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CPT BAHIA

Aurora de esperanças no martírio dos quatro companheiros mártires de La Rioja de Argentina

Três dias intensos, na semana da Pascoa de 26 a 28 de abril 2019, me proporcionaram uma releitura da história, visitando uma página dela, na vizinha Argentina. Vizinha, não certo pela distância que é fisicamente notável, 4 mil km em linha aérea entre Salvador (BA) e a Província de La Rioja (Noroeste da Argentina). Para quem gosta de geografia, acrescento que é um estado argentino, quase encostado nos Andes.

A vizinhança da qual faço referência, se deve ao fato que minha história juvenil, como missionário franciscano que sou, associou alguns lugares missionários do Brasil e Argentina como possíveis campos de presença, direcionado, como me senti, desde jovem, para América Latina onde a minha fraternidade franciscana conventual, surgida ao redor da basílica de Santo Antônio, em Pádua (Itália), já tem uma presença missionaria de 70 anos. Uma ligação, que aumentou com o passar dos 44 anos de minha presença no Brasil.

A gente se reconhece, cada dia que passa, mais latino-americano que europeu. Imagino que provavelmente foi este fio, da saída minha e de vários companheiros franciscanos conventuais da Itália para Argentina e Brasil, que motivou o convite que recebi para representar nossas fraternidades brasileiras, nos “dias de La Rioja” que descrevo aqui. 

Contextualização histórica

A oportunidade de uma releitura, provocada por esta viagem a La Rioja, não pode não ser ligada às tragédias sócio-políticas dos povos que, tanto na Argentina como no Brasil, foram subjugados por ditaduras militares violentas. No meio de mudanças e incertezas angustiantes, estas tragédias tomaram conta dos dois gigantes da América Latina, vivenciando pesados autoritarismos, fora do estado de direito. Cheguei no Brasil, em janeiro de 1975, com consciência dessas situações. Meu processo de preparação, para me inserir no Brasil, tinha aberto meus olhos, alertando-me para não aceitar ser um agente religioso ingênuo, funcional dos sistemas ditatoriais de turno que assumiam uma constante: se desmanchavam em “amores e favores” para com aqueles que lhes forneciam ideologias religiosas para mascarar seus interesses, quase sempre revestidos de alinhamentos ao “status quo” e ligados, aos aproveitamentos económicos a hipocrisias moralistas. Isso se deu por longos e escuros período ditatoriais que Argentina e Brasil viveram, juntamente com outros países da América Latina do cone sul: Paraguay (1954-1989); Brasil (1964-1985), Argentina (1966 e 1976 -1982), Chile (1973-1989) e Uruguai (1973-1985).

O vendaval do Concilio Vaticano II 

Fazer memória destes tempos significa também nos darmos conta de que este foi um dos momentos em que a igreja latino-americana e toda as camadas populacionais, onde ela estava inserida, com a busca da autenticidade humanizadora do evangelho, conseguiu um notável salto qualitativo, que se desdobrou com a convocação e realização do Concilio Ecumênico Vaticano II.

Hoje em dia, este salto qualitativo completou o meio século e seu percurso está sendo colocado em risco; poderá, porém, receber alento, renovando paradigmas, graças também ao testemunho, fiel e radical, de pessoas que, nestas décadas, se inseriram nas angustias e nas tribulações dos pobres explicitando as potencialidades de uma firmeza alegre, permanente e “martirial”. Esta vem da espiritualidade pascal que jamais separa morte de ressurreição e é a única que consegue, uma vez assumida, superar, a cruz obscura da morte provocada pelos ódios de todo tipo incluindo os de classe, etnia, gênero…etc.  É um caminho que não barateia o evangelho de Jesus, feito encarnação e história.  Resgatada e atualizada, meio século atrás, esta espiritualidade está dando, em nossos dias, passos que se tornam, ainda hoje, qualitativamente novos.  A novidade vem, inclusive, na consciência de que, neste mesmo último meio século, se deram mudanças epocais acentuadas, desde todos os pontos de vista. Portanto, ao avaliar esses períodos e os que hão de vir, se exige mais reflexão e discernimento.

