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CPT BAHIA

Luciana Khoury, do Ministério Público, a da ordem: a cumpre, mas questiona…

Na manhã desta quarta-feira (01), a Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia, Luciana Khoury, recebeu a homenagem Comenda Dois de Julho, a mais alta condecoração concedida pela Assembleia Legislativa, no auditório do Ministério Público,no Centro Administrativo de Salvador (BA).

Ruben Siqueira, da coordenação nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT) participou deste momento e apresentou um pouco da parceria e luta da homenageada em defesa das águas do Velho Chico.

A seguir, o texto apresentado por ele:

Luciana Khoury, do Ministério Público, a da ordem: a cumpre, mas questiona…

Bom dia!

Saúdo aos companheiros e companheiras de luta e todos e todas presentes!

Saúdo ao deputado Marcelino Galo, propositor e presidente desta sessão. Na pessoa dele saúdo à toda mesa e às autoridades presentes.

Saúdo de modo muito especial a Luciana Khoury, do MPE-BA, doutora que não gosta de ser chamada de doutora!

Ao que preparei para dizer nesta ocasião importante acabei dando o título de Luciana Khoury, do Ministério Público, a da ordem: a cumpre, mas questiona, depois de desistir de usar “inverte” e “perturba” a ordem estabelecida… Como resolver a contradição? E fiquei matutando qual seria mesmo o papel do Ministério Público, instância compósita do sistema do Estado Democrático de Direito(s) em ruína…

Quando Luciana me convidou para falar aqui, hoje, demorei em responder. Porque precisava consultar o pessoal da CPT – Comissão Pastoral da Terra, instituição em que milito há 37 anos na Bahia e alhures. Mas também porque precisava digerir os significados desta homenagem, a Comenda Dois de Julho, a mais alta da Bahia. Nenhuma dúvida sobre o merecimento da laureada, muito pelo contrário, mas sobre a oportunidade e alcance da láurea.

Neste meio tempo, chega a Revista Ecoteologia com textos de alguns/algumas dos principais teólogos/as do país, de reflexão do tema à luz da carta-encíclica Laudato Si’ – sobre o cuidado da casa comum, do Papa Francisco. Num deles, o monge beneditino Marcelo Barros, um dos criadores da CPT, contava que em 2007, em Nairóbi, no Quênia, visitou uma comunidade africana tradicional e lá teve o seguinte diálogo com uma senhora, sacerdotisa de Tamobi, a deusa da água: “- Como tendo aqui uma sacerdotisa da deusa da água, essa região é tão seca? A senhora não consegue que Tamobi faça chover? Ela me respondeu francamente [conta Marcelo]: – Eu sou sacerdotisa da água e não dona da água.” Aí eu pensei: é Luciana! Vou lá na Assembleia dizer isso! Ela vive e atua como uma sacerdotisa da água e só não faz chover no São Francisco para salvá-lo porque não tem este poder; se pudesse, faria! E se contentaria o Governo do Estado que acha que o problema da crise hídrica estrutural e sistêmica do São Francisco é de São Pedro…

O convite de Luciana para que aqui eu falasse, é por conta de nossa parceria na luta pelo rio São Francisco, da qual constituiu-se também uma amizade que muito me honra e felicita. Nós nos conhecemos aí pelo início dos anos 2000, no âmbito do Fórum Permanente de Defesa do São Francisco, que reunia cerca de 60 entidades da sociedade civil, liderado pelo CREA (Conselho Regional de Engenharia e Agronomia) da Bahia, no qual Luciana era das mais atuantes. O que, portanto, veio a nos unir foi a luta honesta e, ainda mais hoje comprovadamente acertada, contra a transposição do Rio São Francisco e pelo desenvolvimento sustentável do Semiárido Brasileiro e revitalização do Velho Chico – uma paixão comum, nossa “cachaça”. Além daquela nossa paixão por Juazeiro, onde viveram seus pais e eu também, o despertar de nosso amor barranqueiro, pelo rio. Devo, então, trazer esta trajetória para corroborar a Comenda que esta Casa dita do Povo decidiu lhe outorgar.

Do Fórum no CREA, passamos a intensificar a parceria quando Luciana, coordenadora do NUSF – Núcleo de Defesa da Bacia do São Francisco, do MPE-BA, lidera a concepção e o implemento do Programa de Fiscalização Preventiva Integrada (FPI), em 2002, e nós da CPT e do CPP (Conselho Pastoral dos Pescadores) o Projeto São Francisco, dando origem e apoio à Articulação Popular São Francisco Vivo, a partir de 2005, a congregar cerca de 300 entidades e organizações da sociedade civil e do movimento popular em toda a Bacia.

