Após dois anos sem ser realizada de forma presencial, a Romaria da Terra e das Águas, em sua 45ª edição, reuniu cerca de 5.000 pessoas, no Santuário de Bom Jesus da Lapa, no oeste da Bahia. O evento, realizado entre os dias 1º e 3 de julho, foi marcado pelo reencontro de representantes de povos originários e tradicionais impactados pela grilagem e por grandes empreendimentos do agro e hidronegócios, mineração, barragens e parques eólicos, responsáveis pela devastação da natureza, poluição e grilagem.
Essas e outras questões foram discutidas em cinco plenarinhos – Terra e Território, Fé e Política, Rio São Francisco e outras bacias, Juventudes e Crianças -, no qual representantes de cada grupo e de movimentos sociais assumiram compromissos para fortalecimento das lutas populares contra o atual cenário de destruição e omissão fiscalizatória, incentivado pelo governo federal e que conta com a cumplicidade do governo estadual. As medidas estabelecidas constam da (na) Carta da Lapa, divulgada no domingo.
O documento celebra a vida e a luta contra o projeto de morte e profunda exploração contra os marginalizados da terra. Ela menciona as vítimas “da política fascista e neoliberal em curso” e reflete sobre a crise histórica que acompanha o projeto de acumulação de capital, a partir da violência e de destruição da natureza.
A Carta aponta que não há outra alternativa para enfrentar um governo que legitima e aprofunda o genocídio do nosso povo, biomas e territórios, a não ser a organização popular para a transformação integral do atual cenário. Por fim, elenca os compromissos assumidos durante os plenarinhos da romaria. Acesse a carta na íntegra: https://cptba.org.br/wp-content/uploads/2022/07/Carta-da-45a-Romaria-da-Terra-e-das-A%CC%81guas_final.pdf
COMPROMISSOS
Na manhã do segundo dia, a missa foi celebrada pelo bispo João Santos Cardoso, de Bom Jesus da Lapa. O religioso condenou a destruição do meio ambiente e a violência contra quem defende a natureza. Durante a cerimônia, houve homenagem ao jornalista inglês Dom Phillips, ao indigenista Bruno Araújo, assassinados no Vale do Javari, no Amazonas; e ao trabalhador rural Wesley Flávio da Silva, executado no assentamento Nova Esperança, em Rondônia. Dom João Cardoso também ressaltou a mudança de comportamento (necessário), diante da voracidade da busca pelo lucro, a partir da destruição de recursos naturais.
Em seguida foram realizados os plenarinhos. O de Terra e Territórios reuniu grupos sociais e movimentos populares em favor dos indígenas, quilombolas, assentados, geraizeiros, posseiros, camponeses, pescadores e ribeirinhos. O debate girou em torno dos conflitos e ameaças vividos nos territórios, incluindo grilagem, desmatamento, poluição e devastação da natureza. Os principais agentes são o agro e o hidronegócio, mineradoras, barragens e parques eólicos.
Os participantes lembraram a morte do comunicador Maicon Pataxó, que usava as redes sociais para defender a preservação dos territórios indígenas. O jovem indígena morreu após negligência do sistema de saúde.
“O seu arco e flecha era a câmera e a internet” – afirmou Carlos Pataxó, pai de Máicon.
Os compromissos assumidos são a luta para ampliação de experiências agroecológicas, a unificação das lutas, o fortalecimento das redes e das articulações solidárias, a promoção da autodemarcação e de cartografias sociais.
A plenária Fé e Política teve como tema “Por Igrejas em Saída na Defesa da Vida”, movimento defendido pelo Papa Francisco em favor da Igreja Libertadora da América Latina, que enfrenta restrições da ala dogmática do catolicismo. O debate mostrou a insatisfação popular com os governos federal e estadual e com a atuação de religiosos que se afastaram das lutas em favor dos oprimidos.
