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CPT BAHIA

Multinacional francesa de energia coloca em perigo comunidades tradicionais e a arara-azul-de-lear

A poeira e o barulho ensurdecedor atormentam as comunidades de fundo de pasto nas cercanias do canteiro de obras da Voltalia, multinacional de origem francesa que atua no setor de energia. A construção de um complexo eólico entre Canudos, Jeremoabo e Euclides da Cunha, no sertão da Bahia, tem potencial de causar danos ainda maiores, ameaçando o modo de vida tradicional da população e a preservação da arara-azul-de-lear, ave em risco de extinção.


No site da multinacional consta que ela foi fundada em 2005 e está presente em 20 países, com o objetivo de “melhorar o meio ambiente global, promovendo o desenvolvimento local”. O principal acionista da Voltalia é a Creadev – www.creadev.com -, empresa de investimento, fundada por uma família francesa. Os Mulliez são proprietários de 130 marcas, incluindo a Decathlon e a Leroy Merlin, e faturam cerca de 100 bilhões de euros por ano.

 

Foto: Seu Antonino, vaqueiro da comunidade fundo de pasto do Bom Jardim, em Canudos. (Thomas Bauer – CPT
Bahia/ H3000


Desde menino novo, seu Antonino Carvalho campeia gado em “terra de eréu”, extensões de terra
que nunca tiveram dono:

Esse lugar é de todos nós. Agora os cabras invadiram tudo e nós fomos perdendo o lugar nessa terra de eréu. Os de fora tão deixando nós sem futuro. Daqui mais uns dias, só pode criar gente porque cria dentro de casa” – desabafa.

O vaqueiro Antonino participou de diversos documentários e deu depoimentos para diversos livros sobre vaqueiros. Hoje, aos 66 anos, vive angustiado com o impacto da obra da Voltalia na região: “O gado não tá agüentando a zoada. Os bois tomaram medo e desertaram. Nós já fomos pegar animais chegando no Sergipe. E não foi uma vez só” – relata.

O drama dos povos tradicionais começou no final de 2018, quando a multinacional de energia
protocolou no Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) o requerimento para licença prévia de instalação. Também solicitou a autorização de manejo de fauna para o complexo, composto por 97 aerogeradores (turbinas que convertem a energia cinética do vento em eletricidade) e onze 11 parques eólicos.

O início das obras para a instalação das turbinas nas usinas de Canudos I e II está impactando
diretamente nas comunidades de Bom Jardim, Angico, Toca Velha, Pedra Sozinha, Toca da Onça,
Raso, Rio do Suturno, Alto Redondo, Barriguda, Rosário, Aroeira (Canudos) e Angico Silva (Jeremoabo).

Maria Pereira nasceu, se criou e ainda vive em Toca da Onça conta que se assustou com o repentino interesse pelas terras da região e com a quantidade de gente estranha perambulando pela localidade. Sua família sofreu assédio para vender a propriedade:

“Um rapaz que teve lá. Ele conversou com meus irmãos e perguntou se a gente não queria vender. Nós não pode vender porque é ali onde nós veve. Nós ia vender pra ir aonde?” (sic) – questiona.

Independente das recusas, grande movimentação para abertura de variantes e estradas, instalação de cercas na região e desmatamentos estão em andamento.

 

Maria Pereira e a família até hoje resistem a se desfazer da terra que são de herança (Thomas Bauer – CPT Bahia/
H3000)

Muitas pessoas já venderam o gado porque não tem mais onde criar, né? Se terminarem de passar o resto da vegetação pra cercarem a mata, já era. Vai ficar sem movimento mesmo pra o sustento do animal e pra gente, que depende da criação” – desabafa Maria Pereira.

A expressão fundo de pasto possui sentido semelhante a fundo de quintal. Os moradores antigos
erguiam suas casas próximas a aguadas ou fontes de água necessárias para a sobrevivência. E
contavam com os fundos das casas voltados para extensões de terra de se perder de vista para os animais. Além disso, cultivavam pequenas roças de feijão, mandioca, milho, abóbora, dentre outros alimentos.

O histórico de conflitos, muitas vezes ligados à especulação, e a pressão sobre as áreas de solta
assombram os moradores que conseguiram unir geração de renda com a preservação da caatinga, garantindo o equilíbrio do meio ambiente por quase dois séculos.

