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CPT BAHIA

Juiz suspende liminar de reintegração de posse contra aldeia Pataxó no extremo sul da Bahia

Por Tatiana Scalco, João Payayá, Thiara Pataxó e Emerson Pataxó, via Jornalistas Livres

No último dia 25, a Justiça baiana suspendeu liminar de reintegração de posse na área dentro da Terra Indígena Barra Velha, em Prado, no Extremo Sul do Estado. A batalha jurídica está colocada. Os autores da ação omitiram que a área pleiteada é Território Indígena delimitado e apresentaram os indígenas como invasores. Os moradores da aldeia Pataxó apresentaram elementos de sua posse originária. A suspensão da liminar não termina o processo.

O clima é de tensão. O Movimento Indígena acompanha o caso preocupado. O Ministério Público Federal abriu Notícia de Fato sobre a situação e pediu informações junto ao juízo estadual.

O Território Indígena Barra Velha é o local onde houve o primeiro contato entre indígenas e o homem branco no Brasil. Ele está localizado entre os municípios de Prado e Porto Seguro, no extremo sul da Bahia. Local de mata atlântica, com muita beleza, é destino turístico de estrangeiros, ricos e famosos. E, também, é território com muita especulação imobiliária, conflitos fundiários e tensões entre indígenas e não indígenas. No último mês houve uma escalada no nível de tensão da região.

É nesse contexto que está a ação de reintegração de posse nº 8000045-54.2022.8.05.0203, pleiteada junto à Justiça Estadual Baiana no dia 13 de janeiro de 2022. Os autores da ação (Paulo Sérgio Guimarães e Alaor Silva Junior) omitiram que o terreno em disputa está dentro em Território Indígena Barra Velha, delimitado, e que o ato é contra indígenas.

O local está na região da mata atlântica, que tem tido porções de área protegida desmatadas pelo homem branco, informam indígenas do território. Segundo eles, o motivo do desmatamento é a “construção de chalés para gringos”. “O desmatamento está sendo grande. E essas ocupações, centenas de construções, né, (têm sido) feitas irregularmente em nossos territórios”, denuncia o Cacique Aruã, presidente da Federação das Nações Pataxó e Tupinambá do Extremo Sul da Bahia (FINPAT)

Os indígenas representados pelo Movimento Unido dos Povos Indígenas da Bahia (MUPOIBA) e pela FINPAT denunciaram a situação aos órgãos competentes e pedem providências. As lideranças indígenas do território têm se reunido com frequência para tratar da situação. O Conselho Indigenista Missionário (CIMI) assessora juridicamente o caso.

Agnaldo Pataxó Hã-Hã-Hae, coordenador Geral do MUPOIBA, comenta que o movimento acompanha com preocupação a situação dos TI Barra Velha e Comexatibá e destaca que o MUPOIBA defende que seja realizada demarcação do TI Barra Velha de forma continua. Agnaldo completa “e é isso que nós defendemos junto à justiça, junto à Funai”. E segue falando que “durante estes anos (es) tá havendo uma reação orquestrada, organizada, planejada pelos anti-indígenas da região, de maneira a criminalizar as lideranças indígenas Pataxó do Território”.

Mapa 1: localização da área que teve a liminar de reintegração de posse deferida, dentro do TI Barra Velha. 

Segundo Agnaldo, várias áreas estão sendo invadidas pela indústria do turismo, a indústria imobiliária e famílias indígenas têm sido criminalizadas para assim essas organizações, “essas organizações criminosas, possam se apossar dos territórios indígenas e explorar, desmatando. Tornando ele em forma de construção de grandes hotéis”.

O cacique Aruã, presidente da FINPAT, denuncia “nossos territórios tradicionais estão sendo invadidos, roubados dos nossos parentes, dos nossos indígenas, das nossas comunidades”. Ele explica: “pessoas, obras irregulares, mineração, desmatamento do nosso território corre a todo vapor”. E continua, “o desmatamento está sendo grande. E essas ocupações, centenas de construções, né, (estão sendo) feitas irregularmente em nossos territórios. Então é necessário que a população baiana, brasileira e da região saiba, né, do que está acontecendo em nossos territórios tradicionais”.