O encontro começou com a parte mística e homenagem à Irmã Miriam Inês Bersch, gaúcha com atuação em favor de quilombolas em Rio das Rãs, em Santa Maria da Vitória, e do povo guatemalteco.
O principal orador (animador ou assessor) foi o professor de teologia cearense Rafael Gomes da Silva. Ele fez uma reflexão do papel da Igreja de Saída no atual cenário. Citou a última visita do papa ao Brasil, na qual ele disse que era preciso colocar água no feijão, revelando colaboração e comunhão com os caminheiros.
Os principais compromissos assumidos pelos participantes são:
- Assumir a igreja povo de Deus a partir das comunidades eclesiais de base, objetivando a transformação social e atendendo ao apelo do Papa Francisco de “ser igreja dos pobres e para os pobres.
2. Resgatar a dimensão profética na denúncia de tudo que destrói a vida.
3. Promover a mobilização permanente dos empobrecidos pelo capitalismo.
4. Acolher às diversidades no combate ao racismo e patriarcado.
5. Promover o bem-viver e a prática de ecologia integral.
Cento e quarenta pessoas participaram do plenarinho São Francisco e outras bacias. A patrona do encontro foi a ribeirinha Maria do Rosário. Expulsa de Sobradinho, ela passou a atuar nas vazantes de Bom Jesus da Lapa. Na sequência foi apresentada a Carta ao Povo da Bacia do São Francisco e anunciada uma ação de mobilização dos ribeirinhos pelos direitos dos rios, das águas e da vida. Acesse a Carta Articulação Popular São Francisco Vivo e do Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental: https://cptba.org.br/wp-content/uploads/2022/07/Carta.pdf e você pode, também, preencher o formulário https://forms.gle/C5HkUKwpX879ywfk7.
O plenarinho das Juventudes foi aberto com um momento de espiritualidade e mística. O psicólogo Eric Gamaiel e a pedagoga Maicelma Maia fizeram reflexões sobre os efeitos da pandemia sobre os jovens. Os participantes foram divididos em grupos temáticos, incluindo saúde mental, mídia e comunicação, meio ambiente e educação.
Os compromissos são o engajamento no processo eleitoral para o Brasil voltar às mãos dos brasileiros, fortalecer os núcleos e grupos de jovens e desenvolver iniciativas para ampliar a ação social e solidária junto aos movimentos e pastorais sociais.
O tema das Crianças foi o direito de ser amada e cuidar da natureza. Quando questionadas sobre o que deve ser feito para preservar a nossa casa comum, elas estabeleceram como compromisso não poluir os rios, não cortar árvores nem queimar as florestas, não jogar lixo na rua e incentivar o plantio de legumes, verduras e frutas.
MISSAS E OUTROS EVENTOS
A homilia do bispo de Barra, Dom Luiz Cappio, na missa de abertura foi marcada por dois agradecimentos e um pedido. Ele deu graças ao Bom Jesus da Lapa por todos os presentes terem sobrevivido ao período mais letal da epidemia de Covid-19 e por estarem no santuário. E fez um pedido contundente:
“Bom Jesus nos ajude, nos ajude, a devolver o Brasil ao povo brasileiro. Infelizmente pela política governamental vigente, o Brasil está sendo entregue a cada dia às grandes potências econômicas, aos grandes conglomerados econômicos. (…) O povo brasileiro nunca foi tão pobre” – disse.
O bispo também fez uma defesa veemente da Amazônia, exortando os participantes a se posicionarem contra os desmatamentos e outros atos ilegais:
“Quando destruímos a Floresta Amazônica, estamos fazendo igual o coronavírus, estamos destruindo o pulmão do mundo. E sem o pulmão, nós morremos.” – declarou.
Ao final da celebração, houve a apresentação de “Pureza”, filme que relata a história real de uma mãe solo maranhense, cujo filho foi cooptado para trabalhar em um garimpo e desapareceu. Em sua luta para encontrá-lo, a mulher se emprega em uma fazenda e testemunha trabalhadores vivendo em regime análogo à escravidão. Ela enfrenta o sistema perverso e continua sua busca.
