A Companhia Independente do Cerrado, da PM baiana, não prendeu nenhum dos pistoleiros apesar de estar na região há mais de um mês e ter informações sobre os criminosos. Foto: Paulo Oliveira
Atuação do Estado para impedir conflitos é pífia. Pequenos criadores pedem socorro
por Paulo Oliveira e Thomas Bauer*
Os pistoleiros contratados por latifundiários driblaram os policiais militares da Companhia Independente de Policiamento Especializado do Cerrado (CIPE-Cerrado), que há mais de um mês realizam operações em Correntina, no oeste baiano. Até o momento nenhum responsável por aterrorizar e tentar expulsar integrantes das comunidades tradicionais de fecho de pasto [1] foi preso. Os bandidos voltaram a destruir cercas das propriedades dos pequenos criadores e cavar trincheiras para que os fecheiros não levem o gado para as áreas nativas do cerrado, onde os animais ficam soltos por três meses até que os pastos das comunidades se recuperem. Nos últimos dias, os fechos mais visados foram o da Vereda da Felicidade e o do Cupim.
O objetivo dos empresários do agronegócio é tomar as terras ainda intactas do cerrado para cumprir o Código Florestal, que exige reservas legais equivalentes a 20% dos latifúndios, onde se plantam, principalmente, soja e algodão. A lei exige que a reserva seja do mesmo bioma destruído, mas não obriga que ela faça parte das fazendas. Quem não cumpre a legislação fica impedido de obter crédito em instituições financeiras e de comercializar a produção.
A violência recrudesceu desde setembro, diante dos indícios de eminente derrota de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais. A contratação de pistoleiros baianos e de outros estados da região centro-oeste visa consumar a apropriação de terras preservadas antes da posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva. O governador Rui Costa (PT-BA) e diversas autoridades estaduais e federais foram comunicadas da ocorrência de atentados e ameaças em Correntina, mas praticamente nada fizeram. A Polícia Militar foi enviada à região. No entanto, o desempenho da Companhia do Cerrado é considerado pífio.
Na última quinta-feira (1º de dezembro), o fecheiro João* [2] usou as redes digitais pedir às autoridades que agissem contra as milícias rurais:
“Está acontecendo uma tragédia. Estão desmatando a Cabeceira [3] da Onça, local de maior suporte de água do nosso território. Essa área foi desmatada no passado e perdeu muita vazão. Com a nova supressão de vegetação, ela vai secar. Também tem a Cabeceira de Morrinhos, que está na mira do agronegócio. O licenciamento liberado (pelo governo estadual) é de 2.226,9 hectares. Essas nascentes vão desaparecer. Isso aqui é um grito de socorro. Já fizemos inúmeras denúncias para os órgãos competentes, e elas não surtiram efeito” – denunciou.
Imagem acima feita pelos fecheiros mostra que os latifundiários desmataram os dois lados da Vereda [4] da Onça, deixando a vegetação apenas no espaço onde a água começa a correr. A tendência é que a nascente fique seca.
O pequeno produtor também relatou que outras áreas estão sendo desmatadas na região:
“Os pistoleiros continuam lá, armados. Nós não estamos podendo ir aos fechos de pasto. Estamos sabendo por informações de outras pessoas que as máquinas estão trabalhando dia e noite, sem parar, destruindo tudo. Não vai sobrar nada do nosso território.” – clamou.
Filho e neto de fecheiro, João lembrou que a reportagem do site Meus Sertões publicou fotos de pistoleiros, manuseando um arsenal, no dia 10 de novembro. Os milicianos rurais formaram o número 22 com munições de escopetas e de revólveres, exaltando o partido de Bolsonaro. As imagens viralizaram na internet. Os assassinos de aluguel, de acordo com o denunciante, estariam acoitados na Fazenda Santa Tereza III, cuja área é de 3.093 hectares.
De acordo com o resumo de requerimento de outorga do Inema, solicitado em 26 de novembro de 2021, os proprietários da fazenda são Alexandre Yamaguti, Eliton Gavazzoni e Jarbas Guimarães Júnior. No requerimento fica claro que o empreendimento usará água para lançar resíduos líquidos e fará intervenção em corpo hídrico. Os empresários desejam ainda perfurar poços no local.