A linha de memória, provocada pelos mártires de La Rioja, pode até parecer uma conversa e saudosa entre membros de um circuito religioso fechado, coisas de tempos passados e sem aquela significatividade que os tempos atuais demandam. Os martírios de La Rioja e de outras situações latino americanas e mundiais não nos permitem aceitar essa opinião. 

O espaço restrito destas anotações, nos obriga a limitar horizontes e buscas de aprofundamentos, acenando somente às mudanças que ocorreram em muitas igrejas e agremiações sócio religiosas e que, na igreja católica, a partir da década de 1960, desabrocharam numerosas, no Concilio Ecumênico Vaticano II (1 de outubro de 1962 – 8 de dezembro de 1965). Este concilio não foi somente “uma janela aberta para que entrasse uma lufada de ar fresco em ambientes mofados”, como se pronunciou o extraordinário papa octogenário, chamado João XXIII que convocou o concilio; como ele tinha bem consciência e expressou, no seu histórico discurso inaugural, foi um fato religioso sim, mas implicando uma extraordinária reviravolta sociocultural; falando teologicamente, um vendaval do Espirito Santo ou uma nova Pentecostes.

Apareceu claro em La Rioja, e foi até declarado publicamente em todas as celebrações:  as sementes que fizeram amadurecer os dias e os mártires que a igreja de La Rioja e de outras agremiações religiosas ofereceram à América latina e ao mundo foram plantadas no contexto conciliar. Em La Rioja o mártires foram da Boa Nova do Evangelho ao redor da terra com suas cultivações familiares, sua vida comunitária, rica das tradições dos ancestrais indígenas, em seus territórios argentinos, encostados aos Andes…. Terras, águas cultivações, vida comunitária, culturas…receberam um impulso explosivo de vitalidade libertadora, cravadas na vida dos povos desta terra e tendo a Bíblia e as heranças dos ancestrais como referências.

 Síntese disso foi a metodologia pastoral, que, muito mais do que uma técnica de evangelização, continua sendo, hoje também, uma espiritualidade libertadora que forjou pastores como dom Enrique Angelelli, bispo e mártir, citado ainda hoje, como um pastor bom, não só individual, mas como sinal de um conjunto eclesial assumindo “dois ouvidos, um na direção do povo, outro na direção da Palavra de Deus”.  

O sinal da Cruz, carregado e exposto em todas as celebrações riojanas das quais participamos, e no mundo inteiro, nunca poderá ser reduzido a uma formula exterior. Corporifica a visão do Deus de sempre, que ouve o gemido do seu povo e desce para estar com ele e libertá-lo, e mostra a força de Deus de Jesus Cristo, a partir da fraqueza da cruz (2 Coríntios 12,10).

As cruzes de madeira, expostas em La Rioja, como memória e relíquia, foram metralhadas em 1976, logo depois dos assassinatos perpetrados pela ditadura militar; as balas disparadas, que furaram o corpo de dom Enrique Angelelli, Carlos, Gabriel e Wenceslau, foram raivosamente disparadas até no retrato exposto publicamente na memória deles. Essas balas falam profundamente de todos os bons pastores e pastoras que caminham na frente do rebanho enfrentando o que vier, por parte dos mercenários e lobos que matam e destroem vidas.

Matar e destruir a vida foi o que fez a ditadura militar, coagulando ao seu redor outros poderes mortíferos, também na região de La Rioja.  Tentou-se matar e destruir até a memória dos pobres e do evangelho de Jesus que estava vivo no meio deles, como fonte inextinguível de identidade e dignidade. Quem cedeu à esta tentação que mata e destrói, foram as altas patentes militares e seus aliados mais opulentos, inclusive, eclesiásticos. Isso se deu nos anos de 1970 mas continua se dando, hoje, dentro do vórtice do capitalismo nacional e internacional, sempre ávido de lucros e de sangue.  

Na Argentina e em toda a América Latina, isso coincidiu justamente quando, na história, muitas populações despertaram e iniciaram a abraçar a boa nova de Jesus revigorada pela leitura do Evangelho redescoberto pelo Vaticano II e reforçada originalmente das tradições ancestrais, indígenas e populares que jamais morreram mas insistem em apontar aos pobres caminhos de libertação integral. Como testemunhamos hoje novamente na Argentina e no Brasil que conhecemos.

