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CPT BAHIA

Diário de uma vígilia eleitoral

Nesta vigília eleitoral, surgem, competindo entre si, muitas propostas para levantar o país e seu povo caído no fundo poço. Em cada esquina, o Brasil que se encontra e troca ideias sobre como vai a vida, parece com a multidão de “ovelhas sem pastor”, relatada no evangelho segundo Marcos, através dos olhos e do coração de Jesus: “Ao desembarcar, Jesus viu uma multidão e sentiu pena deles, porque andavam como ovelhas sem pastor.” (Mc 6,34).

Não são poucos os que, com boa dose de bom senso, conservam memória da situação que, somente cinco anos atrás, apresentava muita gente sorrindo, convencida de que o Brasil dos pobres estava com melhoras, caminhando no rumo certo, a passos vistos.  Apesar de ninguém esconder que permaneciam ainda, como letra morta, reformas estruturais imprescindíveis.

Hoje, os sonhos de algumas fatias dos pobres que conhecemos, a partir da nossa presença e serviço no meio das pastorais sociais, nestas últimas quatro décadas, tiveram uma inegável travessia qualitativa de corpos e cabeças, com uma saída inicial de uma  escandalosa e insuportável miséria que grassava no meio rural e nos bairros periféricos urbanos. Foi um impulso que chegou a vislumbrar e que, hoje, está desativado ou, pior, retrocedendo. Chegou a reaparecer a triste imagem da música “no colo da fome”, melancolicamente cantada na metade dos anos de 1970.

Não tenho conforto de nada pra levar comigo /A miséria é minha companheira, clareia o caminho / Deitado no colo da fome / adormeço, morrendo aos pouquinhos.

Resta o saldo de um caminho redescoberto por minorias valiosas que não tardará frutificar. Ex pobres conseguiram dar passos nos caminhos da solidariedade e da cidadania empoderada e autônoma. Neo-cidadãos, formados desde a constituição de 1988, descobriram tramoias seculares e iniciam a rejeitar a utilização hipócrita das instituições democráticas formais, conquistadas nesta curta temporada de trinta anos: o judiciário parcial com suas elites, ainda majoritárias, sempre mais descoladas dos reais interesses populares, e os parlamentos, com seus legislativos e executivos, organismos de democracia e do estado de direito,  presa fácil da plutocracia colonial de sempre: governos de ricos e/ou de suas instituições ou empreendimentos;  com destaque para as grandes empresas do capital,  ligadas  à mineração, energia, agronegócio, infraestruturas, incluindo aqui também as complacentes redes bancárias,  de comunicação e de informação, articuladas nacional e internacionalmente.

Duas provas, clamorosas e gritantes, estão ai: Lula é reconhecido, pelos ex pobres do Brasil e por figuras do mundo político, intelectual, artístico e religioso nacional e internacional, como preso político das elites citadas, com acusações sem provas e Jair Bolsonaro surgiu como um fenômeno político, brotado da bactéria doentia, jamais desativada, do nazi fascismo; ele lidera, até no meio de jovens empobrecidos, a corrida para ser eleito presidente. É o triunfo perigoso do descolamento e do vácuo, entre as bases e as colunas das maiores instituições que, na propagada caça aos corruptos, escondem, envergonhadas, debaixo do tapete, o horror que brada aos céus: a maior fonte de corrupção é a desigualdade abissal entre as camadas sociais brasileiras.

Se nem tudo está perdido, nem tudo, porém, pode ser reduzido ao “bom senso” de voltar simplesmente ao golpe, iniciado com o vergonhoso impeachment orquestrado por um parlamento hipócrita e obscuro, dirigido por um desprezível Eduardo Cunha.

Sonhos de gente acordada, continuam brotando da cabeça e do coração acordados de muita gente com planejamentos e previsões ainda iniciais mas que já superam a expressão ufanista de que o “Brasil vai voltar a sorrir”. São sonhos imorredouros, mesmo que não sejam um caminho triunfal convocado por uma tocada de trombeta nos shoppings centers.