A disputa se intensificou nos anos 1960, com a participação do Estado. Sempre acompanhado do
discurso de minimizar os efeitos da seca no semiárido e promover o crescimento econômico foram criados diferentes programas, dentre eles o Projeto Sertanejo.

José Adelson, morador do Alto Redondo, explica: “Era um incentivo. A concessão de empréstimos para pequenos criadores e produtores, na verdade, ficou só no papel. Quem acessava eram pessoas que não tinham atividade rural e desviavam a verba. Investiam em outra coisa e adquiriam terras. Uma vez comprada uma pequena área, faziam retificações de áreas e passavam a especular até encontrar um comprador.”

 

José Adelson puxando água através de uma bomba manual para o seu criatório. (Thomas Bauer – CPT Bahia/ H3000)


Os financiamentos foram acompanhados pela “lei do pé alto”, também chamada de “lei dos quatro fios”. Trata-se de regulamentos municipais que favoreciam a ocupação de terras pelos grandes pecuaristas. As novas regras obrigavam a criação de caprinos e ovinos apenas em áreas cercadas, com o objetivo de evitar prejuízos em outras propriedades. Na prática, a exigência de cercar as terras com quatro fios de arame previa ainda que os pequenos animais que a ultrapassassem poderiam ser abatidos. Isso inviabilizava o modo de vida dos povos tradicionais de fundo de pasto.

Nós sabemos que no semiárido as chuvas são localizadas. Então se você não tem uma área de
fundo de pasto para produção, muitas vezes a chuva cairá onde os animais não circulam. Mas se
tem, eles circularão livremente e não terá um rebanho passando fome e outro de barriga cheia
.”
garante Adelson, que insiste em criar seu rebanho de caprinos em um espaço cada vez mais
reduzido.

São principalmente as áreas de solta, utilizadas pelos moradores das comunidades tradicionais de forma coletiva que garantem a sobrevivência de todos. Ao contrário desta realidade e costume, logo que chegou à região, a Voltalia, através de propaganda, gerou expectativa de melhoria de vida com a criação de empregos. Os números anunciados ficaram abaixo da realidade e a disputa pelas poucas vagas gerou divisões internas nas comunidades. Segundo a publicação trimestral “Voltalia Informa”, de dezembro de 2021, houve a contratação de cerca de 400 pessoas, muitos deles de outras cidades e regiões. Os empregados equivalem a 16,6% dos moradores das comunidades tradicionais.

HABITAT DAS ARARAS

 

Arara-azul-de-lear no bercário na Toca Velha dentro da estação biológica gerenciada pela ONG Biodiversitas (Thomas
Bauer – CPT Bahia/ H3000)



A iniciativa do Projeto Jardins da Arara de Lear é um exemplo de geração de renda de maneira
sustentável. Em conjunto com as comunidades buscam-se alternativas viáveis às ações que
degradam o meio ambiente. Segundo Marlene Reis, 42 anos, integrante do grupo, mais que 120
famílias participam do projeto. O artesanato produzido é exposto e vendido em duas lojas próprias e garantem a renda dos participantes

Eu vejo com muita preocupação a intenção da empresa francesa que está instalando um parque
eólico exatamente no núcleo de ocorrência da arara-azul-de-lear. Ele fica na região de circulação
que as aves mais sobrevoam de um dormitório para outro e para as áreas de alimentação”

informa Marlene, mostrando um mapa elaborado pelo projeto.

 


Mapa que mostra que as torres estão nas rotas das araras (Projeto Jardins da Arara de Lear)

Diante desta preocupação os integrantes do grupo procuraram os responsáveis pela Voltalia, em
2019.

A gente quis conhecer a proporção do parque. E sugerimos que não fosse neste local porque não precisa nem ser cientista pra ver que ali é uma ameaça às nossas araras. Mas, infelizmente, a
nossa opinião não foi respeitada pela empresa”
– diz Marlene, decepcionada.

A agricultora Maria Ribeiro tem uma paixão especial pela arara-azul-de-lear. Conta que não tem um dia em que elas não sobrevoem a comunidade:

“Às vezes passam de duas, às vezes passam de seis. Eu sempre vejo o movimento delas”– diz

Maria divide com elas o milho plantado e garante nunca as ter espantado de dentro da sua roça
porque as aves fazem parte da natureza. Quando ouviu falar da possível instalação do Parque Eólico logo pensou que as araras seriam as mais afetadas, assim como outras aves.

