“É possível caminhar pelo fundo dos rios que morreram, eles ficam secos o ano todinho. Só se vê água neles quando escorre por cima em dias de chuva. Acabou as chuvas, tornam a secar novamente”.
O resultado de um trabalho de mapeamento realizado a muitas mãos, ao longo de 2023 e 2024, nas sub-bacias hidrográficas dos rios Corrente e Carinhanha, identificou 3.050 trechos de águas já secos, entre córregos, riachos, nascentes e cabeceiras de rios, num total de 7.120 km de extensão de águas mortas. Foram mapeados trechos do alto e médio Corrente contemplando os rios Guará, do Meio, Santo Antônio, Correntina, Arrojado e Formoso; e as sub-bacias do rio Carinhanha, na margem esquerda, na Bahia, contemplando os rios Riacho do Meio e Itaguari. Estes pequenos cursos d’água ligados um ao outro alcançariam uma distância equivalente à distância entre Brasil e México.
Além das águas mortas, o mapa apresenta outros 580 trechos de águas classificadas como em estado crítico, o que corresponde a 3.837 km de extensão, com destaque às grandes calhas dos rios das bacias apresentadas no mapa. Consta também uma legenda com identificação de trechos de áreas desmatadas, pivôs centrais, piscinões e outras informações complementares. As comunidades testemunham que todas as águas identificadas passaram a secar a partir da década de 1980, cerca de 15 anos após a instalação dos primeiros projetos de “desenvolvimento” na região, com o desmatamento de grandes áreas para plantio de pinus e eucalipto nos Cerrados do Oeste.
As bacias dos rios Corrente e Carinhanha estão localizadas na região Oeste da Bahia, nas fronteiras do estado, e no extremo norte de Minas Gerais. Estas bacias resguardam um vasto patrimônio hídrico e a riqueza socioambiental da região, incluindo diferentes ecossistemas e paisagens de Cerrado, manchas de florestas e fragmentos de Caatinga, campos úmidos, veredas, riachos, compondo importantes áreas de recarga que alimentam grandes aquíferos subterrâneos, como o Urucuia e o Bambuí, responsáveis pela segurança hídrica desta e de outras regiões do Brasil. Sua morfologia é marcada por duas principais formações de relevo – as áreas de chapadões e os vales – por onde inúmeras comunidades camponesas e tradicionais desenvolvem historicamente seu modo de vida, sempre integrado às águas e à vegetação nativa.
A base de sua economia é pautada na agricultura familiar, com a produção de alimentos nas veredas, no fundo dos vales, ou no sequeiro; no extrativismo, através da coleta da grande variedade de frutos e plantas medicinais nativas; e na criação tradicional e coletiva de animais nos chamados Gerais, onde é comum o manejo de animais à solta, como caprinos e bovinos, em meio ao Cerrado preservado. Todas essas atividades dependem e prezam o uso sustentável dos Cerrados e de suas águas, e têm garantido historicamente a soberania e segurança alimentares das comunidades que ali vivem e trabalham.
Esses modos de vida tradicionais têm encontrado no agronegócio, na grilagem de terras e na instalação de barragens e empreendimentos semelhantes, um palco de conflitos e violências, marcado pelo avanço do desmatamento e pela apropriação abusiva e contaminação das águas. Investimentos em infraestrutura, logística e estímulo das políticas governamentais e agentes do grande capital agrário têm focado na produção e exportação, em grandes monocultivos, de soja, milho, batata, algodão e produção em larga escala de leite e carne bovina. Esta dinâmica tem resultado no esgotamento das águas das bacias, destruição de vegetação nativa, assoreamento de corpos d’água, alteração dos ciclos das chuvas, erosão e contaminação de águas e solos por agrotóxicos.
POR QUE AS ÁGUAS ESTÃO MORRENDO?
O Oeste da Bahia é considerado pelo Estado brasileiro como um polo nacional de agricultura irrigada, sendo uma das últimas fronteiras agrícolas do Brasil. Segundo a Agência Nacional de Águas (ANA), o agronegócio consome 78.3% da água no país. Nas últimas três décadas, os latifúndios vêm se expandindo de forma avassaladora sobre o Cerrado do Oeste baiano, utilizando método de captação de água em larga escala, tais como piscinões e pivôs centrais, negligenciando as dinâmicas de recarga dos aquíferos e o cotidiano de vida dos povos e comunidades que ali vivem.
