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CPT BAHIA

Crônica da carestia

Dizem que uma das formas de iniciar uma conversa, sair do silêncio constrangedor em um ambiente é falar sobre o tempo, se está calor ou frio, se vai chover ou não, conjecturar sobre o atendimento que aguarda, “mas que demora, hein!”, ou ainda, falar do que está rolando nas redes sociais e vários outros artifícios da abordagem.

Pois bem!

Estava no posto de saúde aguardando atendimento médico e ouvi a voz abafada de uma senhora dirigindo-se a mim há uma certa distância.

– Muié, parece que nóis tá voltando no tempo.

E eu também querendo quebrar o silêncio para o tempo passar depressa, olhei para a mulher mascarada, assim como eu e perguntei por que ela dissera isso.

– Parece que tamos no tempo do Sarney, quando os preços mudava todo dia. Você viu o preço da carne? Até o músculo tá caro demais!

Depois de concordar com ela galhofei: agora o pobre finalmente vai comer um prato caro!

 Acho que a senhora, concentrada no seu pensamento e revolta, não entendeu que eu queria ser “engraçadinha”, quebrar o gelo e nenhum sorriso apareceu em sua face, pelo menos não em seus olhos, a parte visível, e avançou:

– E sabe o que é pior, minha filha? Um quilo de arroz por seis reais, onde é que nóis pobre vai parar? Não adianta nada essa mixaria que o governo tá dando pro povo se aumenta tudo os preço do que nóis pobre come.

– Ah, é verdade. Do jeito que a comida tá cara, vamos acabar emagrecendo, vamos entrar no regime forçado.

– Nós vamo é passar fome, isso sim!

            Ela continuou a lembrança da década de 1980, na era José Sarney, quando os preços dos alimentos passaram a ser tabelados e a inflação atingia um dos maiores patamares da história do Brasil, “a gente ia no mercado comprar café e chegava em casa com cevada”, memorou. Nem dos congelamentos dos preços dos alimentos ela esqueceu, nem dos racionamentos, nem da tabela da SUNAB: “eu fiscalizava também”, orgulhou-se, “vi muitos mercados fechar porque cobrava caro demais!”, exclamou, num misto de tristeza e de saudosismo de quando morava na capital paulista … e, voltando-se novamente para a atualidade, perguntou-me:

Meme da Página de Humor Nazaré Amarga

            – Você viu a nova nota de duzentos reais? E sem a menor chance de eu responder, acrescentou:

– Daqui uns dias a gente vai no mercado comprar um pacote de arroz, um litro de óleo e uma banda de frango e pronto, lá se vai os duzentos.

– A tendência agora é piorar, e como a senhora disse, aumentar a fome. Li uma matéria no jornal alegando que o Brasil vai voltar para o mapa da fome se nada for feito, finalmente proferi, tentando participar da conversa e apoiar as ideias dispostas.

– Com a carestia que tá, merimã, não vai demorar pra panela de pressão estourar e a gente não ter é nada pra botar pra dentro, profetizou.

Silêncio.

– E não adianta nada presidente ficar apelando pra dono de mercado baixar preço das coisas que mercado nenhum quer perder não. Se fosse eu mermo num baixava não, emendou.

– É. Nessa crise dos alimentos já dá até para fazer uma rifa com um pacote de arroz ou com uma cesta básica, disse eu.

A falante senhora, visivelmente contrariada com os aumentos dos preços dos alimentos salientou que nós, os pobres, somos humilhados todos os dias, “falta emprego pros nossos filhos”, a aposentadoria está cada vez mais mínima, não tem remédio nos postos, o governo prefere vender mais barato para outros países do que para nós mesmos, e os ricos continuam cada vez mais ricos.

– Mas será que esse aumento dos preços tem a ver com a pandemia da covid-19? Instiguei, querendo ouvir mais, já que achava interessante essa análise.

– É nada. Tudo que tá acontecendo no mundo tão dizendo que é por causa dessa doença. O culpado é esses políticos ladrão que só quer encher os bolsos. Eles deram esses seiscentos reais mas agora estão cobrando tudo de volta. O governo é que nem satanás, dá com uma mão e tira com as duas …

            Finalmente, ouvimos um Vicença Moreira dos Santos. Abruptamente silenciou, levantou vagarosamente ajeitando sua saia esvoaçante de estampas vermelhas e, dirigindo-se a sua consulta médica, voltou-se para mim com o dedo indicador em riste:

– Tomara que esse governo dos infernos faça alguma por nóis, senão nóis tá frito, e sem óleo.

E eu cá com meus botões pensei, tomara que o povo acorde e comece a mudar a relação com o Estado, tomara que acorde e valorize o alimento produzido na sua comunidade e nas roças próximas. Tomara, senão “nóis tá frito, e sem óleo”.

Por: Sandra Leny Angelo – Agente da Comissão Pastoral da Terra Regional Bahia

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