Quem escreve está entre os que acreditam que os sonhos devem continuar sendo plantados, gestados e socializados, com “suor e sangue”, por parte das “testemunhas fiéis” que vem amadurecendo e que, muitas vezes, são inteiras populações, como os refugiados, os migrantes, os sem-terra, sem água e sem casa, as populações de rua com suas crianças, os doentes sem atendimento médico, os jovens e as mulheres junto com os que entram, ainda hoje, no rolo compressor da sedução consumista… São todos os que passam pela grande tribulação continental latino-americana do cotidiano e de seus aliados solidários que jamais poderão faltar.

Com a comida para os corpos e, sobretudo, com o discernimento mental que investiga, dia e noite, a direção para onde dirigir a marcha, a pé, de ônibus, de barco, de avião barateado… ficaremos cambaleando, mas venceremos. Com prazos e avaliações que poderão não corresponder, automaticamente, aos nossos prazos, avaliações e projeções.

Neste início de primavera, sentimos o momento forte de uma eleição que ocorre, após praticamente quatro anos de “golpes”, pancadas violentas e arrogantes, rasgando o espirito da constituição federal republicana e assumindo um estado de exceção hipocritamente negado. Não faltaram movimentações populares, assembleias populares de organizações da sociedade civil, da classe operária e camponesa, das universidades, congressos, convenções, fóruns, conselhos, capítulos, conferências… de partidos e de organizações religiosas de vários tipos, encontros ecumênicos e intereclesiais, igrejas, denominações culturais, etc. Já começam a despontar também, graças aos brasileiros indígenas e negros, valiosas sinalizações dos ancestrais do nosso país continente que, no meio de suas baixas, fazem sempre brilhar os raios do Bem Viver, da Terra sem males e do Axé que existem em todo ser humano e na natureza.

Na perspectiva de uma fé religiosa, feita história de vidas coletivas e pessoais, com a marca profética resgatada de uma deprimente e mesquinha utilização da Bíblia, muitos leitores/as destas linhas sentem-se inspirados a assumir a missão da personalidade coletiva, histórica e cósmica, chamada Jesus de Nazaré. Sentimos que, mais uma vez, se nos abre a perspectiva de viver fadigosamente e concretamente, entre o incerto e o esperançoso: trata-se de uma fé em Deus, construída artesanalmente com nosso agir; só ela nos permite proclamar, ainda que no meio das lágrimas e dos muitos lutos, a expressão do profeta Pedro Casaldáliga: “Somos os eternos derrotados de uma causa invencível”. A causa de Jesus de Nazaré e da sua divindade misteriosa está profundamente enraizada no humano com todos os entusiasmos e revezes.

Com todo respeito e em diálogo permanente, com quem tem dificuldade de acreditar nisso, sentimos que, na luz ressuscitada de Jesus de Nazaré, apesar da necessidade, por nossa parte, de plantar, gestar e socializar os sonhos que partem do exame da realidade, o sagrado e o transcendente passam sempre pela valência e sentidos éticos. Como dizer, num linguajar que pode escandalizar, que o nosso Deus tem sempre a ver como os relacionamentos construídos ou destruídos entre nós, os humanos e com a natureza.  No conflito cotidiano entre os sonhos vitoriosos das “testemunhas fiéis” (Apocalipse, 7, 14) e os grandes da terra, os mercadores, “que enfeitiçam todas as nações” (Apocalipse 18, 23).

Com a Esperança, nome permanente de Deus que ele próprio legou aos seres humanos, em seu agir na história, resta uma grande missão a cumprir. Com prazos e balancetes sempre além de nossos calendários e registros de contabilidade.

Luciano Bernardi/ Integrante da Ordem dos Franciscanos Menores Conventuais, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) Bahia e da Justiça, Paz e Integridade da Criação (JPIC).

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