as relações intersubjetivas institucionalizadas cuja base é a dominação violenta.
Bom, voltemos ao isolamento social e a Covid-19. Há tempos se fala que “este modelo mata”, mas só agora, com os corpos ameaçados por um vírus letal, é que as pessoas estão se dando conta que desequilibrar a natureza nos trouxe consequências graves. Contaminamos os solos, destruímos o habitat natural dos seres e, quando eles se hospedam em nós, ameaçam-nos de extinção – dizem os cientistas.
E nós podemos dizer que o patriarcado – que mata há muito mais tempo (uma mulher a cada hora no Brasil) – desequilibrou as relações humanas. Nesse caso é bom lembrar o velho e bom Marx, que sobre os “motivos” dos crimes serem sempre a “dor da perda” do “macho ferido” nos diz: “o ciumento necessita de um escravo; o ciumento pode amar, mas o amor é para ele apenas um sentimento extravagante; o ciumento é antes de tudo um proprietário privado”. (MARX, 2011, p. 41). Assim como qualquer propriedade, as mulheres também podem ser destruídas.
As mulheres são mortas simplesmente por serem mulheres, e homens as matam por terem o “poder” de matar o que “possuem”. Em Itaim/BA, uma comerciante foi assassinada porque queria se separar do marido; em São José dos Campos/SP, uma mulher foi esfaqueada por motivos de ciúmes; em Forquilhinha/SC, o marido degolou a esposa porque “achou que estivesse sendo traído”. São crimes do patriarcado; maridos “se livram” de suas propriedades quando essas não dão mais lucro/prazer, quando vão à falência/separação. O crime motivado por sentimento de posse é naturalizado pela sociedade como uma “correção” à mulher que “desobedece” às regras sociais impostas pelo patriarcado. São crimes ligados a um sentimento de posse e poder.
O que acontece quando confinamos por longo tempo a vítima e agressor? O que tem acontecido nesta pandemia? É claro que a violência contra a mulher não é um fenômeno recente, e mesmo tendo maior visibilidade a partir da década de 1970, com a eclosão dos movimentos feministas, as raízes da desigualdade entre homens e mulheres datam de mais de 2.500 anos. A pandemia trouxe o imperativo do isolamento. Ficamos recolhidos em nossas unidades familiares, em espaços compartilhados de moradia, ou em domicílios individuais. Ficamos privados do contato social e relegados as esferas de relativo isolamento e, como dissemos antes, o isolamento é uma técnica desde sempre utilizada por agressores.
A dominação psicológica e social das mulheres foi criada para domínio nas relações de poder, na busca pela garantia de posses e propriedades. Normatizou-se a ideia de homens como proprietários, e de mulheres como seres inferiores. Esse é um tema já discutido, pesquisado e publicizado há muito tempo. A violência surge então como técnica/forma de controle destes corpos/propriedade. Neste momento de corpos ameaçados, as mulheres são exploradas triplamente – com a família confinada, aumenta o trabalho doméstico -, enquanto os homens, muitos por se sentirem impotentes, acabam por “descarregar” suas frustrações nas companheiras. O resultado é o aumento assustador da violência doméstica e dos casos de feminicídio.
Chile, Espanha, Argentina, Uruguai, Colômbia, México, Peru e Venezuela são países em que os números da violência contra as mulheres neste momento de pandemia aumentaram tanto que tiveram que ampliar os instrumentos de denúncia (como exemplo: novos números de disque-denúncia, sites com garantia de sigilo, aplicativos de celulares e etc.). Mesmo nesses casos, a sociedade segue culpabilizando as mulheres, acusando-as de provocarem seus maridos quando em casa por conta da Pandemia. Como se não bastasse, ainda deixam suas ideias estampadas nas redes sociais, ampliando ainda mais a cultura do machismo.
Ao olhar para os números apontados pelos observatórios de violência de gênero vemos que, com ou sem pandemia, o feminicídio tem aumentado. O Mapa da violência de gênero nos diz que, em 2019, o número de homicídios dolosos de mulheres teve uma queda de 14,1% em relação ao de 2018. Apesar disso, houve um aumento de 7,3% nos casos de feminicídios. O que são feminicídios? São crimes de ódio – assassinatos – motivados pela condição de gênero.
Você pode ver o “Mapa da violência pela condição de gênero” no link:
Os números apontados são impressionantes. Segundo o Instituto Maria da Penha, “a cada dois segundos, uma menina ou mulher é vítima de violência física, sem incluir ataques verbais e situações que expõem as mulheres a constrangimentos”. Ainda segundo o Instituto, especialistas apontam que uma inocente piada e situações de constrangimento têm ligação direta com feminicídio. O tempo de isolamento social tem reforçado a cultura patriarcal de desigualdades e tem feito emergir um mundo interior de símbolos e imagens patológicos.
Patologias essas que podem se apresentar como violência de gênero, expressas nos diversos atos praticados contra as mulheres, como forma de submetê-las a sofrimento físico, sexual e psicológico. Também como uma imposição ou atenção de controle e subordinação de gênero, ou das “manias patológicas”, adquiridas pelo desequilíbrio nas relações, que no seu auge torna-se feminicídio.
Para nós ficam algumas perguntas:
- Esta epidemia pode proporcionar a ampliação da colonização cultural e patriarcal?
- Como retornar do período de não conjunção – de corpos – sem o contágio de um vírus antigo chamado machismo?
Nestes tempos de estranha parada, a humanidade é convidada a tratar todas as vidas com igual valor, construir um desejo coletivo de igualdade radical, propondo como Re-torno novas relações para um mundo transformado.
Vanúbia Martins – Psicóloga, agente pastoral da CPT em Campina Grande (PB) e coordenadora regional da CPT NE2