É visto que se esgotou o tempo de espera. Faz-se necessário reaprender a lutar e a desobedecer a justiça pensada por machos, brancos e de sobrenome “sei lá como se pronuncia”. Nossa história de luta é pautada por dois modos de vida que se chocam. Quem possui as armas de fogo vem ganhando até hoje esta guerra inútil em que os/as pobres sempre perdem, ou melhor, os/as “injustiçados/as da terra”. Afinal, ninguém é pobre porque é pobre, e sim porque é injustiçado/a, excluído/a do acesso aos bens produzidos pela humanidade e aos bens naturais, deixados pelas divindades para que fosse possível a vida humana na terra.
Para os/as “não merecidos/as” deste modelo de sociedade – preto/a, empobrecido/a, camponês, camponesa, indígena – a vida nunca foi fácil, porém agora está bem mais difícil. Este modelo capitalista produziu duas grandes guerras mundiais e uma vida toda de guerras que visam ao controle dos territórios e ao extermínio de pessoas e comunidades consideradas “menos gente”, menos importante. Pessoas que são vistas como excesso de mão de obra, ou como produto descartável para o capital. Este modelo quando não mata, deixa morrer.
Haiti, Somália, Irã, Iraque, Congo, Ruanda, Nordeste brasileiro… ou poderiam ser helicópteros atirando em cima de comunidades no Rio de Janeiro em pleno 2019. Faz 48 anos que o Papa Paulo VI falou da problemática ecológica como uma crise. Ele dizia em seus escritos que esta é “consequência dramática” da atividade descontrolada do ser humano, “por motivo de uma exploração inconsiderada da natureza, [o ser humano] começa a correr o risco de a destruir e de vir a ser, também ele, vítima dessa degradação”.
Faz 27 anos da “Rio 92”, quando pela primeira vez os governos falaram em problemas ambientais, ao observarem pesquisas. Mesmo assim, o capitalismo segue devastando terras, águas e povos com o seu sonhado “progresso cientifico”, descolado da ética social e ambiental.
Em 1971, o Papa não foi escutado, em 1992 os cientistas éticos não formam escutados e chegamos a este momento de mundo em que a vida vale menos que uma barra de chocolate. Não sabemos o que de fato querem os “donos do negócio”, mas é certo que vivemos em um momento de catástrofes ambientais e de caos social.[1]
A ordem então é refazer fazendo. Fazer nossa parte em relação ao cuidado com a “Casa Comum”; fazer memória das lutas do povo; fazer uma mudança radical nos modos de vida, com respeito às diferenças. Isto significa reaprender sobre sonhos com o povo africano, “Ubuntu – eu sou porque nós somos”, ou ainda com o “Bem viver” do povo Andino, “tudo está interligado. E assim, questionar a nós mesmos/as sobre como estamos construindo o futuro.
Somos convidadas e convidados a ouvir “os gemidos da irmã [mãe] Terra, que se unem aos gemidos dos/as abandonados/as do mundo, com um lamento que reclama de nós outro rumo”. Para ouvir, sentir e refazer precisamos sair do “exílio”[2] (onde o povo se encontra sem templo, sem rei e sem-terra e onde tenta se adaptar a novas formas de vida e de compromisso com seu Deus). Precisamos postar nos sonhos das “pessoas de boa vontade”, assumindo o compromisso, com seu Deus, de uma mudança radical de vida, com solidariedade para com a “Criação” injustiçada. Para sairmos do exílio, “vamos precisar de todo mundo, pra banir do mundo a opressão, para construir a vida nova, vamos precisar de muito amor.” Pois, como diz a frese do momento “em tempos de ódio, melhor seguir amando” e ESPERANÇANDO.
Esperançar como? Se vivemos em um mundo onde a política está submissa à economia e à tecnologia… Não que as tecnologias sejam ruins, porém quando seu único fim é o lucro, sempre temos problemas, como é o caso do agrotóxico. Sobra ganância e falta ética. Um caminho da esperança é fazer memória das lutas de um povo, ou dos povos do Brasil, que desde a chegada dos colonizadores fazem luta por justiça, por direito à terra/território e por liberdades.
Se hoje sentimos os efeitos da degradação ambiental e social de vários povos – dos que aqui viviam e dos que foram trazidos para serem escravizados – é porque vivemos o resultado nefasto de um modelo de desenvolvimento capitalista que tem como premissa a cultura do descarte de coisas, das pessoas e da biodiversidade – enfim, descarte das vidas.
