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CPT BAHIA

“OS ALTARES DO NOSSO DEUS SÃO NOSSAS MESAS”

A cada metade de ano, o mês de junho nos brinda com a celebração do Corpo e Sangue de Cristo. Não podemos ter receio de definir esta celebração como a festa, também, da comida e da bebida. O evangelho, em sua concretude semítica, não deixa dúvidas. Os que apreciam a camaradagem e a solidariedade, nos coletivos em geral, valorizam permanentemente esta dimensão dos humanos que gostam de “celebrar o Deus da Vida com festa e comida”. Isto pulsa em todas as culturas.

Por outro lado, salta aos olhos, nesta última meia década, que o Brasil, se confronta novamente com o espectro da fome que voltou a rondar como um pesadelo nas estatísticas e sobretudo nos estômagos dos pobres de sempre: indígenas, afrodescendentes moradores/as de rua, encarcerados e seus familiares, muitos componentes das famílias desempregados; sem casa, sem-terra, sem trabalho, sem perspectivas. Até muitas franjas das classes médias baixas, depois de ter se aproveitado de certa estabilidade política, as mesmas que se sentiram em dever de integrar a reação golpista cega, iniciada em 2014 e, agora sentem-se empurradas ladeira abaixo na direção das multidões que passaram e vem passando necessidade. Ruas e avenidas das metrópoles apresentam gente que se obriga a mostrar, com suas presenças em locais públicos, graves precariedades que chegam ao angustiante “comer e beber nossos de cada dia”.

Um forte chamado, ressoa, para os cristãos do mundo inteiro e do nosso país em particular, com a memória da festa do Corpo e Sangue de Cristo que, mesmo de forma totalmente distinta, se expressou também na marcha para Jesus dos irmãos evangélicos. A chamada é forte no sentido de desdobrar eficazmente uma fé de atitudes como Jesus se sentiu em dever de proclamar a quem o seguia. Ele e seus discípulos/as constituíram-se, por puro amor, à luz do evangelho, como uma “proposta odiosa” para a maioria dos detentores do poder socioeconômico, político e até religioso do seu tempo.

Jesus e suas comunidades elaboraram uma parábola, tirada da realidade do cotidiano dele e do seu povo. Costuma ser lida nas igrejas mas tornou-se uma bandeira permanente dos grupos eclesiais de base que, ecumenicamente hoje a carregam também para fora das igrejas nas chamadas pastorais e iniciativas populares e sociais. É a história do bom Samaritano (Lucas 10, 30-37). Uma fé amadurecida no seguimento de Jesus não pode mais se contentar em ações pontuais para aliviar temporária e individualmente os que caem, a todo momento, na beira da estrada e nas mãos dos assaltantes de turno.

Jesus apresenta uma virada estrutural contra a fome e as pobrezas de todo tipo. Sem abandonar a compaixão, atenciosa e pontual, para quem estenda a mão e invoca um socorro emergencial, Jesus faz emergir uma consciência nova que exige atitudes novas que ele colocou, dentro de sua cultura mas tem seu correspondente em todas as culturas: é um objeto que se torna tão sagrado que, ainda hoje, é chamado de altar. De altares, pode  ter muitos; para os cristãos, porém, altar deve incorporar uma mesa, ou outro lugar onde se põe à disposição de todos a comida e a bebida, bem essenciais para os corpos dos viventes.

A mesa ou o local físico da comida assume assim o significado, profundo e sagrado, de uma nova estrutura histórica permanente. Sem a mesa que disponibiliza fraternidade e comida entre iguais, todo chamado “ato de caridade” fica incompleto e pode até ser suspeito de outros interesses não certamente sugeridos pelo amor universal e misericordioso de um Pai/Mãe, como Deus é. Ele age sempre e só pela mediação dos seus filhos/as, irmãos de Jesus, que se amam e se solidarizam em tudo mas iniciando ao redor de uma mesa com comida e bebida, frutos da natureza generosa e do trabalho humano festivamente e gratuitamente, partilhados.

O biblista, companheiro e amigo da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Sandro Gallazzi, nos lembra, entre várias, algumas mesas significativas; Jesus se aproximou delas para iniciar a desvendar o sentido de duas outras mesas fundamentais, no final da sua missão na história humana: a mesa da Última Ceia, onde explicita sua entrega dramática à Cruz, por amor, e a ceia de Emaús, após sua Ressurreição que traz alegria indizível.

– Na mesa de Levi, (Lc 5, 29-39), quando discute com os fariseus sobre o vinho novo que é para os pecadores e não tanto para os justos, e quando faz questão de afirmar que é um vinho sempre novo que por seu vigor necessita de odres novos….

– Na mesa de Simão o fariseu, (Lc 7, 38-50), Jesus se deixa tocar e acariciar por uma prostituta arrependida e, na sua intervenção falada, derruba a teologia da retribuição e escandaliza os presentes proclamando o amor e o perdão como categorias novas de relacionamento.

– Na mesa, que era um lugar deserto (Lc 9, 10-17), com o povo sentado no chão. Em grupos de 50,  com os pães e  peixes compartilhados, Jesus sacia a fome de todos, quando os discípulos queriam despedir o povo para que fossem comprar comida.

Luciano Bernardi – Integrante da Ordem dos Franciscanos Menores Conventuais da província São Francisco de Santo André (SP) , da Comissão Pastoral da terra da Bahia  (CPT BA) e do Serviço Inter franciscano de Justiça, Paz e Integridade da Criação da Família Franciscana (SINFRAJUPE).

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