Sobre as FPIs – que, sabemos, tem a cara, o coração e o braço de Luciana – das quais temos sido parceiros na indicação de situações e na realização das fiscalizações, dei o seguinte depoimento para o livro do MPE-BA “Velho Chico – a experiência da Fiscalização Preventiva Integrada na Bahia”: “(…) poucas vezes vi o Estado brasileiro funcionar assim, com seriedade, dedicação e efetividade! Hoje fico pensando que sem estas fiscalizações a situação do Rio São Francisco, nada boa, estaria bem pior! As FPIs têm sido, na prática, o mínimo controle sobre os desmandos deste processo na Bacia do São Francisco, na Bahia. Porque além da frente numerosa de órgãos públicos atuando juntos, cria no pessoal e na sociedade um clima favorável à Justiça e ao Direito – o que não é pouco neste país. Precisam crescer, aprofundar-se, estender-se para todas as regiões da Bacia. Nem tudo se resolve com multas e TACs; ideal era que estes não fossem necessários, que não precisássemos de blitzes! Mas sem elas e sem o processo educativo social e ambiental que as FPIs instauram, estaríamos bem piores no São Francisco, a vida em muito maior risco”.

O que nas FPIs Luciana mais quer de nós são as demandas dos povos e comunidades da Bacia, na conquista e defesa de seus territórios, tidos e havidos até por “entraves ao crescimento”… Mas para ela e para nós, sujeitos não só de direitos, mas também da obra monumental da revitalização verdadeira. Como diz ela, “dar voz e vez ao povo do São Francisco é a minha missão”. Confabulamos e conspiramos também não só que é pífia a propalada revitalização hídrica, focada na qualidade e não também na quantidade da água, e não socioambiental e menos ainda ecossistêmica do São Francisco. Como também que “não adianta revitalizar o São Francisco se você está autorizando danos”, como disse ela em entrevista ao jornal A Tarde em 09/04/18.

O rio tido como mero recurso hídrico para novos usos econômicos hidro-intensivos e abusivos, produtores de commodities exportáveis, não importam os custos, usos que se sobrepõem aos antigos e o estão exaurindo, a despeito de reiterados e propagandísticos programas oficiais de revitalização, comitês e planos de bacia. Quem os estão desmentindo é o povo ribeirinho, como o do Rio Arrojado, em Correntina, esgotados todos os apelos e toda a paciência, e sem medo de uma absurda criminalização… Qual mesmo o crime e quem é o criminoso?

Tenho comigo – o que é compartilhado por outros companheiros/as do movimento popular – que os constituintes de 1988, nos marcos do pacto social que levou à morte lenta e inconclusa à Ditadura Civil-Militar, quando deram poder ao Ministério Público, quiseram compor um quadro que combinasse empoderamento popular e controle ou disciplinamento deste mesmo poder popular… Tipo assim, uma instância que acolhesse e apresentasse aos poderes da República os reclamos da cidadania por direitos e participação, algo que a secular e ainda colonial burocracia do Estado brasileiro tratasse de engambelar e distender… Eles não previam uma Luciana Khoury! Que faz valer sua prerrogativa de mediadora efetiva dos direitos, até aos da Mãe Natureza, mais do que e para além das estratégias dos poderosos de plantão, os de sempre donos do Capital e do Estado seu gendarme. Para o que não economizam golpes e rupturas e retrocessos brutais, cinicamente dados dentro das formalidades da falaciosa e corrupta “democracia” dos Três Poderes da República. Mas neste belo e triste país, nunca foi fácil a luta pela verdade, pela liberdade e pela justiça – luta dos pobres. Que continua, companheiros! – diria com voz rouca e interditada…

Luciana é para nós exemplar reverberação do que, na Conferência de Lima / Peru, em 24 de novembro de 2014, propunha o Papa Francisco diante do tempo que se esgota para soluções globais para as crises sociais e ambientais que são uma só crise socioambiental e civilizatória: “um claro, definitivo e improrrogável imperativo ético de agir”. Isto é Luciana!

Carta de D. Fr. Luiz Cappio lida ao final da fala de Ruben Siqueira.

Alguém que não pode estar aqui presente mandou a Luciana Khoury a seguinte mensagem (na imagem da Carta de D. Fr. Luiz Cappiona ao lado).

Dra. Luciana Espinheira da Costa Khoury, Luciana, Lu – querida – você merece a alta Comenda Dois de Julho porque, como mulher, Promotora de Justiça, cidadã e militante da luta pelo São Francisco, como também das outras tantas suas lutas – em defesa das águas e de toda a Natureza, da vida ameaçada pelos agrotóxicos e dos Direitos Humanos –, você o faz com a força física e moral da pescadora e marisqueira, enfermeira e capoeirista negra Maria Felipa, com a coragem da sábia e destemida abadessa Joana Angélica e com a fibra revolucionária da cadete Maria Quitéria, que para defender a causa da independência travestiu-se no soldado Medeiros! Herdeira delas, mulheres e suas astúcias, que mais que homens enobrecem a Bahia, esta comenda lhe cabe, fica bem em você, faz bem à Bahia, e engrandece e fortalece a nossa luta!

São Francisco Vivo – Terra e Água, Rio e Povo! Valeu, Marcelino! Muito obrigado!

Ruben Siqueira

CPT / Articulação Popular São Francisco Vivo

Salvador, 01 de agosto de 2018.

 

Foto da capa: Lidiane Campos/ Associação de Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais – AATR/Bahia

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