Se existimos por amor e para o amor, a nós foi conferida uma dignidade (ou deveria ser?). Mas a perda do equilíbrio entre nós e a natureza fez-nos sociedade de classes e cores, fez-nos merecidos/as e excluídos/as, fez-nos ricos/as e empobrecidos/as. Mesmo e apesar de tudo, a vida vale a luta, sempre. As comunidades e os grupos sociais vêm se reinventando para sobreviverem ante o modelo capitalista predador e suas várias formas de explorar e seduzir. Pois, o ser humano, sendo uma criatura que propensa a viver e ser feliz, vai buscando com seus modos de existir o direito que lhe cabe, de um ou de outro modo, “na lei ou na marra”.
E se vamos olhar o “pra frentemente” será necessário recorrer às diversidades culturais dos povos, reaprender com a arte, a dança e a poesia, reaprender com as espiritualidades em um trabalho como o de acendedor de lampiões: sair por aí reacendendo sonhos. Mas não acenderemos nada se reforçamos o modelo desenvolvimentista que se apresenta como única solução, enquanto sacrifica povos e comunidades; não acenderemos nada se olhamos as tecnologias por elas mesmas, sem considerar o que de fato é necessário para que a vida aconteça.
A luta contra as desigualdades e a favor da justiça Social ou se dará por meio da mudança radical do paradigma econômico ou não se dará. O Papa Francisco está convidando jovens economistas ao redor do mundo para pensar uma nova economia que seja ecológica e justa, na perspectiva de “saída da religião do crescimento”, apostando no decrescimento[3], e na “deseconomicização”. Neste rumo, convocou o sínodo da Amazônia, não apenas por esta ser uma (a maior) floresta a ser preservada, mas por ver nas comunidades indígenas do “Bem viver” uma possibilidade de saída para os famosos Ts – Terra, Teto e Trabalho, a partir de outra cosmovisão.
Entendo esta proposta como algo muito parecido com a construção do “paradigma de convivência com o Semiárido”: olhar o lugar, o povo deste lugar, como se relacionam, como festejam, como estão organizados. É potencializar fazeres e saberes locais. Os exóticos ou estrangeiros serão bem vindos se conseguirem se adaptar, sem que precisemos modificar as vidas daqui em função das de lá.
Acredito na força do povo e na sua diversidade. Confio nas ações da divina Huar, o espírito mãe que não para e que vive soprando ventos de mudança nos corações e mentes, inspirando as lutas por terra e território, as lutas por moradia e por vida digna, as lutas por direito à educação e saúde. Sabemos de todas essas lutas, mas sabemos também que tudo está se perdendo em nome da meritocracia, em nome da “não ciência”, em nome de Deus! Estão desmontando todas as conquistas do povo e negando a história. O que fazer neste momento de país “em transe”? Devemos fazer como dizia Dom Tomás Balduíno: “precisamos desobedecer quando a lei é injusta” – DESOBEDECER.
E esta desobediência, coletiva e organizada, poderia ser:
- Fortalecer os fazeres dos povos, sem se alinhar às regras construídas por machos, brancos, ruralista, defensores da “Tradição, Família e Propriedade”;
- Aprender/realizar a pedagogia do experimentar – fazer com as próprias mãos a vida que queremos, “Eu plantar e colher com a mão a pimenta e o sal…”, no dia a dia das organizações de juventudes, mulheres, camponeses, das periferias urbanas, quilombos…;
- Ouvir mais o Papa Francisco quando diz que precisamos aprender com os indígenas outra organização, outra economia, ou com o socialismo primitivo experimentado antes da chegada dos europeus neste continente.
- Construir comunidades autônomas – do Estado só o extremamente necessário, aquilo de que depende o bem-estar das maiorias excluídas, para poder pautá-lo e não ser pautado por ele;
- É fazer valer o dito: “ninguém solta a mão de ninguém”, cuidando da saúde emocional do povo, por onde passamos;
- É aplicar a pedagogia do cuidado – estar junto, ouvir, compartilhar, encontrar-se para encontrar saídas no diálogo;
Para nós, Pastorais, é necessário “fortalecer o povo de Deus”, como dizia o Padre Comblin, apostando nos sonhos de “Boa Vida” e de “Bem viver”, para construir “Ubuntu” – sou porque somos, e quem sabe seremos a semente de mostarda para a “Paz na Terra às pessoas de Boa Vontade”.
Vanúbia Martins – Psicóloga, agente pastoral da CPT em Campina Grande (PB) e coordenadora regional da CPT NE2.