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CF 2014: Frei Luciano Bernardi fala sobre trabalho escravo

Confira entrevista do Jornal São Salvador, publicação da Arquidiocese de Salvador, sobre Trabalho Escravo, no contexto da campanha da Fraternidade 2014, que tem como tema “Fraternidade e Tráfico Humano” e lema “É para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5, 1).

 

Ao longo deste ano, a Igreja no Brasil reflete um assunto de suma importância para a sociedade: o tráfico de seres humanos. Tema da Campanha da Fraternidade, o delito é conhecido como o terceiro que mais gera recursos no mundo, movimentando, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), cerca de 32 bilhões de dólares por ano. Ao contrário do que muita gente pensa, este crime não acontece apenas quando pessoas são levadas de um país para o outro, com promessas fictícias de bons empregos. Nele está inserido o trabalho escravo. E é sobre esse assunto que o portal arquidiocesano ouviu o frei Luciano Bernardi, ofmconv, da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Confira a entrevista na íntegra!

 

Portal – A Comissão Pastoral da Terra tem um longo percurso na atuação contra o trabalho escravo. O senhor percebe alguma mudança nessa forma de crime nos últimos anos para cá?

 

Frei Luciano Bernardi, ofmconv – A paixão pela vida digna de todo ser humano é uma espécie de DNA da Comissão Pastoral da Terra (CPT), uma herança da qual nenhum cristão pode abdicar. No Brasil moderno do último século, em tempos de milagre econômico e de silêncio imposto pela repressão da ditadura militar que favorecia grandes projetos na Amazônia, as primeira denuncias das formas contemporâneas de escravidão foram feitas em 1971 por dom Pedro Casaldáliga, bispo na região de São Félix do Araguaia, Norte do Mato Grosso.

 

De lá para cá, o problema tornou-se mais complexo e aumentou tornando-se um crime mundializado.  Ninguém tem dúvida hoje de que a escravidão dos tempos modernosé fruto de um modelo de crescimento economicista que faz vistas grossas diante de um modelo de economia que privilegia alguns poucos às custas das maiorias.Nosso país, infelizmente, ainda é um dos protagonistas deste reinado macabro, herança da colônia, que se chama escravagismo.

 

Alguns títulos que enchem jornais e teses de mestrado das últimas décadas expressam aspectos trágicos de uma sociedade que o incorporou, como fosse uma necessidade normal do progresso: tráfico de gente, mercado de pessoas, casos de trabalho escravo urbano (setor da construção civil e de confecções…) iniciando a superar o número dos casos de escravidão no campo; trabalho escravo e destruição do meio ambiente; destoque de florestas e cerrados, monoculturas de eucaliptos, pinus, soja, algodão, nas carvoarias são os locais e as economias em que o trabalho escravo encontra seus sinistros protagonistas e suas vítimas.

 

Portal – Podemos afirmar que houve aumento nas políticas públicas para o enfrentamento do tráfico de pessoas e do trabalho escravo?

 

Frei Luciano – Precisamos admitir que aumentaram significativamente, em comparação com os anos 60-70, organismos e comissões do Estado, do Judiciário e da OIT – Organização Internacional do Trabalho  – que tratam deste crime e de sua erradicação.  Hoje é inegável que há pessoas e instituições, até dentro do Estado, que tem consciência e que sabem descrever de uma forma profunda as raízes e os motivos deste crime. Agora, para políticas públicas eficazes e corajosas, à altura dos desafios e da repressão que merece esta prática criminosa, resta ainda um longo caminho a percorrer. Caminho, inclusive, ameaçado por propostas legislativas em que a bancada ruralista quer descaracterizar relações de trabalho análogas às de escravos. A grande contradição está num poder econômico cada vez mais mundializado, incentivado e tolerado que não está disposto a não aproveitar-se desta forma barata de relação trabalhista que é a escravagista. O trabalho escravo e, conexo, o tráfico de pessoas são funcionais a um sistema que, contando com a impunidade, exige lucros acelerados para vencer concorrências e se firmar nos mercados.  Instituições e grupos da sociedade civil que educam e alertam, na educação formal e informal sobre a luta contra o trabalho escravo, tem enormes desafios e dificuldades para superar a sensação de que, apesar de sua boa vontade, quase heróica, estão querendo “enxugar o gelo”.

 

Portal – De que maneira as pessoas podem contribuir para o enfrentamento desse mal que atinge milhões de pessoas em todo o mundo?

Frei Luciano – Para quem tem fé no evangelho de Jesus, retorna o apelo pessoal à conversão e à mudança. Conversão e mudança, neste assunto do tráfico de pessoas e do trabalho escravo, envolve, porém, sempre,  uma problemática  coletiva e estrutural. Aparece claro, portanto que, se exige de nós não somente “agir como Jesus agiu”, mas, simultaneamente, “reagir como Jesus reagiu”. Reagir como Jesus reagiria diante de um modelo em que somos permanentemente tentados e seduzidos para servir a dois senhores. Junto com a confiança no Deus da Bíblia, Javé, nenhuma organização, eclesial pode dispensar, hoje, a rebeldia, e a indignação que apontem alternativas à maneira com que são tratados nossos semelhantes, vítimas do tráfico e do trabalho escravo. Para nós cristãos, chegou a hora de renovar nossa rebeldia e indignação proféticas, fruto de oração (ouvir a Palavra de Deus), reflexão (busca sincera)e coragem (partir para iniciativas concretas). Deus concede isso a quem lhe pede. A CPT, como uma pequena e limitada parcela, tenta explicitar e solidificar a rebeldia e a indignação profética, na história, com partilha, colegialidade do discernimento e articulação. Sem compromisso com o sucesso quantitativo, mas sim com os frutos de novas relações.

 

Portal – Para o senhor, que legado a CF 2014 deixará para a Igreja e para a sociedade?

 

Frei Luciano – Para a Igreja, dentro da tradição criativa e original, do ponto de vista do evangelho, que é a Campanha da Fraternidade, se trata de dar mais um passo na evangelização dos pobres, na história. Se Evangelho quer dizer “boa notícia”, todos percebemos que, para ser boa, uma noticia deve chegar a quem precisa recebê-la, pois vive numa situação que não é boa. As comunidades, além dos ritos e das organizações formais eclesiásticas, poderão contextualizar sua missão,  suas liturgias e seus sacramentos nas realidades  que vivem os homens  e as mulheres de hoje. Poderá brotar assim a oportunidade de desvendar as feridas da humanidade, no nosso caso, as vítimas do tráfico e do trabalho escravo, aprofundar os porquês, assumindo a humildade de um serviço corajoso e nada triunfal. Poderão iniciar a existir grupos e compromissos comunitários que tomarão iniciativas proféticas de denúncia e de solidariedade articuladas e planejadas até com outros parceiros.

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