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CPT BAHIA

No país em que a fome voltou a ser manchete nacional, o que podemos aprender com as comunidades de fundo e fecho de pasto?

“E haverá espetáculo mais lindo do que ter o que comer?”

(Carolina Maria de Jesus em “Quarto de Despejo”)

Uma mãe solo trabalhadora, negra, favelada, desesperada para botar comida na mesa todos os dias. Essa é a história de Carolina Maria de Jesus, imortalizada nas páginas da obra Quarto de Despejo, escrita a partir de seus diários dos anos 1950. Seis décadas depois, essa também é a história Ingrid Tatiana, uma das entrevistadas de uma reportagem do Fantástico do último domingo de janeiro deste ano sobre a fome no Brasil.

A fome voltou a ser manchete nacional. Assistimos hoje no horário nobre da TV aberta, o que os nossos olhos já percebiam com mais frequência nos últimos anos: grande número de pessoas em busca do que comer nas portas dos restaurantes e das casas e alimentos cada dia mais caros. Desemprego crescente, perda de direitos trabalhistas e previdenciários, congelamento de investimentos em áreas básicas como saúde e educação, e uma pandemia e sua condução genocida que devastaram o meio de sustento de milhões de brasileiros. O resultado não podia ser outro.

Chegamos em 2021 com o maior número de pessoas em situação de miséria em uma década. De acordo com a Fundação Getúlio Vargas (FGV), com o fim do auxílio emergencial em dezembro, 12,8% da população brasileira passou a viver com menos de R$ 246 ao mês. Cerca de 27 milhões de pessoas começaram o ano nessa situação. Aproximadamente 70 milhões de brasileiros/as receberam o auxílio emergencial no ano passado. A maior parte dos beneficiários/as (53%) utilizaram o dinheiro para comprar comida, mostrou uma pesquisa do Datafolha.

A pandemia do coronavírus escancarou e aprofundou esse grave problema social, ainda mais em um país extremamente desigual e que o Governo Federal é o maior inimigo de combate à crise sanitária. Mas, antes desse vírus sacudir o mundo, a fome já mandava seus sinais de alerta. Dados do IBGE, divulgados em setembro de 2020, apontam que 10,3 milhões de pessoas passaram por insegurança alimentar grave (condição em que pessoas ficam até um dia sem comer) entre 2017 e 2018. Nesse mesmo período, 36,7% dos domicílios estavam com algum nível de insegurança alimentar, atingindo mais de 84 milhões de brasileiros. Esse é o número mais elevado desde 2004. A área rural e as regiões Norte e Nordeste são as que aparecem com os piores índices.

No mesmo ano de 2018, o professor Carlos Walter Porto-Gonçalves e o consultor Alvori Cristo, em parceria com a Comissão Pastoral da Terra (CPT Bahia) e outras entidades, realizaram um estudo sobre as comunidades tradicionais de Fundo e Fecho de Pasto (FFP). A pesquisa foi realizada em 10 territórios de nosso estado e teve o objetivo de avaliar a capacidade dessa população de produzir com segurança alimentar, gerar renda e preservar o meio ambiente.

O estudo, elaborado em diálogo com as organizações e comunidades FFP, traz resultados incríveis sobre esse jeito de viver tradicional das caatingas e cerrados baianos. A história e lutas dessas comunidades, a relação com a terra e território, os conhecimentos e saberes produzidos ao longo do tempo, entre outros elementos, são abordados na pesquisa. Uma cartilha com uma síntese do estudo pode ser acessada no site da CPT Bahia.

Neste texto, quero destacar apenas uma questão tratada no estudo: a capacidade de produção e renda e, consequentemente, a segurança alimentar e sustentabilidade dessas famílias camponesas. Nos 10 territórios estudados, há 91 comunidades e mais de 19 mil pessoas. Entre 2017 e 2018, essa população produziu mais de 13 milhões de quilos de alimentos diversificados entre mais de 70 produtos. A média dessa produção é 1,9 kg de alimentos por pessoa ao dia oriundos desses territórios.

A produção varia entre os locais. Em Bom Jardim, localizada no município de Canudos, a produção foi de 785 kg por ano por família. Já nos Brejos, na Barra, essa produção chegou a 3.283 kg por família ao ano. Apesar dessas diferenças, o estudo considera positiva essa produção, pois, no caso de Bom Jardim, temos que levar em consideração que é um território de sequeiro e cercado por ameaças do agronegócio e empresas de mineração.

O estudo confirma que as comunidades tradicionais de fundo e fecho de pasto além de manter a Caatinga e o Cerrado vivos e a reprodução dos animais nativos, também produzem e geram renda. Segundo a pesquisa, a produção total dos 10 territórios representa aproximadamente 18% do valor da produção da agricultura e pecuária dos 10 municípios do estudo e foi produzida por cerca de 10% dos trabalhadores/as rurais.

Ou seja, na contramão do cenário nacional – dominado pelo ultraneoliberalismo, que gera cada vez mais pobreza e trata as pessoas como descartáveis – na Bahia, temos comunidades, com expressiva população, que com seu jeito de viver específico são sustentáveis, produzem comida de verdade (sem veneno!), geram trabalho e renda.

Importante destacar que essas comunidades, assim como toda nossa população, também sofreram os impactos socioeconômicos da pandemia, claro. Feiras foram suspensas, a comercialização de produtos diminuiu, mas, de forma geral, percebe-se que as comunidades de fundo e fecho de pasto que mantêm a posse de seus territórios estão conseguindo atravessar essa crise mantendo a sua sustentabilidade. Acrescenta-se a isso, o fato de 2020 ter sido um ano de boas chuvas.

Por outro lado, as ameaças à reprodução desse modo de vida se intensificaram durante a pandemia. A “boiada”, representada aqui sobretudo pela mineração, empreendimentos de energia e o agronegócio, quer passar a qualquer custo por cima desses territórios. Sem terra não há produção. Não há comida para o sustento das famílias do campo e abastecimento das cidades. Se forem expropriadas de seus territórios ou impossibilitadas de garantir seu jeito de viver, essas comunidades entrarão para as estatísticas do início deste texto. As lutas por terra e território também são lutas de combate à fome e essenciais para reduzir a desigualdade em nosso país.

Por Juliana Magalhães – agente da CPT Bahia, jornalista e mestra em Extensão Rural

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