No Cerrado, grileiros destruíram casas de vaqueiros tradicionais do fecho de Vereda da Felicidade; em Barra, pistoleiros tentaram expulsar ribeirinhos das margens do Velho Chico; os dois casos aconteceram no fim de janeiro
A violência assombra camponeses no interior da Bahia. No fim de janeiro, duas comunidades tradicionais em pontos distintos no oeste do estado, distantes 400 quilômetros entre si, foram intimidadas por homens armados, tiveram parte de seus bens destruídos e quase foram expulsas de suas terras. As agressões ocorreram entre os Gerais — áreas de Cerrado nativo — e o agreste baiano.
Em Barra, às margens do Rio São Francisco, o ataque foi violento. No dia 24 de janeiro, um grupo munido com pistolas e escopetas invadiu terras ribeirinhas e tentou expulsá-los, com suspeita de participação de agentes de segurança pública.
Pouco antes, no dia 22, outro grupo de grileiros invadiu uma área de Cerrado nativo protegida por vaqueiros tradicionais na zona rural de Correntina, extremo oeste baiano, a mil quilômetros de Salvador, numa área que tem o poético nome de Vereda da Felicidade.
Sob investigação da Polícia Civil estadual, os dois casos revelam uma crescente disputa por terras motivada pelo agronegócio na Bahia, envolvendo de latifundiários tradicionais do estado a fundos de investimento de São Paulo.
HÁ OITO ANOS, FAZENDEIROS TENTAM EXPULSAR COMUNIDADE
Braço do Roçado é uma comunidade com 37 famílias que ocupam uma pequena faixa de terras na margem esquerda do Velho Chico, entre Barra e Morpará, a 700 quilômetros de Salvador. Os posseiros atravessam o rio diariamente para cultivarem suas roças na área de cerca de 40 hectares, muito fértil pela proximidade com a água, onde os ribeirinhos vivem há mais de trinta anos.
A tranquilidade durou até 2013. De lá para cá, membros da família Inojosa de Andrade tentam expulsá-los. São os donos da fazenda Outeiro do Vale, um latifúndio com mais de 40 mil hectares, segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Os latifundiários já pediram à justiça baiana a reintegração do Braço do Roçado, sem sucesso. Na ação, acusam os ribeirinhos de praticar “desmatamentos, derrubando árvores e levantando cercas improvisadas para realizar plantios no leito do rio”.
Os camponeses negam e já provaram que suas terras são, na verdade, da União — tese confirmada pelo judiciário baiano, que enviou o caso à justiça federal em abril de 2019. Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Ministério Público Federal em Irecê (BA) acompanha o caso e há uma audiência marcada para o dia 04 de março, para resolver este impasse.
Como pano de fundo há uma intensa luta por terras em Barra desde 2020, quando o governo baiano criou um projeto milionário para a região: o Polo Agroindustrial e Bioenergético do Médio São Francisco. A iniciativa foi anunciada pelo vice-governador e secretário de Desenvolvimento Econômico da Bahia, João Leão (DEM). O político é membro de uma tradicional família de ruralistas do extremo oeste baiano, na divisa com o Piauí.
Estão previstos mais de R$ 500 milhões para a construção de usinas de cana-de-açúcar em Barra e Morpará, atraindo até mesmo investidores estrangeiros. Áreas como a do Braço do Roçado, com fácil acesso às águas, são cada vez mais visadas. As obras se estenderão por mais de 200 mil hectares, segundo o Canal Rural.
VAQUEIROS SOFREM TERCEIRO ATAQUE NO COMBALIDO CERRADO BAIANO
Dias antes do ataque em Barra surgia, a 400 quilômetros dali, o prenúncio de novos conflitos. No dia 22 de janeiro, grileiros invadiram uma área de Cerrado nativo protegida por vaqueiros na zona rural de Correntina, extremo oeste baiano, a mil quilômetros de Salvador. O local se chama Vereda da Felicidade.
Os pistoleiros incendiaram ranchos usados pelos vaqueiros, enterraram os destroços com uma pá carregadeira e até mesmo cavaram imensos buracos nas estradas de terra adjacentes, dificultando o acesso à área.
“É o terceiro ataque que sofremos, sendo que, em uma das outras vezes, destruíram um rancho muito antigo, que estava de pé fazia mais de 50 anos”, diz um dos moradores da área, que, por segurança, pediu anonimato.
No período de fim de ano, vaqueiros reúnem seus rebanhos no oeste e rumam para os Gerais. Por meio de sua pecuária tradicional, feita coletivamente, eles resguardam suas terras — os chamados fechos de pasto — enquanto protegem o Cerrado. O recente ataque ocorreu em um destes fechos, o Vereda da Felicidade, a mais de 40 quilômetros da sede de Correntina.
O ataque de janeiro já vinha sendo anunciado. “No fim do ano passado, passaram um recado para a gente: era melhor não voltar pra lá, porque o ‘trem ia feder’”, afirma o morador.
As ameaças não se dão à toa: Vereda da Felicidade está em plena zona de expansão da soja no país, o chamado Matopiba — fronteira agrícola que agrega partes da Bahia, Maranhão, Piauí e todo o Tocantins.
