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CPT BAHIA

Terra e água

A Tarde – Opinião

Bete Santos

Professora e Pesquisadora da Escola de Administração/Ufba

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A democratização do acesso a terra e água sempre esteve associada, particularmente no Nordeste brasileiro.

 

No campo, o dono da terra é o dono da água. Na cidade, apesar da ampliação das redes de abastecimento e de saneamento verificada na última década, o acesso a esses serviços de forma regular depende do quanto se pode pagar pelo metro quadrado da terra. Quando a disputa pela água se agudiza, a escassez se agrava, na cidade e no campo. Quem primeiro sofre com a falta d’água é o pequeno proprietário de terra e o morador da periferia.

 

É grande a polêmica em torno do aquecimento global, da mudança climática e de suas consequências. Alguns estudos afirmam, de modo enfático, que o mundo está ficando mais seco. Dos 1,37 bilhões de km³ de águas disponíveis, 97,2% são águas salgadas e apenas 0,6% de água doce são passíveis de uso. Além disso, a sua distribuição é espacialmente desigual. A Ásia e a América do Sul têm as maiores médias mundiais de escoamentos superficiais, enquanto Europa e África estão em situação oposta.

 

O Brasil possui 12% da reserva hídrica mundial. Temos água, mas esse bem é distribuído irregularmente – 70% desse patrimônio estão na Amazônia, onde reside parcela pequena da população. Desse modo, falta água na região semiárida nordestina e falta água nos grandes centros urbanos.

 

No campo, a expansão agrícola se faz concentrando terra e privatizando a água. Dados do Incra indicam que 0,73% dos imóveis rurais possuem 42% das terras brasileiras, e a isso corresponde um processo de apropriação privada das águas, particularmente através da concessão da outorga do direito de uso à agroindústria e à mineração por 20 ou 30 anos. A permanência de um quadro de concentração fundiária no país tem sido justificada com a tese de que a reforma agrária tem, hoje, um significado apenas político. Para lideranças do Movimento dos Sem Terra, essa tese só se justifica do ponto de vista do agronegócio – afinal, quem coloca alimento na mesa do brasileiro são as pequenas e médias propriedades.

 

Nesse contexto, deve ser discutida a implementação na região semiárida da parceria público-privada para a irrigação, segundo recomendações do Brazil Irrigated Agriculture in the Brazilian Semi-Arid Region: Social Impacts and Externalities, do Banco Mundial. O modelo proposto, mais uma vez, beneficia a produção para exportação, em detrimento da produção tradicional; a grande propriedade em detrimento da pequena, e vai na contramão da democratização do acesso a terra e água. Mais uma vez, o rio corre para o mar – quem tem terra tem água.

 

Na cidade, o aguçamento dos conflitos pelo acesso aos serviços de infraestrutura urbana coloca em destaque o acesso diferenciado às águas, que reflete as diferentes formas de apropriação da terra urbana. A situação de escassez vivenciada atualmente em São Paulo é exemplar. O sistema Cantareira, que abastece 8,8 milhões de pessoas, não consegue dar conta da demanda, e o governo paulista reluta em estabelecer o racionamento, preocupado com as consequências eleitorais dessa medida.

 

A falta d’água não chega a ser exatamente uma novidade, por exemplo, no bairro Bom Clima, em Guarulhos, na Grande São Paulo. Entretanto, antes faltava água a cada dois dias; agora a água chega dia sim, dia não, e o comércio e os serviços já começam a sentir as consequências da escassez.

 

Enquanto isso, os Jardins continuam a lavar as suas calçadas com água tratada, e em torno de 40% da água distribuída pela Sabesp se perdem entre as estações de tratamento e a torneira do consumidor. Essa situação se reproduz, quase sem exceção, em nossas grandes cidades.

Essa situação de crise, há muito anunciada, revela, mais uma vez, que a universalização do acesso à água é uma questão política, que perpassa também a democratização do acesso à terra e as relações entre governos e cidadãos, sobretudo quanto se trata de decidir sobre as formas social e ambientalmente mais justas – e não exclusivamente mais viáveis economicamente – de apropriação e uso desses bens comuns e de direito universal.

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