“Sob o ponto de vista jurídico e constitucional, terra indígena é terra da União e todo e qualquer ato jurídico que as envolva, é nulo já na origem. O fato de uma terra indígena ser “delimitada” já deixa claro que, independentemente do aperfeiçoamento de atos jurídico-administrativos, cuida-se de terra essencial para a preservação das culturas indígenas, claramente protegida por cláusula pétrea pela Constituição Federal de 1988, bem como por normas internacionais.

Importante a lembrança de que Barra Velha constitui terra originária quanto aos povos indígenas lá existentes, especialmente o povo Pataxó. Terra originária, reconhecida pela Constituição de 1988 como aquela anterior ao próprio Estado brasileiro (conforme Art. 231), não pode ser expropriada, alienada, vendida, ser objeto de apossamento sob qualquer pretexto etc. É nulo, de forma absoluta, qualquer registro em Cartório de Imóveis que gere domínio sobre terras indígenas.

Qualquer negociação realizada nestas terras, é nula; qualquer obra realizada em Terras Indígenas, é ilícita; qualquer decisão política, administrativa, jurídica etc. que afetem os povos indígenas, deve ser objeto de prévia consulta aos povos originários impactos por elas.

Ainda, ressalte-se que o Estado brasileiro, especialmente a União, tem a obrigação de adotar todas as providências necessárias para a concretização dos direitos humanos fundamentais de que são titulares os povos nativos. A omissão também gera extermínio, físico e cultural.

A condição da terra indígena “delimitada” pressupõe a necessidade de respeito à integridade da mesma, uma vez que se trata de terras que tiveram a conclusão dos estudos publicados no Diário Oficial da União pela Funai e se encontram em análise pelo Ministério da Justiça para expedição de Portaria Declaratória da Posse Tradicional Indígena.

Vale afirmar: terra indígena delimitada é aquela que já possui lastro técnico especializado para reconhecimento da condição de terra “indígena”, ou seja, essencial à existência física e cultural das respectivas comunidades e nações indígenas, ainda que dependente de atos administrativos da demarcação física, homologação e registro das terras indígenas. “Reconhece”, não “constitui”, uma vez que as terras indígenas, como dito, preexistem ao próprio Estado brasileiro, nos termos nas normas nacionais e internacionais vigentes.”

Dra. Lethicia Reis, da assessoria jurídica do CIMI, destaca que a área em disputa “está completamente sobreposta ao território de Barra Velha”. Ela explica que “o local não estava sendo usufruído pelas lideranças e pelas comunidades Pataxó por causa das ameaças e das invasões, principalmente relacionadas ao turismo que acontecem ali no litoral”. E continua explicando que “os indígenas viram que estava acontecendo um desmatamento maior do que o normal. Que a área que para eles estava sendo regenerada, eles estavam, na perspectiva de gestão deles, era uma área de mata atlântica que deveria ser regenerada. Mas que eles encontraram lá na verdade, grandes campos abertos para a construção de chalés e loteamento”.

“Essa decisão de tirá-los (os Pataxó) da área, né, veio muito baseada na má-fé do pretenso proprietário que diz ser dono ali da área e que entrou com ação na justiça estadual. Ou seja, ele negou que existiam indígenas ali. Ele ignorou o fato de ser uma terra indígena e das pessoas que fizeram uma retomada serem indígenas. E entrou na justiça estadual da Bahia, que é incompetente para lidar com questões indígenas, né. E induziu o juiz a erro. E só por causa desse erro que o juiz determinou essa liminar (de reintegração de posse). A gente já sabe que os processos territoriais em terras indígenas estão suspensos até o final do julgamento do recurso extraordinário que (es)tá sendo julgado no Supremo (Tribunal Federal). Mas, é isso foi omitido pro juiz e aí ele tomou essa decisão”, comenta Dra. Lethicia.

“A gente entende que é um absurdo. É uma decisão que não se sustenta justamente porque é apoiada em mentira. Essa decisão de liminar só existe porque não foi considerado que existem indígenas ali.” – Dra. Lethicia Reis, Cimi.

