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CPT BAHIA

O DIA QUE ME DESCOBRI PRETA

Esse dia não existe. Não em um intervalo do movimento da Terra (redonda!) em torno do seu eixo, ou seja, um período de 24 horas.

Assim como a personagem do conto Olhos D’Água, de Conceição Evaristo, conduzida pela busca angustiante de uma lembrança, passei a última semana do #JulhodasPretas tentando resgatar na memória quando me descobri negra.

E o que encontrei?

O dia em que me descobri preta não tem data, nem hora marcada. Tampouco foi “desde quando me entendo por gente”. Tá mais para “quando passei a questionar a gente”, ou melhor, nas palavras de Ailton Krenak, “essa ideia plasmada de humanidade homogênea”.

O dia em que me descobri preta foi aquele que parei de tentar definir minha cor a partir das partes mais claras do meu corpo. Foi também no dia em que me permitir saber como era o meu cabelo (que é festa!) e decidi enfrentar os olhares racistas com a mesma força do volume dos fios.

Mas não foi só encarando o espelho que me descobri preta. Através dele, me descobri preta tentando compreender as trajetórias da minha mãe, das minhas tias, da minha bisavó e da tataravó, que esbarra naquela velha conhecida história junto a um homem branco, que me provoca calafrios só de imaginar.

O dia em que me descobri negra foi aquele em que me senti parte de um grupo que ninguém quer pertencer, mas, que também entendi que sou mais um dos poucos pontinhos fora da curva. Salários mais baixos? Piores condições de trabalho? Menor escolaridade? Juventude exterminada? Maiores vítimas de feminicídio? Mais afetados pela pandemia? Acertou! Somos nós, os/as pretos/as e pardos/as.

No dia em que me descobri preta compreendi que essa parcela da população não carrega com suas vidas essas cruéis estatísticas por obra divina, algo histórico-natural ou porque não se “esforçam o bastante”, como adoram esbravejar por aí. Entendi que lhe foi roubada a terra e tirada toda e qualquer forma de viver com dignidade. Que a miséria do nossos é a riqueza de poucos. E esses poucos fazem tudo para não darmos nem um passo fora desse lugar que nos jogaram.

O dia em que me descobri preta foi movimento. Foi aquele que enxerguei que existem resistências, outros modos de vida, que tem tanto, mas tanto a nos ensinar. Que muito foi construído até aqui, nadando contra a correnteza banhada de sangue. Que há muita luta comum, na cidade e no campo, da periferia aos quilombos. Que essas lutas nem de longe têm nada relação com um capitalismo “cool”, que transforma identidades em mercadorias.

Me descobri preta há dois meses, enquanto dava banho no meu sobrinho e enxergava o rosto do menino Miguel do Recife. Há um mês, quando comprei livros de mulheres negras. Semana passada, ao ver as tretas, lacrações, cancelamentos e afins das redes sociais e percebi, mais uma vez, que os/as brancos/as não exitam em prestar solidariedade entre os seus, do mesmo modo que são os primeiros a julgar um espirro vindo de um/uma negro/a.

Do dia em que me descobri preta até hoje, tenho reafirmado minha cor e minha classe diariamente. E não é suficiente. Quero descobrir tantos pretos e pretas, suas histórias, seus ensinamentos para o resto da minha vida. Muito me foi negado aqui. Não posso, não podemos perder mais tempo.

Juliana Magalhães – agente da CPT Bahia, jornalista e mestra em Extensão Rural

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