O primeiro desenho de uma arara-azul-de-lear foi feito pelo ilustrador Edward Lear, no início de
1830, em um jardim zoológico, em Londres. Logo os traços delicados que retratavam a ave
cativaram o olhar de zoólogos e biólogos, que desconheciam sua origem. Vinte e seis anos depois, o francês Charles Lucien Bonaparte, sobrinho do imperador Napoleão, fascinado pela imagem, descreve minuciosamente a espécie a partir de animais empalhados. Este zoólogo batizou a espécie de Anodorhycus leari. O mistério sobre o habitat da arara permanecia.

 

Caboclo é um dos responsáveis pelo monitoramento e proteção da estação biológica. (Thomas Bauer – CPT Bahia/
H3000)


Apenas em 1978, portanto cerca de dois séculos e meio depois, o ornitólogo alemão naturalizado brasileiro Helmut Sick1 adentrou pelo sertão, seguindo pistas dadas por sertanejos, e descobriu a espécie que estava ameaçada em paredões. A expedição de Sick contou com a ajuda de Eliseu Alves, pai de Eurivaldo Caboclo Alves, 50 anos, responsável pela estação biológica da ONG Biodiversitas, na Toca Velha. Caboclo é um dos encarregados pela preservação da área e proteção da espécie. Ele lembra que quando Sick chegou à Fazenda Angico Descascado, onde Eliseu morava , viu pela primeira vez seis araras.


“Meu pai disse que sabia onde elas ficavam e o trouxe à Toca”
– conta.


RECOMENDAÇÕES IGNORADAS


Diante das violações praticadas pela multinacional francesa, entidades como a Articulação Estadual das Comunidades Tradicionais de Fundos e Fechos de Pasto, a Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia, o Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada, o Instituto Popular Memorial de Canudos, a Fundação Biodiversitas, a Comissão Pastoral da Terra e o Movimento Salve as Serras pediram providências, por ofício, ao Ministério Público Estadual (MPE).

Dentre as normas descumpridas pela Voltalia está a não realização de consulta prévia às
comunidades prevista na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a não
1Sick é considerado o principal cientista brasileiro do século XX. Antes disso, no entanto, ele foi preso pelo governo brasileiro, durante a Segunda Guerra Mundial, suspeito de espionagem apenas por ser alemão. realização do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e a não divulgação do Relatório de Impacto Ambiental (Rima), previsto pela resolução 4.579, do Conselho Estadual de Meio Ambiente (Cepram) e exigido para concessão de licença em empreendimentos como este.

 

Sete bases das 97 torres eólicas da Voltalia em meio à caatinga. (Thomas Bauer – CPT Bahia/
H3000)

As denúncias foram acatadas pelo promotor regional ambiental de Euclides da Cunha, Adriano
Nunes de Souza, e pela promotora Luciana Espinheira da Costa Khoury. Diante disto, no dia 19 de julho de 2021, foi expedida a recomendação 01/2021, anexa ao inquérito civil já aberto. Nela, o MPE diz ser necessária a reanálise do processo de licenciamento, a fim de que seja suspensa ou
anulada a licença ambiental da Voltalia. Sugere ainda a realização de consulta prévia às
comunidades e recomenda que a empresa se abstenha de implantar o parque eólico.

As recomendações foram ignoradas pela multinacional francesa e pelo Inema e as obras foram
aceleradas. Recentemente, os moradores das comunidades foram surpreendidos por anúncio
veiculado pelo whatsapp, na qual a empresa informa:


Olá moradores de Canudos, Jeremoabo e Euclides da Cunha. A Voltalia informa que as obras dos Parques Eólicos I e II estão caminhando para fase final. Após a conclusão da etapa da
concretagem das fundações, estamos iniciando a fase de montagem das 28 torres eólicas, também chamadas de aerogeradores. Os aerogeradores são formados por componentes de grande porte que podem chegar a sessenta e quatro metros de comprimento. Por isto, fiquem atentos à movimentação de grandes cargas nas estradas
.”


Indignados com a postura e desrespeito da empresa e do órgão ambiental estadual, os integrantes das comunidades tradicionais esperam que a justiça conceda liminar para suspender a obra, antes de definir a relocação do empreendimento para um local que cause menos impactos.



(*) Edição: Paulo Oliveira – Meus Sertões
Esta reportagem faz parte da parceria CPT Bahia/Meus Sertões

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