A Comissão Pastoral da Terra Nordeste 2 divulga o balanço da questão agrária brasileira no ano de 2020, trazendo sua leitura sobre temas que marcaram a vida dos povos da terra, das águas e das florestas. Confira:
O campo que a pandemia encontrou
Quando chegou ao Brasil, no início de 2020, a pandemia do novo coronavírus encontrou um país marcado por um processo de retirada de direitos da classe trabalhadora e desmonte das políticas públicas e dos serviços públicos. O vírus, tratado como uma “gripezinha” pelo Presidente Jair Bolsonaro, avançou para o campo, agravando a desigualdade, a qual vem sendo enfrentada pelas famílias com luta pela terra e território, solidariedade e produção de alimentos saudáveis.
Seja por meio das medidas implementadas, seja por meio de declarações, o governo federal revelou não o negacionismo ou negligência diante da crise sanitária mundial. Revelou, por seu turno, uma política genocida, de desprezo à vida, sobretudo à vida dos/as mais empobrecidos/as e oprimidos/as.
Especialmente no campo, a resposta dada pelo mandato de Bolsonaro à pandemia não contemplou a realidade de escassez de serviços básicos como saúde, educação, moradia, saneamento básico e abastecimento de água vivida pelas populações camponesas. São povos indígenas, quilombolas, famílias assentadas, posseiras, pescadoras, ribeirinhas e assalariadas rurais que, além de enfrentarem essas dificuldades, sofrem ainda com a violência no campo e com a negação do direito à terra e ao território.
Diante da fragilidade, a pandemia atingiu comunidades vulneráveis, de difícil acesso, afastadas dos atendimentos de saúde e que veem cada vez mais sua renda diminuir, uma vez que as feiras livres e agroecológicas, espaços tradicionais de comercialização camponesa, mantiveram-se fechadas durante grande parte do ano. Soma-se a esse cenário a dificuldade de transporte, logística e de equipamentos necessários à proteção individual e comunitária. O descaso com a população do campo durante a pandemia trouxe consequências imprevisíveis: as perdas de vidas para o vírus, o agravamento da pobreza, o aumento da violência e dos conflitos.
Reforma Agrária e comunidades camponesas enfrentam a perversidade do governo
A política agrária conduzida pelo atual Presidente tem se mostrado a pior de todas: na contramão da Reforma Agrária, perversa contra as comunidades camponesas e sem qualquer diálogo com as organizações do campo. No segundo ano de seu mandato, Bolsonaro seguiu atuando conforme havia prometido em 2018 durante sua campanha presidencial. Nenhum território tradicional foi identificado, declarado ou homologado em 2020. Também não houve novas desapropriações de terras para a Reforma Agrária. Durante esse período, o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) homologou somente alguns processos de regularização fundiária antigos e acumulados, beneficiamento somente 5.409 famílias.
Na outra ponta, a demanda pela democratização do acesso à terra e pelo reconhecimento de territórios tradicionais no país segue alta. Estima-se que existam cerca de 120 mil famílias sem-terra em processo de luta, além de cerca de três mil comunidades quilombolas e quase mil territórios indígenas, os quais aguardam há anos a finalização de seus processos demarcatórios enquanto estão expostos a toda sorte de ameaças.
Para completar, o governo deu seguimento, com passos apressados, ao processo de desmonte e esvaziamento dos órgãos responsáveis pela pauta. Com 50 anos de existência, o Incra atravessa um dos priores momentos de sua história. Tendo seu orçamento diminuído a cada ano, a autarquia recebeu em 2020, em números absolutos, o valor de R$ 3,3 bilhões. Contudo, grande parte desse recurso foi destinada ao pagamento de precatórios, que são dívidas com latifundiários que conseguiram na justiça aumentar o valor das indenizações das terras desapropriadas em outros anos.
Em 2021, o quadro será mais grave. De acordo com o orçamento estipulado pelo governo federal, o Incra receberá 3,4 bilhões. Todavia, haverá um aumento de 22% em comparação a 2019 para o pagamento de precatórios. Os recursos destinados a créditos, melhorias de assentamentos, monitoramento de conflitos fundiários, reconhecimento de territórios quilombolas, por exemplo, sofrem cortes de até 90%. Tem-se, com isso, o abandono das atribuições e dos objetivos finalísticos da autarquia.
A situação levou movimentos populares, entidades do campo e partidos políticos a protocolarem, em dezembro, uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) junto ao Superior Tribunal Federal (STF). A petição trata de três pontos principais: a paralisação da Reforma Agrária; a grilagem de terras no país; e a criminalização de movimentos e organizações populares. As organizações solicitaram ao STF que “fossem reconhecidas e sanadas as graves lesões aos preceitos fundamentais da Constituição Brasileira praticadas por órgãos federais do Estado, decorrentes da paralisação da Reforma Agrária e da não destinação das terras públicas federais à essa finalidade”[1].
Porteiras abertas para o capital financeiro e o mercado internacional
A política destinada ao campo não diz respeito somente à paralização da Reforma Agrária e ao sucateamento de instituições responsáveis pela pauta. No atual governo, o elemento adicional é o desejo de retroceder nos direitos e nas conquistas consolidadas.
Isso pode ser visto em algumas medidas. Uma delas é a Instrução Normativa (IN) nº 09 de abril de 2020 da Fundação Nacional do Índio (Funai), que retirou obstáculos à certificação de imóveis privados sobrepostos a terras indígenas ainda não homologadas. Com a nova regra, esses imóveis podem receber uma declaração indicando que respeitam limites de terras indígenas, ainda que sobrepostos as áreas em processo de demarcação. Essa IN é objeto de ações judiciais que pedem sua suspensão e anulação em vários estados e foi considerada pelos movimentos indigenistas como oposta ao dever institucional da Funai, que é proteger os direitos e territórios dos povos indígenas.
