Mergulhos no Rio Balsas marcaram a alvorada do segundo dia do Encontro de Povos e Comunidades do Cerrado, preparando os/as participantes para a mística de abertura: “somos filhos do Cerrado, cantando de coração, para essa gente que tem sede de alegria e animação. A semente foi plantada nessa terra, nossa mãe, seis calangos vão colher muita paz e união […]”. Na sequência da manhã desta quinta-feira, 28, quinze experiências foram apresentadas em 5 “Fontes” com nomes de rios do Cerrado. Foram espaços nos quais as pessoas apresentaram vivências de luta e resistência. Confira:
Valorização da Juventude
A diversidade de culturas e experiências enriqueceu a “Fonte do Rio Paraguai”. Quilombolas, indígenas e camponeses partilharam histórias, formas de resistência, sonhos e desafios. Em comum, a defesa de seus territórios e, principalmente, a importância de valorizar a juventude para reforçar a luta das comunidades. Em aproximadamente 2 horas de atividade, cada um à sua maneira contou como se dá o trabalho de valorização dos jovens em seus grupos.
A resistência do Povo Terena, do Mato Grosso do Sul, no processo de retomada do território que dura mais de 15 anos, os ensinou a necessidade de repassar os conhecimentos dos mais antigos à juventude. “Queremos garantir o futuro de nossas crianças que estão aí. Os anciãos têm papel muito importante no nosso grupo, pois eles estão sempre próximos dos jovens para repassar sua sabedoria, sua experiência”, conta Gilmar Veron Alcântara, uma das lideranças do Povo Terena.
Nos quilombos do Território Quilombola Mariano de Campos, em Serrano, Maranhão, a conquista do grupo foi a retomada não somente do território, mas também da educação. Pressionados a aceitar o modelo urbano de ensino imposto pela prefeitura do município, as professoras quilombolas do Quilombo Nazaré (Imagem abaixo) lecionaram na comunidade por um ano sem receber salários. “Nós fizemos esse sacrifício pelo grupo. A gestão pública sentiu que resistimos e em 2015 passaram a pagar os professores. E aí surge o novo desafio, de resgate da identidade. Fizemos uma nova metodologia de ensino que parte da realidade do quilombo. Hoje nossos alunos estão mais companheiros”, explica a jovem professora Leidiane de Livramento Santos Reges.
Assim como entre os indígenas, os quilombolas também sentiram a necessidade de transmitir aos mais jovens os conhecimentos tradicionais do povo negro. “Um dos objetivos é trabalhar a espiritualidade para tirar o preconceito que existe sobre as religiões de matriz africana. Nas aulas falamos, por exemplo, que se acabar a árvore, não teremos mais tambores, e se acabarem os tambores, não teremos mais nossa espiritualidade”, recorda Leidiane. Oficinas também são realizadas para que meninos e meninas aprendam a fazer artesanatos, como cestos, colares, coifos, sempre utilizando materiais que a própria natureza fornece.
A pequena Isys, de apenas 12 anos e energia transbordando, tomou conta do microfone e contagiou a todos na fonte. “Eu participei esse ano pela primeira vez de um encontro de juventude camponesa e hoje estou aqui. Então eu estou me preparando para o que vem por aí”, enfatizou a jovem, que vive com a família em uma ocupação na região Norte do Tocantins.
Organização solidária
Experiências da Teia dos Povos e Comunidades do Maranhão, a Teia dos Povos da Cabruca e Mata Atlântica (do sul da Bahia) e a Articulação Camponesa do Tocantins marcaram a “Fonte Rio Araguaia”. Elas ressaltaram a importância de estar em articulação para clarear assuntos comuns e fortalecer o enfrentamento para conquista de territórios, em que o Estado aparece como inimigo. A luta de um povo é a luta de todos os outros povos. “E alumiou toda a terra e o mar, eu vi o quilombola falar, eu quero ver o povo do Gejo falar”, cantaram. É como se tivesse chegado a hora de gritar.
Dária, do povo Gamela, relatou a situação em que as vidas estão constantemente ameaçadas pelos fazendeiros. As lutas se dão no chão do território, por meio da autodemarcação e retomadas, mas também em ações articuladas, como o fechamento de estradas e ocupações de órgãos públicos. “O movimento quilombola no Maranhão está propondo a derrubada das cercas para contribuir com a política do bem viver”, afirmou Carla, da Teia do Maranhão.
Com o apoio do Estado, o agronegócio também foi apontado como responsável pelo secamento e contaminação das nascentes e águas. Os participantes buscaram marcar a diferença entre o latifúndio como negócio e o espaço de vida da agricultura camponesa, produtora de alimentos. Para Miguel Alves, assentado no oeste da Bahia, “temos que ser referência em produção para não dar argumento ao inimigo”.
Para Nancy Cardoso, que assessorou a Fonte, “os movimentos de teia e articulação são a possibilidade de se parir um projeto de povo e de país”. Para que isso aconteça, a aliança com a classe trabalhadora das cidades e a ruptura com o sexismo, com o racismo e com a ideia de que a natureza está a serviço do homem são fundamentais.
Luta pela terra e soberania
Animadas e animados por um momento de oração conduzido pelo Povo Guarani Kaiowá, a “Fonte do Rio São Francisco” reuniu diversas experiências de resistência e luta na defesa da terra e do território.
Dentre as experiências apresentadas, tem a do Acampamento Avilmar Ribeiro, no município de Grão Mongol, Minas Gerais, onde as famílias foram impactadas pelos grandes projetos do capital (hidrelétrica, mineradoras, e o agronegócio) e encontraram no acampamento uma forma de resistência, produzindo alimentos e utilizando frutos e raízes do Cerrado. Também de Minas, veio o relato sobre a Escola Estadual João José Ferreira, em Salinas, onde é trabalhado o tema da cidadania a partir da reciclagem e do consumo consciente.
Já na região Cabeceira do Alto Rio Preto (Comunidades Gatos, Cachoeira, Marinheiro, Cacimbinha e Aldeia), no município de Formosa do Rio Preto, na Bahia, as famílias enfrentam o agronegócio do Condômino “Estrondo”, que foi instalado em seu território tradicional, encurralando as famílias, que têm na criação solta do gado, e na produção de mandioca, feijão e artesanato suas principais fontes de renda.
Por fim, foi apresentada a experiência do povo Guarani Kaiowá, de Mato Grosso do Sul, que enfrentam problemas como a ameaça sobre sua soberania territorial e alimentar, já que o latifúndio ocupou suas terras e devastou complemente as plantas nativas. Além disso, a condição de saúde e acesso a educação das comunidades são problemáticas recorrentes, isso pelo completo descaso e sucateamento dos órgãos públicos.
Assessor da Fonte, Plácido Júnior, agente da CPT Nordeste II, ressaltou que na lógica das comunidades, o Cerrado é “Terra Gerais”, ou seja, de todos. Que essa terra/território está constantemente ameaçada, violentada, e em disputa. Mas, que as comunidades não estão braços cruzados. Ele reforçou ainda que as experiências apresentadas estão na dimensão da luta pela terra e pelo território, mas, não é qualquer terra, e sim uma terra onde está todo legado de um povo.
Coletivo de Comunicação do Cerrado