cropped-logo-cpt-1.png
Acesse o Caderno de Conflitos no Campo Brasil 2023

CPT BAHIA

Onde está o teu irmão? Onde está tua irmã? (cfr. Gn 4, 9)

Muitos da minha geração, sentindo necessidade de dar razão de sua fé e de sua maneira de viver, no Brasil, assumindo um serviço solidário junto com os pobres, com história e cultura diferentes, tiveram a possibilidade de buscar uma luz e um discernimento através de encontros, estudos e partilhas entre companheiros e companheiras de várias denominações religiosas. Ao lado deles caminhavam e conversavam pessoas iluminadas, discretas e humaníssimas. Recordo algumas que marcaram momentos de discernimento e de opção: Carlos Mesters, Milton Schwantes, Marcelo Barros, Ivone Gebara, Sandro Gallazzi… entre outros e outras.

Partilhando vida e amizade, a bíblia tornou-se uma referência vital, sem nada de mágico. Ela anima, ainda hoje, no cotidiano, o sentido de nosso caminhar solidário, sofrendo e amando, ao lado de quem é diferente por cultura e história, e pobre como nós. Nas caatingas nordestinas ou nas periferias das metrópoles, a Bíblia oferece, a quem entra nela, a sensação de encontrar uma mina preciosa, neste nosso mundo que, com a natureza e seu ambiente geográfico, se torna, a casa de todos.  Rejeitos tóxicos metais pesados, como em toda mina, na bíblia também se amontoam dentro dela, hoje mais do que ontem, precisando ser reconhecidos para se defender deles.

Nesta perspectiva, resulta insuportável, ouvir, avaliações sobre o momento que o Brasil e a América Latina estão vivendo, do ponto de vista socioeconômico e político-cultural, que apontam para uma classe de pessoas e, muitas vezes, pobres eles mesmos, assumindo, com naturalidade que, chegou, finalmente, e o momento de “endireitar” o Brasil” com o protagonismo das quatro b: “boi, bala, banco e bíblia”.  Boi, como monocultura e agronegócios extensivos sobre a terra e as águas que são de todos; balas, carregando armas homicidas que reprimem e matam os que não se conformam; bancos, como organizações que acumulam lucros que fazem levedar, sensivelmente dentro delas próprias, o dinheiro fruto da especulação financeira e das sonegações de impostos; bíblia, para fornecer slogans redutivos e ideológicos, em discursos que escondem a verdade e só impressionam os ingênuos.

A Bíblia, livre de ser um livro-receituário ou um sermão, é sobretudo, suor e gemido dos escravos e sangue dos inocentes assassinados. Como foi Abel, por Caim e Jesus Cristo, ponto alto da Bíblia, nos evangelhos. No primeiro livro da Bíblia (Genesis 4, 9-46), se nos apresenta a reação de Deus (Javé) após o crime de Caim sobre seu irmão Abel.

4,9Então Javé perguntou a Caim: «Onde está o seu irmão Abel?» Caim respondeu: «Não sei. Por acaso eu sou o guarda do meu irmão?» 10 Javé disse: «O que foi você fezOuço o sangue do seu irmãoclamando da terra para mim.  11 Por isso você é amaldiçoado poressa terra que abriu a boca para receber de suas mãos, o sangue do seu irmão

Quem lê este texto dramático não deve ter nenhuma dúvida interpretativa. Revela, de fato, o que de mais doloroso e coletivo acontece. A luz da realidade, que a mídia a cada momento nos faz tocar com a mão, precisa responder permanentemente a uma pergunta simples: quem é Caim, hoje, e quem é Abel? Apenas um mês atrás, completado em 25 de fevereiro de 2019, quando escrevemos estas linhas, perguntamos: quem foi Caim, em Brumadinho das Minas Gerais? A resposta ecoou ecumenicamente, em centenas de praças do Brasil durante o ato ecumênico, realizado nestes dias, por várias entidades e movimentos.. Pensadores e comunicadores nos alertam, suscitando arrepios do horror, que emerge, cada vez mais, também no Brasil, um restrito mas poderoso Caim coletivo. Como gerenciador e articulador de capitais das camadas mais ricas, ele vem tomando conta do estado, de seus governos e instituições, de empresas privadas ou privatizadas e de grandes projetos e empreendimentos, a serviço do lucro de poucos e a qualquer custo.

Somos alertados e informados, até pelo papa Francisco, que o Caim hoje, assume a vontade homicida de eliminar, de várias maneiras, massas inteiras de pobres. Quando não os atinge diretamente como no caso de leis trabalhistas ou previdenciárias, assume hipocritamente de não se responsabilizar por eles, com a mesma resposta arrogante de Caim. A Deus que o sondava profundamente sobre onde estava seu irmão, ele retrucou perguntando por sua vez, se ele, “por acaso”, era responsável ou guarda da vida do seu irmão.

Cabe-nos uma profunda avaliação e discernimento.

Luciano Bernardi – Integrante da Ordem dos Franciscanos Menores Conventuais, da Comissão Pastoral da terra da Bahia  (CPT BA) e do Serviço Inter franciscano de Justiça, Paz e Integridade da Criação (SINFRAJUPE)

Gostou desse conteúdo? Compartilhe
Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp