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CPT BAHIA

Por uma resistência transformadora  

No final de 2017, nas comunidades de Correntina, Oeste da Bahia, houve uma já memorável luta pela água que mobilizou milhares de pessoas; as comunidades saíram maciçamente para defender seus rios e suas águas ameaçadas de secar pela exploração incontrolada das irrigações do agronegócio. Por causa da desativação de um implante, a população repeliu com veemência, a acusação de terrorismo porque a água é algo sagrado pela vida e pelo futuro dos filhos e da natureza. Nesta coluna, utilizamos, duas palavras e atitudes que se faziam necessárias para marcar o lugar certo dos cristãos neste conflito: discernimento e esperança.

Nos dois primeiros meses de 2018, vieram borbulhando, ao nosso redor, em todo o país, muitas “outras águas”. No centro do país continua ameaçadora e cheirando mal, a cloaca máxima representada pela atual gerência governamental e judiciária do Brasil. Em ritmo acelerado, com tristes consequências para os empobrecidos, veio a sensação, após o brevíssimo intervalo dos fogos de artifício, que o ano 18 do segundo milênio, não seria tão novo como todos auguravam. Veio logo o janeiro agitado, desde Porto Alegre, com o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4). Este emitiu uma condenação que evidenciou o abismo existente entre boa parte da opinião pública, respaldada por pessoas e instituições, competentes e honradas, do universo jurídico nacional e internacional, que questionam as decisões e já não aceitam mais identificar a chamada “justiça”, com o seu aparato atual   para que esteja a serviço do estado de direito. Ministérios públicos, juízes, supremo tribunal, ministros e ministras de governo, apoiados e sustentados por reduzidas, mas poderosas classes abastadas, com certeza, não brilham por coerência com a Lei Maior que é a Constituição Federal.

A respeito da corrupção, já está em construção uma consciência nova, sobre sua raiz primordial. A badalação deste termo e dos mecanismos da Lavajato, revelam, a todo momento, ambiguidades, instrumentalizações, diferenças de tratamento… que fazem menear a cabeça, convencendo cada dia menos. O professor e historiador Jessé Souza divulga e aprofunda o porquê disso no Brasil, num livro que está bombando nas livrarias: “A elite do atraso – da escravidão à lavajato”. (Rio de Janeiro, Leya, 2017)

Nos âmbitos eclesiais, ecumenicamente e mundialmente, o Papa Francisco se solidariza, com paixão e entrega corajosas, como nenhum outro papa fez até hoje, para com o mundo dos indígenas, dos negros quilombolas e de todos os setores populares, urbanos e rurais, que, pelo sistema dominante neoliberal, estão, no mundo inteiro e no Brasil de forma cruel, marcados para morrer ou para serem declarados insignificantes em seu girovagar penoso.

Como o professor Jessé Souza insiste, o atual sistema dominante no Brasil deve ser definido, sem receio, com a emergência da Lavajato e dos seus métodos, como a continuação do sistema escravocrata, ainda que adaptado à realidade moderna e pós-moderna. É esta a raiz venenosa que constitui o alimento da pior corrupção, a que se torna indestrutível porque é “natural” ou, melhor, naturalizada por interesses de poucos: as elites do atraso e os que as elites cooptam. Os herdeiros de intelectuais, progressistas e honestos que, historicamente, influíram com explicações elaboradas, parecem ter pudor em tomar em consideração isso diante dos choques bombásticos produzidos pela Lavajato com seus desembargadores, juízes e promotores públicos que se levantam como justiceiros, cobertos por uma mídia insistente e monótona; o conjunto todo é um caminho que mostra sua grave perigosidade: é antidemocrático.  Sem negar a gravidade dos desvios e propinas e os acúmulos de dinheiro nas mãos e malas de pessoas dos escalões do estado, incluindo os altos escalões que utilizaram a camisa verde amarela de um patriotismo digno de melhor causa. Essa corrupção que mais aparece, apesar   de vergonhosa, absolutamente, não é causa primária geradora dos males que afligem o Brasil.