Kairós para franciscanos e franciscanas: ver, ouvir e sentir o que?

A ida a La Rioja marcou, para a minha vida pessoal, um kairós pessoal, na entrada da minha velhice. Com 73 anos, 44 dos quais vividos no Brasil, fui agraciado por este convite de reviver minha história missionária, tendo como companheiro de viagem, um irmão mais novo, frei Aloisio De Oliveira, ministro provincial de nossas fraternidades franciscanas espalhadas em São Paulo, Paraná e Bahia. Ressoaram em La Rioja, aprovadas com muita efusão e entusiasmo por 50 mil pessoas as palavras de frei Marco Tasca, ministro geral, quando ao terminar a beatificação, com humildade e realismo, apelou para as palavra de São Francisco de Assis:

É grande vergonha para nós, servos de Deus, que os santos tenham completado grandes obras como dar sua vida e nós queiramos receber honra e gloria com os simples fato de narrá-la (Francisco de Assis, Admoestações, 6)  

Faíscas de situações, encontros e sentimentos

Revendo meus rascunhos pró-memória destes dias, leio no meu primeiro dia: “…chego cansado de Salvador e sinto o cansaço físico aumentar devido as poucas possibilidades de dormir e de me alimentar adequadamente”. Apesar disso, repito o que disse para muitos: senti uma alegria que nunca me deixou, a de ter acompanhado tudo, com o bom humor típico de uma longa e fadigosa romaria da Terra e das águas, como as de Bom Jesus da Lapa na Bahia. Momentos que dão o sentido e a direção de nossa marcha missionária como Comissão Pastoral da Terra (CPT), Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), Caritas, Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), etc., inserindo-nos, estudando, dialogando, debatendo, silenciando, contemplando e agindo “juntos”.   

Não nego que a emoção teve a sua parte. Momento entusiasmante e gratificante foi, no primeiro dia, quando me senti parte do grande encontro de comunidades, vindas de toda a Argentina com representações de vários continentes, com 40 mil pessoas, incluindo cerca de 500 padres, bispos e cardeais, gritando: “que vivam nossos mártires!”. Gratificante também me reencontrar com antigos companheiros que não via há muito tempo, como Miguel Angel Lopez, colega de noviciado do bem-aventurado; Carlos de Dios Múrias, companheiro da minha turma no estudo da teologia e nosso ex-assistente geral da América Latina; Carlos Trovarelli, nosso atual assistente geral sempre atento em nos ajudar a entender e a facilitar a causa dos mártires;  Adriano Zorzi, companheiro italiano e da mesma turma de estudo, desde a adolescência; Valério Folli, vindo de Pádua como animador das missões;  Miecislau, um dos pioneiros das fraternidades de Brasilia.. Sem falar da alegria contagiante do nosso ministro geral frei Marcos Tasca que nos representou, atrás dos altares, com duas intervenções, curtas mas memoráveis, e festejou, com um largo sorriso nos lábios, ao declarar, na última noite de despedida,  na praça da igreja de Chamical: “Aqui se encerram meus 12 anos de atividades públicas, como ministro geral da ordem!”.

Momentos de arrepiar

Foram muitos, no meio da multidão. Um deles foi quando ouvimos, em alto e bom som, como se estivéssemos na praça de São Pedro em Roma, a comunicação oficial, chamada “Carta Apostólica”, assinada por papa Francisco, para este momento e entregue, nas mãos, do cardeal, prefeito da Congregação para as Causas dos Santos. Esta carta, resultado de longo processo de pesquisa, testemunhos e coleta de dados científicos, relevados e confrontados, concluiu assim, utilizando as palavras mais simples que utilizei nas minhas anotações:

Quatro cristãos, um bispo, um presbítero, um religioso e um leigo, merecem entrar na lista dos “bem-aventurados”, da igreja católica e são apontados como exemplos a serem seguidos no caminho do evangelho de Cristo, após terem sustentado, como mártires, a perseguição, a tortura e a morte”.