Mapa 2: área conhecida tradicionalmente como “Quero Ver” é parte da Terra Indígena Barra Velha no Monte Pascoal

Na última sexta-feira (21) os indígenas, com apoio da assessoria jurídica do CIMI, apresentaram pedido de reconsideração da decisão. Os argumentos apresentados são:

(1) não é da competência da Justiça Estadual Baiana o julgamento de disputas sobre direitos indígenas (Artigo 109, XI, Constituição Federal);

(2) foi realizado reestudo de demarcação, pois o anterior confundia Unidade de Conservação Ambiental com Território Indígena, inviabilizando a perspectiva territorial. O processo regular (nº FUNAI/BSB/2556/82) teve seu estudo publicado por meio do Relatório RCID. O RCID reconhece a Terra Indígena Barra Velha; clique aqui para ver o Resumo do RCID publicado no Diário Oficial da União. (incluir arquivo RESUMO RCID BARRA VELHA.pdf)

(3) fazendeiros da região entraram com mandado de segurança para que o Ministro da Justiça não assinasse a portaria demarcatória. Em 2019 o Superior Tribunal de Justiça reconheceu o direito dos Pataxó em ter sua área demarcada e derrubou o mandado de segurança.

(4) A Aldeia Quero Ver e suas lideranças são reconhecidas pelos Caciques do TI Barra Velha com legitimas. E a área é parte do Território Pataxó. Também reconhecem a sua legitimidade e declaram o pertencimento da Aldeia Quero Ver ao território e ao povo Pataxó a Federação Indígena dos Povos Pataxó e Tupinambá (FINPAT) e o Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia (MUPOIBA).

(5) O Supremo Tribunal Federal determinou a suspensão nacional dos processos que tratam de direitos territoriais indígenas, até que se julgue o Recurso Extraordinário 1.017.365/SC relativo à ação de reintegração de posse envolvendo a Comunidade Indígena Xokleng, em Santa Catarina. A discussão do Marco Temporal.

(6) A matrícula apresentada pelos autores da ação justificando sua propriedade apresenta indícios de irregularidade.

A CDA – órgão estadual responsável pela certificação das terras na Bahia – está avaliando a situação. Foi emitido relatório indicando a necessidade de reavaliação da cadeia sucessória de propriedade da terra. E encaminhado solicitação de certidões de inteiro teor e de cadeia sucessória junto aos cartórios dos municípios de Prado e Itamaraju

Na mesma sexta-feira a Procuradoria Federal em Prado foi informada e abriu procedimento do tipo Notícia de Fato para apurar a situação. No domingo, dia 23, o juiz do caso despachou. Na segunda-feira (24 ), a FINPAT apresentou denúncia de supressão de vegetação nativa (mata atlântica) na área junto ao Ministério Público da Bahia (MP-BA). O MP-BA abriu inquérito civil para cumprir as diligências relacionadas ao tema, inclusive solicitando informações do processo.

Hoje, terça-feira, o Juiz Gustavo Vargas Quinamo suspendeu a liminar até a manifestação dos autores da ação. O Cacique Aruã presidente da FINPAT comentou a decisão:

“O fato de uma reintegração de posse em terra indígena ser sido autorizada, em plena pandemia, gerou entre os indígenas tensão, temor pelo cumprimento da medida e risco real de convulsão social”. A decisão de suspensão provisória da liminar foi uma “foi uma vitória momentânea”, completa.

Aruã continua dizendo que “vamos sempre ficar atentos, (pois) vários juízes, tanto na área estadual quanto federal não estão respeitando a decisão do Supremo Tribunal Federal. E, estão aí fazendo emissão de liminares de reintegração de posse em comunidades indígenas da Bahia e do Brasil. Ele termina dizendo que continuam acompanhando a situação.

Dra Lethicia Reis do CIMI comentou a importância da decisão de suspensão da liminar. “O dano de uma reintegração de posse é muito maior”, visto que o direito “está muito mais claro que é um direito dos Pataxó”, fala Lethicia. E termina observando que a decisão do juiz de Prado de suspensão do liminar foi adequada.

O advogado e professor Dr. Flávio Bastos comentou o acerto da decisão e destacou que “o Estado brasileiro, especialmente a União, tem a obrigação de adotar todas as providências necessárias para a concretização dos direitos humanos fundamentais de que são titulares os povos nativos. A omissão também gera extermínio, físico e cultural”.

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