Quem também utilizou as redes digitais para pedir providências contra os criminosos foram integrantes das associações de fecho de pasto de Correntina. Pedro* [5] colocou vídeos em grupos de Whatsapp, mostrando cercas cortadas com motosserras e mata-burros destruídos. Editamos as imagens e tiramos a voz do fecheiro para que ele não possa ser identificado, mas reproduzimos o que ele narrou:
“Estou mostrando o regaço que a turma dos pistoleiros acabou de cortar. Eles vieram por volta das 6h30, 7h da tarde. Pelo horário chegaram do Fecho do Cupim. Cortaram em pedaços a cerca, o colchete e o meio dos paus do mata-burro. Se um carro passar aqui, vai cair no buraco e vão incriminar a associação. Eles estão fazendo muita crueldade. Não poderiam vir aqui, pois isto fica na propriedade da gente. É revoltante. Olha o estrago que fizeram. A gente trabalha, gasta recursos e muito esforço para eles acabarem com tudo em menos de uma hora. É de chorar!”.
LICENÇAS AMBIENTAIS
Além da destruição, há a questão dos desmatamentos, justificados pelo excesso de licenciamentos de supressão de vegetação concedidos pelo Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), autarquia do governo da Bahia, responsável pela execução da política ambiental. O instituto não responde aos questionamentos da imprensa, nem mesmo às solicitações de prefeitos aliados do governador Rui Costa. Um deles é Nilson José Rodrigues, o Maguila (PCdoB), que está no quarto mandato, em Correntina.
“Para você ter uma noção, eu pedi uma audiência com a diretora do Inema, Márcia Teles, tem uns dois anos. Até hoje não consegui falar com ela” – contou o prefeito.
Apesar disso, o chefe do Executivo municipal apoiou Jerônimo Rodrigues, candidato a governador indicado pelo PT, e Lula nas últimas eleições.
“Pelo menos com eles tenho a liberdade de requisitar a polícia para me acompanhar quando os fecheiros precisarem de apoio para reconstruir algo que foi destruído, por exemplo. Se ACM Neto e Bolsonaro vencessem eu chamaria a PM para ir nos gerais [6] e queria ver se ela ia” – justificou Maguila.
Outra questão importante diz respeito aos licenciamentos. Diante da abertura de três ações discriminatórias pela Coordenação de Desenvolvimento Agrário (CDA) [7] para separar as terras devolutas estaduais das áreas particulares, teoricamente eles não poderiam ser concedidos. Caso algum fazendeiro apresentasse escrituras contestando o Estado, a questão deveria ser decidida pela Justiça. Apesar disso, alguns supostos proprietários de terras tentam obtê-las à força.
Através das portarias 13, 14 e 15, publicadas em Diário Oficial no dia 17 de fevereiro de 2021, a coordenadora executiva da CDA, Camila Lima Batista, instituiu três comissões com os mesmos servidores – Pedro de Souza Sobral Neto, Carlos Alberto Melo Sobral e José Roque Guimarães Peixoto – para discriminar as terras devolutas dos fechos de pasto Porco, Guarás e Pombas (8.744 hectares), Capão do Modesto (11.264 hectares) e Vereda da Felicidade (28.118 hectares. Camila determinou ainda que as áreas técnica, jurídica, administrativa e financeira da unidade apoiassem o trabalho da comissão.
O INÍCIO DOS ATAQUES
Roberto* [8] lembrou o que os integrantes das comunidades e associações de fecho de pasto passaram a sofrer pressões e ameaças em 1975, quando os grileiros passaram a ter interesse nas áreas do cerrado para implantar a monocultura de eucalipto ou de pinho. O projeto era incentivado pelo governo federal.
“A expectativa dos grileiros era pegar o dinheiro fácil e se apropriar de terra pública. O projeto fracassou e fizemos a retomada, nos anos 1980. Recuperamos cercas e voltamos a criar o gado, que tinha sido intoxicado com o agrotóxico usado neste tipo de cultura. Em 1999, o conflito voltou a ficar acirrado. Ranchos foram derrubados e queimados. Os pistoleiros, alguns ex-policiais, se estabeleceram” – recordou.
Com a chegada do agronegócio, os fazendeiros empurraram os fecheiros para mais próximo da cidade. Antes, os fechos ficavam quase na divisa com Goiás, a 200 quilômetros de distância. Hoje, ficam a 40 quilômetros do centro de Correntina. A perda do território foi grande.