Após um impressionante silencio de escuta, a multidão, em pé, soltou-se finalmente o grito de alegria “Vivam, nossos mártires!”, misturado com aplausos que demoraram bastante para silenciar.

Coroação de um longo mutirão de fé e de pesquisa

Após os crimes de prisão, tortura e assassinato, logo houve o imediato interesse e as pesquisas de muitas pessoas e instituições civis e religiosas, para dar razão e motivação a esta decisão clara que papa Francisco assinou, após mais de 40 anos de silêncio.

Chamou minha atenção também um momento coral, coletivo da multidão em Punta de los Llanos. Este nome refere-se, à região de La Rioja, uma “planícies” (llanos) na estrada reta que liga La Rioja a Chamical; foi nesta  localidade  que aconteceu o ataque traiçoeiro ao bispo Angelelli, poucos dias depois dele  ter  celebrado o enterro de Carlos e Gabriel. O ataque, forjado como um acidente de carro, foi logo desmascarado. Poderes assombrosos porém, apoiados até por eclesiásticos, para que jamais se chegasse a essa consciência, foram finalmente silenciados; o atual bispo de La Rioja, dom Dante Gustavo Braida, fez questão de testemunhar, na hora solene da beatificação, que o reconhecimento da santidade dos quatro foi feita pelo povo cristão, desde o momento de sua morte cruenta, como autentico martírio. A contribuição para romper o duro silêncio de mais de quarenta anos e o reconhecimento oficial da máxima instância da igreja, representada por papa Francisco, foram também fundamentais. Um turbilhão de sentimentos se levantou no final da celebração na Eucaristia, neste mesmo local.

Ramona Romero, uma militante que contribuiu para que se chegasse a proclamar a verdade, disse com sua voz emocionada:

Desde os primeiros momentos em que se iniciou com firmeza o processo de pesquisa para a beatificação, surgiu uma aurora que iluminou uma longa noite escura”.

A multidão, se sentiu tão bem interpretada por esta expressão em voz firme, ainda que emocionada de Ramona, que selou com aplausos e gritos de alegria pascal tão intensos que pareciam não terminar mais; mais uma prova de que a “voz do povo é a voz de Deus” que “canoniza” a santidade das pessoas humanas que chegam a dar suas vidas por amor às grandes causas da vida.

Mártires das opções e luzes do Concilio Vaticano II

Era a consciência adquirida, finalmente, de que, estes são os mártires das opções do Concilio Vaticano II e das intuições proféticas nascidas, esquecidas, sepultadas e renascidas nas teologias da terra, da libertação, da justiça e paz e nas pastorais específicas da nossa América Latina, após o Concilio e Medellin 1968. Dom Braida, bispo de La Rioja, foi particularmente concreto e iluminado quando chegou a lembrar que, despois do seus assassinatos, a mensagem que estes mártires transmite aos argentinos e ao mundo, “é o legado de uma experiência de espiritualidade, fidelidade e comunhão profundas com a igreja, apesar deles não terem sido sempre acompanhados, e o fato de viver a fé de um modo encarnado, atendendo as realidades concretas que o povo estava padecendo, tanto na vida do trabalho  como no das suas famílias e comunidade”.

Conclusão

Ninguém de nós, apesar de profundos sentimentos que se abrigaram em nós nestes dias, se ilude que esta canonização possa representar uma virada acelerada na República Argentina e em nossos países latino americanos, no atual momento de desalento que todos estamos sentindo. No grito pascal do povo, porém, e na memória que não se apaga, resgata-se a identidade e a força do amor que se doa com consistência. Tempo de sementes para plantar mais esperanças e colher mais mudanças benéficas amadurecendo no meio de todas as contradições.  


Luciano Bernardi – Integrante da Ordem dos Franciscanos Menores Conventuais da província São Francisco de Santo André (SP) , da Comissão Pastoral da terra da Bahia  (CPT BA) e do Serviço Inter franciscano de Justiça, Paz e Integridade da Criação da Família Franciscana (SINFRAJUPE).

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