Grande parte dessa água é controlada por agentes do agronegócio da região representados em entidades como a Associação de Agricultores e Irrigantes da Bahia (AIBA) e a Associação Baiana dos Produtores de Algodão (ABAPA). Seus associados conseguem com facilidade outorgas de água concedidas pelo Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídricos – INEMA, do governo estadual. Segundo dados do INEMA levantados pela Agência Pública, 1,8 bilhão de litros de água por dia é o que o estado da Bahia concedeu em outorgas a mais de duas dezenas de diretores e conselheiros da AIBA e da ABAPA e a familiares e empresas ligadas a eles no ano de 2021.
Um único CPF detém a maior autorização para captação de água, com 466,8 milhões de litros por dia. Considerando que a média de consumo de um brasileiro, segundo o Sistema Nacional de Informações sobre o Saneamento – SNIS, é de 148 litros por dia, somente esta outorga abasteceria a população de 97 Correntinas, 226 Coribes e 340 Jaborandis, municípios situados dentro da área mapeada.
Diante desse cenário, moradores e entidades populares passaram a denunciar a situação dos rios, riachos e veredas perdidas. “Como pode o rio que banhou sua vida e de seus antepassados secar diante de seus próprios olhos?”. Desse clamor e alerta veio a necessidade de mapear a situação das águas para servir como instrumento de denúncia e de mobilização de uma rede de vigilância popular das águas nas referidas bacias.
O PROCESSO DE MAPEAMENTO
A Pastoral do Meio Ambiente – PMA, a Comissão Pastoral da Terra – CPT e os pesquisadores Thiago Damas, da Universidade Federal Fluminense – UFF, e Eduardo Barcelos, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Baiano, campus Valença – IFBaiano / Valença, em parceria com diversas organizações da região e as comunidades, articularam oficinas de mapeamento nos municípios da área mapeada e visitas in loco nas comunidades, garantido uma ampla representatividade dos diferentes grupos sociais, com a participação de pessoas de diversas faixas etárias, gêneros, etnias e modos de vida.
Foi utilizado como base um mapa hidrográfico virgem da área, elaborado em programa de geoprocessamento a partir de arquivos shapefile, com informações da ANA e do Cadastro Ambiental Rural – CAR. Ao realizar a sobreposição desses shapes, chegou-se a um grande nível de detalhamento das águas que foi prontamente identificado pelos participantes que realizaram o reconhecimento das águas no mapa virgem (com auxílio de imagens de satélite quando necessário), visitas a áreas e intervenções desenhadas, utilizando cores e construindo legendas para o diagnóstico das águas.Os dados coletados durante as atividades de mapeamento foram sistematizados com o apoio dos pesquisadores em programas de geoprocessamento, prezando as informações coletadas e indicadas pelas comunidades nas oficinas e visitas. Além dos desenhos indicados nos mapas, os relatos foram muito importantes para a formulação de verbetes e informações adicionais no layout do mapa.
Acesse o link e veja o mapa em alta resolução:
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NOTAS METODOLÓGICAS
O mapeamento das águas foi realizado nas bacias do rio Corrente e do rio Carinhanha, contemplando os rios Arrojado, Correntina, Formoso, Guára, do Meio, Santo Antônio e o rio Itaguari e Riacho do Meio, ficando incompletos a parte do baixo rio Corrente e a metade mineira da bacia do Carinhanha. Ele se estruturou em dois princípios estruturantes e seis procedimentos metodológicos:
Participação Comunitária: O processo de elaboração do mapa foi coletivo e participativo, envolvendo diretamente as pessoas que vivenciam os territórios mapeados. Foram realizadas diversas oficinas reunindo as comunidades, sindicatos e organizações, além de visitas a moradores indicados e a trechos de rios que secaram.
Valorização do Conhecimento nos Territórios: O saber das comunidades, incluindo tradições, histórias e percepções da realidade em que vivem, foi de suma importância. A partir do diagnóstico popular sobre as águas, pôde-se gerar informações que, juntamente com a assessoria dos pesquisadores e os dados técnicos e científicos, evidenciaram uma situação crítica das águas.