Junto ao agronegócio, prosperam a especulação fundiária e a chamada grilagem verde. Os territórios grilados, mais conservados ambientalmente, tornam-se reservas legais anexadas aos latifúndios, estimulando conflitos e roubo de terras no oeste baiano.
“Eles querem a gente fora daqui devido ao fecho nosso ser bem preservado”, diz o morador da zona rural de Correntina. “Nós temos uns 15 quilômetros de veredas e nascentes cercadas, protegidas. Como desmataram e secaram os rios nas fazendas deles, querem a nossa propriedade, dizendo que é reserva ambiental deles”.
FAZENDEIROS E CONSTRUTORA DISPUTAM ÁREAS DE USO COMUNITÁRIO
Ao menos nove fazendas estão sobrepostas à Vereda da Felicidade, segundo levantamento feito pela Coordenação de Desenvolvimento Agrário da Bahia (CDA). Juntas, essas fazendas que invadem o Cerrado protegido pelos vaqueiros somam uma área de quase 30 mil hectares, o equivalente a mais de trezentos parques do Ibirapuera.
A partir do levantamento da CDA, De Olho nos Ruralistas identificou alguns dos principais interessados em expulsar os vaqueiros da área. Entre eles, fazendeiros vizinhos e uma gestora de imóveis registrada na grande São Paulo, cujo sócio já fez negócios milionários com o governo federal.
O advogado José Francisco do Amaral, de Panambi (RS), se destaca entre os supostos donos de terras na área. Ele é pai de Ramon José do Amaral, dono da fazenda Santa Tereza III, com mais de 3 mil hectares. Grande parte do imóvel se sobrepõe à Vereda da Felicidade, segundo o Incra. A associação comunitária dos vaqueiros move um processo contra José Francisco desde 2013, ainda sem veredito do judiciário baiano.
“Entramos com uma liminar para manutenção da posse da área em 2013, mas nunca foi apreciada, mesmo com diversos episódios de violência e boletins de ocorrência anexados à ação”, diz a defesa dos camponeses.
José Francisco do Amaral também move um processo de usucapião contra o dono da Fazenda Capão de Cima, com outros 1.500 hectares neste mesmo fecho de pasto. A ação ressalta a presença de outros interessados nesta faixa de Cerrado preservado em Correntina.
Documentos do governo estadual mostram que outra fazenda, a chamada Bandeirantes, é a maior dentro da área ocupada pelos vaqueiros. Uma fatia considerável de seus 20 mil hectares se sobrepõe à Vereda da Felicidade e ao fecho vizinho, Cupins. O trâmite de venda desta fazenda motivou outro processo, desta vez na justiça paulista.
Sua atual dona, Light of Stars Gestão Patrimonial Ltda., é uma das citadas em uma ação movida por dois ex-sócios dos antigos responsáveis pelo imóvel. Eles alegaram que a venda se deu sem consentimento e por um valor abaixo de mercado. Segundo os antigos sócios, a propriedade valia mais de R$45 milhões, mas foi vendida por uma pechincha: R$ 7,5 milhões.
A Light of Stars, uma gestora de imóveis com sede em Osasco (SP), teria assumido dívidas milionárias da fazenda, o que justificaria o abatimento no valor. A explicação consta no acórdão assinado pelo relator do caso na justiça de São Paulo. Seu principal sócio é Ricardo Rodrigues, que também comanda a Ideal Work, uma confecção de uniformes e equipamentos de proteção individual. Segundo o portal da transparência, esta empresa tinha fornecido mais de R$ 40 milhões em produtos ao governo federal — a maior parte para a Petrobras — entre 2012 e 2014.
GOVERNO DA BAHIA PROMETE INVESTIGAR SOBREPOSIÇÕES
De Olho nos Ruralistas procurou o governo baiano para entender o que foi feito para a proteção dos camponeses em Correntina. O secretário-executivo da CDA, Danilo Santos, disse que há constante “atualização de informações sobre possíveis ameaças às comunidades de fecho e fundo de pasto”.
Santos afirma também que não teve “respostas sobre quem são os supostos responsáveis pela fazenda e seus respectivos contatos”, ignorando a existência do mapeamento das sobreposições de fazendas aos fechos de pasto, feito pela própria CDA em 2019.
O secretário-executivo do órgão anunciou a abertura, na última quinta-feira (18), de ações discriminatórias para analisar a legalidade dos registros sobre a Vereda da Felicidade e outros quatro fechos próximos: Capão do Modesto, Porcos, Guará e Pombas.
Santos diz ainda que a medida será acompanhada pela criação de uma comissão, visando garantir total acesso à origem dos imóveis, frequentemente fraudada nos cartórios do oeste baiano. O secretário-executivo informa que, desde 2018, o órgão tenta analisar os registros, mas “alguns cartórios não apresentaram resposta sobre a cadeia dominial dos imóveis particulares que se sobrepõem às áreas das comunidades”.
Procurada, a Secretaria de Segurança Pública da Bahia não respondeu até o fechamento desta reportagem.
Caio de Freitas Paes é repórter. Escreve para De Olho nos Ruralistas e The Intercept Brasil, entre outros veículos. |
Foto principal (Reprodução): o que sobrou após a invasão de pistoleiros em Vereda da Felicidade, comunidade tradicional de vaqueiros em Correntina (BA)