O professor Jessé, em seu livro citado, insiste para que as massas populares, sobretudo suas classes médias, encontrem um jeito de “sair da tolice de uma ideologia propagada até por professores de universidade e historiadores de gabarito, já que a raiz fontal da corrupção é, antes de mais nada, a profunda desigualdade socioeconômica nacional e mundial. É esta a que perpetua privilégios, mentalidades coloniais e escravagistas; misturando-se, hoje, com as drogas químicas comercializadas e as produzidas por climas irrespiráveis feitos de preconceitos, racismos, machismos… embutidos numa nova cultura de exacerbada auto-referencialidade.

No Brasil, as CEBs, comunidades eclesiais de base, vertente eclesial ecumênica, ligada à transformação missionária da realidade, por meio da união entre a fé religiosa e uma vida de práticas éticas e políticas, se encontraram em Londrina – PR. Como era previsível, os cerca de 6 mil representantes de todo o país, com representações também estrangeiras, renovaram entusiasmos alentadores. São grupos que já tem amadurecido sua identidade como “pequenos restos”, que ecoam atualizados na própria bíblia e se firmaram, lucidamente, na teimosia de cultivar a “memória”. Estão superando o receio da rebeldia profética e da subversão do evangelho; não receiam mais diante de tabus tradicionais como o comunismo e, menos ainda contra o machismo antifeminista, o clericalismo com seus legalismos rituais, que se desdobram, muitas vezes, em formalismos vazios.

De fato, as CEBs, com seus leigos e leigas, exigem reformas profundas dentro de todas as instituições, incluindo as eclesiais, e exigem mudanças na maneira de exercer o poder, passando do verticalismo à circularidade das práticas do próprio Jesus. Frente a estas emergências promissoras, na direção oposta, se agregam, querendo recuperar um protagonismo perdido, mascarado de identidade cristã, grupos agressivos e arrogantes, que apelam para a violência verbal, o rigorismo moralista dos códigos, o desrespeito da democracia. Democracia! Palavra ainda indigesta para alguns setores eclesiásticos, que tem dificuldade de vê-la como primeira consequência coerente da oração do Pai Nosso, expressão mais profunda da comunhão de amor trinitário. Este amor solidário é essencial para que o Deus dos cristãos, não transforme o Javé-Jesus do êxodo com o deus dos faraós do Egito (Gn 3) ou do fermento de Herodes e dos fariseus (Mc 8, 14).

Assistimos, na sociedade e nas igrejas, guerras modernas, com golpes baixos, que utilizam as técnicas de persuasão que o próprio papa Francisco denunciou como uma extensão simbólica da serpente, bíblica, “o mais astuto entre os animais” (Gn 3, 1); seu produto é a mentira com suas fake news (falsas notícias e mentalidades). Elas alimentam uma “desinformação sutil, eficaz e perigosa com informações infundadas, baseadas em dados inexistentes ou distorcidos, e voltadas a enganar e a manipular os destinatários. Envenenam a opinião pública e visam objetivos prefixados, para influenciar opções políticas e favorecer lucros econômicos”.

Para quem é cristão, com raízes na história e nos sulcos bíblicos da sua interpretação em sentido libertador, é urgente alimentar a resistência e reforçar a necessidade permanente de uma fé que se aproxima ao modo de ser do Deus da Bíblia. Como Jesus, na vitória sobre as tentações no deserto (Mt 4, 1-11), por uma resistência transformadora.

(Texto escrito para o blog da ASA – Ação Social Arquidiocesana de Salvador- BA)

Luciano Bernardi[1]

[1] Frei franciscano OFMConv do Serviço Inter franciscano de Justiça, Paz e Integridade da Criação. (SINFRAJUPE), membro da CPT BA – Comissão Pastoral da Terra – Bahia.

 

 

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