Procedimentos metodológicos
1. Definição dos Objetivos
O primeiro passo da metodologia foi definir os objetivos do mapeamento, que incluíram:
(a) delimitar a área de estudo, a partir da demanda de comunidades engajadas na defesa das águas e pesquisas prévias dos pesquisadores envolvidos;
(b) fomentar a participação comunitária, a partir de uma agenda de oficinas e espaços de formação promovidos pela PMA e pela CPT junto às comunidades e organizações parceiras;
(c) mapear rios que secaram totalmente (águas mortas) e aqueles que estão em estado de risco (águas em estado crítico) a partir da percepção e vivência das comunidades camponesas e tradicionais que desenvolvem historicamente um modo de vida articulado com as águas.
2. Mobilização das comunidades e articulações com sindicatos e organizações
A PMA e CPT buscaram articular oficinas de mapeamento das águas que aconteceram com a presença de comunidades, sindicatos, organizações parceiras e dos pesquisadores envolvidos. Buscou-se garantir ampla representatividade dos diferentes grupos sociais e a participação de pessoas de diversas faixas etárias, gêneros, etnias e modos de vida. Foram realizadas oficinas nos municípios que estavam tendo suas águas mapeadas, e houve participação de pessoas de diversos municípios do Oeste Baiano.
3. Oficinas de formação, coleta de dados e mapeamento
As oficinas foram divididas em etapas:
(a) breve análise de conjuntura das águas no Oeste Baiano;
(b) apresentação do projeto, da metodologia e dos objetivos;
(c) mapeamento, onde os participantes realizaram o reconhecimento das águas no mapa virgem (com auxílio de imagens de satélite quando necessário), visitas a áreas e intervenções desenhadas, utilizando cores e construindo legendas para o diagnóstico das águas. Aqui utilizamos um mapa hidrográfico virgem da área, elaborado em programa de geoprocessamento a partir de arquivos shapefile com informações da ANA e do CAR. Ao realizar a sobreposição desses shapes, chegamos a um grande nível de detalhamento das águas que foi prontamente reconhecido pelas comunidades. Os mapas foram impressos em formato A0;
(d) durante as oficinas, os participantes indicavam moradores conhecedores das águas para contribuir com o mapeamento e trechos de águas importantes para visitação.
4. Sistematização e Análise dos Dados
Os dados coletados durante as atividades de mapeamento foram sistematizados com o apoio dos pesquisadores em programas de geoprocessamento, respeitando as informações indicadas pelas comunidades nas oficinas e visitas. Além dos desenhos indicados nos mapas, os relatos foram muito importantes para a formulação de verbetes e informações adicionais no layout do mapa.
5. Validação e Divulgação dos Resultados Prévios
O final desta etapa do trabalho consistiu na validação dos mapas e das informações coletadas pelos próprios participantes. Essa validação envolveu um grande seminário de formação e partilha denominado “Geografia da Sede no Oeste da Bahia”, que ocorreu nos dias 27 e 28 de julho de 2024, na EFAPA – Escola Família Agrícola Padre André, em Correntina. Durante o seminário foi realizado um espaço de formação e debate sobre a situação das águas no Cerrado brasileiro. Em seguida, foi realizada a análise coletiva dos mapas, quando as comunidades discutiram e interpretaram os resultados, relacionando-os com as dinâmicas sociais e territoriais do seu cotidiano.
Nesse espaço houve a confirmação dos dados registrados e foram debatidas possíveis correções ou acréscimos ao mapa. Os mapas da primeira versão foram divulgados e distribuídos para as comunidades. Em seguida foram realizados os ajustes de acordo com as demandas apresentadas.
6. Validação e ajuste final depois da partilha
O resultado final dessa fase é um mapa que passa a refletir mais adequadamente a situação das águas, pois parte de um diagnóstico elaborado pelas próprias comunidades.
O mapa é um instrumento que visa fortalecer as lutas em defesa das águas e do Cerrado, a memória e identidade coletivas, embasando decisões futuras relacionadas à gestão dos territórios e às reivindicações políticas e sociais das comunidades diante das arenas jurídicas e políticas que envolvem os conflitos por água no Oeste da Bahia.