A primeira participação organizada dos indígenas foi um dos pontos altos da romaria. Segundo o coordenador regional do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Haroldo Heleno, estavam presentes cerca de 180 representantes dos povos Xacriabá, Aranã, Mokuri, Maxakali, Kiriri e Pancararu (Minas Gerais), Atikum, Sapuiá Kiriri, Pankaru, Pataxó Hã-Hã-Hãe e Fulni-ô (Oeste da Bahia), Tupinambá, Pataxó Hã-Hã-Hãe e Pataxó (sul e extremo sul da Bahia).
Além de promoverem um encontro para avaliar as lutas do primeiro semestre e acertarem uma agenda conjunta de luta para tentar evitar que o Supremo Tribunal Federal (STF) aprove a chamada repercussão geral (marco temporal). A proposta, defendida por latifundiários, prevê que só devam ser demarcadas as terras ocupadas pelos povos indígenas até a data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988. Os indígenas, apoiados pelo CIMI, CPT e Cáritas, lutam pela manutenção do conceito de direito originário, que leva em consideração o fato de os povos originários estavam aqui quando o estado brasileiro estava se consolidando.
Eles trocaram experiências com quilombolas, ribeirinhos, geraizeiros e integrantes das comunidades de fundo e fecho de pasto. Na Via Sacra (que contou com três estações:, os indígenas participaram no momento morte, quando foram divulgadas estatísticas de violência contra os povos originários. Só este ano, quatro jovens foram assassinados por motivos fúteis. Entre eles, Vitor Braz de Souza, indígena de 21 anos, morto com um tiro no pescoço após de reclamar de o barulho de uma festa que não deixava o filho dele, de apenas 30 dias, dormir. A formação de milícias de fazendeiros para expulsar os indígenas também foi relatada.
Durante a Romaria da Terra e das Águas foram comemorados os 50 anos de ordenação sacerdotal e 25 anos de ordenação episcopal de Dom Luiz Cappio, os 50 anos do Conselho Indigenista Missionário e os 50 anos de ordenação do frei franciscano Luciano Bernardi, que hoje atua no Bairro da Paz, bem como assessor da Comissão Pastoral da Terra na Bahia, em Salvador. Bernardi calcula ter participado de 30 romarias, pelo menos. Em uma ocasião, percorreu a pé os 516 quilômetros entre Itaberaba e Bom Jesus da Lapa.
Para o frei, que não ia a Bom Jesus da Lapa há quatro anos por causa da pandemia e por causa de problemas de saúde, há mudanças interessantes na romaria. Ele ressalta que os participantes de hoje não são camponeses, como no passado. São pessoas que têm acesso aos meios de comunicação e não aceitam ter como destino a migração para São Paulo em busca de trabalho.
Frei Bernardi ressalta ainda que as pessoas estavam sentindo falta da formação e do reencontro necessário para encorajar a continuidade de lutar por seus direitos. O religioso elogiou a capacidade dos organizadores e de seus assessores para escutar os oprimidos e deixar claro que eles são os protagonistas de todo processo. Também constatou a redução da participação dos jovens e o aumento da autonomia das mulheres.
“A participação dos indígenas também cresceu. Eu fiquei entusiasmado com isso porque eles estão sendo muito pisoteados” – disse.
Além de 15 povos indígenas, participaram da 45ª Romaria da Terra e das Águas representantes de três arquidioceses, 11 dioceses, entidades, pastorais, ONGs e movimentos sociais.
Texto: Paulo Oliveira/ Meus Sertões, Thomas Bauer – CPT BA/ H3000
Colaboração: Nathan Dourado, Claudio Dourado, Gilmar Santos, Equipe da Paróquia São Sebastião – Seabra-Ba
Fotos: Thomas Bauer – CPT BA/ H3000