“Os latifundiários são gaúchos, catarinenses e até pessoas de outros países – China, Japão e Itália. Eles não respeitam nossas tradições, nossa cultura. Ficamos nos perguntando se nós que somos filho daqui, mantivemos os costumes ancestrais e preservamos o cerrado temos algum valor? Parece que para o governo só quem tem valor é o pessoal de fora. Além disso, o agronegócio mostra o que produz, mas não o que destrói” – desabafou.
O pequeno criador explicou ainda como os pistoleiros agem na região. Segundo ele, as fazendas se associam para contratar milícias armadas. Estas por sua vez constituem empresas de segurança legais ou clandestinas. As táticas utilizadas são o terror contra os fecheiros. É armamento pesado contra os camponeses que, no máximo, na lida do campo, utilizam ferramentas indispensáveis ao trabalho.
Roberto relatou que em muitos casos, os jagunços derrubam e enterram as ruínas para esconder as provas dos crimes. Ele revelou que nas ações recentes da polícia, os fecheiros passaram todas as informações que possuíam, mas os policiais insistiam que eles detalhassem o calibre das armas dos pistoleiros, algo que desconhecem.
“Quando os PMs saíam, os meliantes voltam aos locais com as armas. Nós não estamos entendendo o que está acontecendo. Por que a polícia não prende essas pessoas, se nós demos todas as coordenadas aonde podem encontrar esse pessoal. Isso é uma estratégia ou os policiais não querem prender ninguém?” – questionou.
O pequeno produtor levou seu gado para os gerais pela última vez em 2018 para evitar bater de frente com os criminosos.
“O cerrado se transformou em um campo minado. A gente tem que prestar muita atenção aonde pisa” – alertou.
O fecheiro levantou outra questão importante: a concessão de outorga[9] para os grandes fazendeiros. Ele levanta dúvidas sobre porque o Estado autoriza a retirada de água em favor dos latifundiários, apesar de as comunidades serem reconhecidas como fecho de pasto pela Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi). Segundo ele, empresários pedem a supressão de vegetação dentro dos territórios dos povos tradicionais, o que não seria permitido.
Ainda sobre a ação discriminatória, o integrante de uma das associações de fecho de pasto contou que ela foi aberta e publicada em Diário Oficial em 2021. A promessa de concluí-la em um ano não foi cumprida. Além disso, os técnicos da CDA que estavam fazendo o serviço de campo receberam a ordem de voltar à Salvador. O motivo alegado foi a pandemia de Covid-19, mas circulou outra versão: a de que o trabalho foi suspenso por pressão do agronegócio. Mesmo depois que a vacinação conteve o avanço da doença, os técnicos não retornaram.
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[1] Os fechos de pasto consistem numa forma de ocupação tradicional de territórios, onde é feito o uso comunitário da terra, além da manutenção de tradições herdadas dos antepassados, a exemplo das manifestações culturais e religiosas. Nos fechos, trabalhadores e trabalhadoras rurais se organizam em terras livres e criam o gado solto. Esse modelo facilita o acesso dos animais à água e à comida, principalmente nos períodos de estiagem.
[2] *Nome fictício para preservar a segurança dos integrantes das comunidades de Fundo e Fecho de Pasto ameaçados por “milícias rurais”. Os pistoleiros costumam ser contratados por latifundiários para expulsar as comunidades tradicionais e tomarem as áreas do cerrado preservadas por mais de dois séculos.
[3] Primeiro trecho da nascente de um curso de água.
[4] Terreno brejoso, situado perto de cabeceira de rio e coberto com vegetação nativa e rasteira.
[5] *Nome fictício para preservar a segurança do pequeno criador de animais.
[6] Ampla região constituída de terras encoberta pela vegetação de cerrados e livres de apropriação privada, da qual os camponeses geraizeiros apropriaram-se de boa parte como posseiros.
[7] Unidade da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Rural (SDR)
[8] *Nome fictício
[9] Os recursos hídricos (águas superficiais e subterrâneas) constituem- se em bens públicos que toda pessoa física ou jurídica tem direito ao acesso e utilização, cabendo ao Poder Público a sua administração e controle. A outorga de direito de uso ou interferência de recursos hídricos é um ato administrativo, de autorização ou concessão, mediante o qual o Poder Público faculta ao outorgado fazer uso da água por determinado tempo, finalidade e condição expressa no respectivo ato. Constitui-se num instrumento da Política Estadual de Recursos Hídricos, essencial à compatibilização harmônica entre os anseios da sociedade e as responsabilidades e deveres que devem ser exercidas pelo Poder concedente.
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* Matéria feita por Meus Sertões em parceria com a CPT-BA