O quilombo é lugar de resistência daqueles e daquelas que, desde nossos ancestrais sequestrados em África para serem escravizados no Brasil jamais abriram mão da luta pela liberdade e mesmo que os colonizadores nos tenham obrigado a passar pela “árvore do esquecimento” das nossas raízes e identidades, a fim de nos tirar a memória de quem verdadeiramente somos e, ainda hoje, persistam na tentativa de criminalizar, demonizar, branquear, invisibilizar e exterminar as expressões afro-brasileiras, os territórios de vida e os corpos, as práticas ancestrais e tantas outras heranças dos nossos povos perpassam gerações. Nesse sentido, diversos(as) estudiosos(as) das questões dos quilombos, a exemplo de Beatriz Nascimento e Abdias Nascimento, os entendem como exemplos de civilização, dos quais temos muito a aprender.
A riqueza cultural das comunidades quilombolas constitui-se como um patrimônio imaterial de toda a sociedade, conservando expressões culturais e religiosas de matriz africana a exemplo do Candomblé, Umbanda, o samba, o batuque, a capoeira, o reisado, as práticas de cura e outros costumes contrários ao individualismo que desintegra as relações comunitárias.
Todavia, o processo de dominação branca de base eurocêntrica, centrada na colonialidade do ser, do saber e do poder que permeiam a história da América Latina e também da África até os dias atuais, reconfiguram os processos perversos de vulnerabilização e violências submetidos aos nossos povos, seja pela ausência do Estado na garantia dos direitos ao mesmo tempo, em que, age como “gestor da morte” para proteger a propriedade privada e os interesses das burguesias, seja pela reprodução social das relações de poder estruturantes do capitalismo; o patriarcado, o racismo, o sexíssimo e outras racionalidades e/ou sistemas políticos-econômicos-sociais hegemônicos.
Peço licença aos quilombolas, aos anciões e anciãs e aos seus sagrados, para falar de algumas experiências vividas nas comunidades quilombolas do município de Nordestina, BA, onde, apesar das inúmeras dificuldades enfrentadas pelo povo para viver, a força motriz da resistência vinda da ancestralidade negra, pode até ser invisibilizada ou silenciada, porém, jamais poderá ser destruída.
Um levantamento realizado pela CPT CN Diocese de Bonfim, em 2019, nas comunidades de Palha, Salinas, Poças, Bom Sucesso, Tanque Bonito, Lagoa da Cruz, Lagoa dos Bois, Caldeirão do Padre, Caldeirão do Sangue, Fumaça, Lajes das Cabras e Grotas, no referido município, identificou mais de 30 pessoas que exercem o dom de benzer: contra o mau-olhado, vento caído, peito aberto, quebranto, olho gordo, ambição, cobreiro e outros males. É necessário destacar a importância de conservar esses saberes e dons, através da transmissão para as novas gerações, como vem acontecendo em algumas localidades onde, existem jovens e adolescentes que conhecem e valorizam as rezas e rituais, aprendidos de seus antepassados.
Esses/as rezadores e benzedeiras que guardam os saberes ancestrais das práticas de cura, vivem experiências de conexão com as divindades e guias espirituais que se fazem próximas de seus povos, mas, ao longo da história, com o monocultivo da fé (cristã), foram demonizadas e seus cultos marginalizados, condenados à clandestinidade.
Outra dimensão essencial nessas comunidades, é a prática da medicina tradicional onde, além das plantas utilizadas nas rezas e banhos, são usadas raízes, cascas e folhas para chás, lambedôs e defumadores: pau ferro, pau de rato, umburana, juazeiro, umbuzeiro, aroeira, pinha, acerola, mangueira, goiabeira, picão, camomila, brilhantina, capim santo, hortelã, alecrim, sete dor(es), erva-babosa, erva-cidreira, boldo, araticum, mastruz, poejo, são alguns exemplos das muitas espécies encontradas na caatinga, extraídas do território quilombola e outras cultivadas nos quintais familiares. Além disso, destacam-se os espaços de produção e de sociabilidade que, proporcionam a retomada da memória, por meio dos casos, versos, cantigas e outras toadas compartilhadas na circularidade dos quilombos, por exemplo, o extrativismo, a quebra do licuri, a raspa da mandioca e as farinhadas, realizadas em mutirões.
Fato lamentável é que, a concentração da terra, da água e de outros bens naturais do território, atualmente dominado em parte pela mineradora de diamantes, Lipari Mineração LTDA, bem como, os processos de desmatamentos e precarização das condições de produzir, com consequente aumento da pobreza, somadas aos mecanismos que exercem à dominação simbólica, a exemplo da educação desvinculada do território e dos meios de comunicação hegemônica, são fatores que contribuem para o enfraquecimento das tradições dos povos.
Ademais, hoje, as forças opressoras de racionalidades racistas presentes em todas as esferas da sociedade e instituições que, entre outros males, produzem e reforçam os discursos de ódio, discriminações e ações criminosas contra as culturas e religiosidades de matriz africana e dos povos originários, continuam adentrando os territórios, principalmente através das igrejas evangélicas conservadoras e movimentos neopentecostais que, muitas vezes, apoiam projetos de morte, estimulando relações de opressão sobre práticas indenitárias que constituem os povos afro-brasileiros.
Embora o livre exercício da religião e expressões de fé sejam direitos, nos últimos anos, inclusive durante a pandemia da Covid-19, que estamos enfrentando, muitos templos e terreiros de matriz africana foram e estão sendo atacados no Brasil, contudo, as ações deficitárias do Estado para proteger os direitos das populações, são incapazes de inibir esses tipos de crimes motivados pela intolerância religiosa e pelo racismo.
Nesse contexto, conforme Aza Njeri, menciona em um dos seus trabalhos afrocentrados, a luta dos povos negros pela liberdade plena, é compreendida como uma pulsão psicológica. Assim, as experiências das comunidades quilombolas mencionadas, são antes de tudo, forças identitárias, constituídas como elementos de resistência e luta pela liberdade que, na história dos quilombos, “sempre esteve ancorada na apropriação dos territórios” e no exercício das territorialidades – os sentimentos e sentidos atribuídos aos lugares, a partir das formas de uso da terra, da água, de todos os bens naturais e culturais e, as relações de poder que são produzidas ao mesmo tempo, em que produzem as configurações territoriais.
REFERÊNCIAS:
Comissão Pastoral da Terra – Centro Norte, Diocese de Bonfim, BA; Grupo de Pesquisa Geografar (UFBA); Movimento Pela Soberania Popular na Mineração (MAM). Relatório de atividades de campo em Nordestina. 2018. 35 p.
Decoloniza: O podcast da ocareté. O que é mulherismo africana? Convidada: Aza Njeri. 06 de nov. 2020. Disponível em: www.ocarete.org.br/decoloniza.
Fórum de Comunidades Quilombolas de Nordestina Bahia. Informativo: Território Livre. Nº 03 – Maio, 2021.
RIGOTTO, Raquel Maria, et al. Desenvolvendo as tramas entre saúde, trabalho e ambiente nos conflitos ambientais: Aportes epistemológicos, teóricos e metodológicos. In: Tramas para a justiça ambiental: diálogo de saberes e práxis emancipatórias. Fortaleza, Edições UFC, 2018.
Autora: Maria Aparecida de Jesus Silva. Mulher negra. Agente da Comissão Pastoral da Terra. Bacharel em Teologia. Licenciada em Pedagogia. Especialista em Desenvolvimento e Relações Sociais no Campo.