Outro exemplo foi a meta estipulada pelo governo de entregar em 2020 cem mil títulos de terras a famílias assentadas da Reforma Agrária. A titulação é o instrumento que transfere o imóvel rural ao/à assentados/as em caráter definitivo. A medida diminui a responsabilidade do Estado com a política e abre espaço para o mercado de terras e para a reconcentração dessas nas mãos de latifundiários e de grandes empresas do agrohidronegócio. Isso porque não há no Brasil investimentos e apoios reais e efetivos para estimular e valorizar a agricultura camponesa e a agroecológica. Sem reconhecimento, sem apoio e investimentos para permanecer na terra, muitas famílias poderão sucumbir dando lugar às grandes empresas.
Mais uma ameaça em curso vem com a aprovação, no Senado, do Projeto de Lei (PL) nº2.963/2019, de autoria do Senador Irajá (PSD-TO). O PL, que agora segue para a Câmara dos/as Deputados/as, é uma das principais reivindicações políticas do grande capital no Brasil, uma vez que amplia as possibilidades de compra de terras por parte de estrangeiro/as. A legislação brasileira em vigor (Lei 5.709/1971) impõe um regime diferenciado ao/à estrangeiro/a – seja para pessoa física ou pessoa jurídica – que pretenda adquirir terras rurais no país, limitando a compra, inclusive para empresas brasileiras com controle acionário estrangeiro ou quando o beneficiário final das empresas for estrangeiro/a.
Contudo, o texto do novo PL consolida a possibilidade de aquisição e arrendamento rural de até um quarto (25%) da superfície dos municípios onde se situem. Há, ainda, a não vinculação dos imóveis rurais à implantação de projetos agrícolas, pecuários, industriais ou de colonização ligados aos seus objetivos estatutários, além da supressão da necessidade de aprovação ministerial prévia desses projetos de aquisição/arrendamento.
Todas essas medidas do governo vieram acompanhadas de um arcabouço simbólico que pretendeu legitimar a barbárie e a violência contra os povos do campo. Um dos efeitos mais imediatos desse esquema é a perversidade, a criminalização, a permissividade das violações cometidas pelo próprio Estado e pelo poder privado e, enfim, a morte. Em um ano marcado pela pandemia e pelo necessário isolamento social, a violência no campo não fez quarentena e mostrou a sua face mais cruel: não houve dia nem hora para ocorrer. O latifúndio e o agronegócio sentiram-se, de forma evidente, autorizados a atuar dessa maneira no campo.
A violência do latifúndio e do agrohidronegócio não fez quarentena
A crescente violência contra a ocupação e a posse nos últimos anos indica o avanço do capitalismo no campo brasileiro. Os números de 2020 confirmam esse movimento. No ano que se encerrou, a CPT registrou, em números parciais, 1.083 casos de violência contra a ocupação e a posse, envolvendo 130.137 famílias. Também foram registradas 178 invasões de territórios, atingindo 55.821 famílias. O número é bem maior do que o visto em 2019, quando foram contabilizadas pela CPT apenas 09 invasões.
Das áreas invadidas em 2020, 54,5% foram indígenas, 11,8% quilombolas e 11% de famílias posseiras. Somadas, essas categorias sociais concentraram 77,3% das invasões efetivadas pelo poder privado, indicando que as empresas capitalistas e o latifúndio não deram sossego aos povos que habitam seus territórios tradicionalmente.
O capitalismo também avançou sobre os bens da natureza. A água, cujo acesso é um direito humano essencial e universal, esteve no centro da disputa em 2020. De acordo com dados parciais da CPT, 199 conflitos pela água envolvendo 35.850 famílias foram identificados em 20202. Os maiores responsáveis por gerar esse tipo de conflito foram: mineração – envolvida em 43% dos casos -, grandes empresários, governo federal e hidrelétricas.
As populações ribeirinhas foram as que mais sofreram com a violência dos poderes estatal e privado, estando presente em 69 conflitos pela água, seguidas dos povos indígenas (39) e de comunidades pesqueiras (38). A maioria desses conflitos se concentrou no Sudeste do país, com a incidência de 99 casos, seguida da região Norte, com 50 ocorrências.
Se em tempo de pandemia o agronegócio e o latifúndio não ficaram em “em casa”, saindo para infernizar a vida dos povos do campo e da Mãe natureza; as organizações do campo, apesar das limitações impostas pelo momento, não pouparam esforços para se manter na disputa do campo brasileiro, seja terra, seja território. Foram registradas 17 ações de ocupações e retomadas em 2020, mobilizando 495 famílias. Parece pouco em relação aos anos anteriores, mas trata-se de uma vitória dentro do contexto em que vivemos.
Meio ambiente: passando a boiada
Durante reunião ministerial ocorrida em 22 de abril, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, falou em aproveitar, enquanto a atenção da imprensa estava voltada para a Covid-19, para “passar a boiada” da desregulamentação da política de ordenamento e controle ambiental. Com a declaração, o ministro revela o objetivo de desmontar a política ambiental lentamente instituída nos últimos 40 anos. O ministro assume o papel de principal adversário da sustentabilidade socioambiental, da conservação da biodiversidade e da garantia dos territórios de povos e comunidades tradicionais no Brasil.
Durante 2020, o governo publicou 195 atos de flexibilização de leis ambientais no Diário Oficial somente entre os meses de março a maio, contra 16 no mesmo período de 2019. A situação só não foi pior por causa da atuação de membros do Congresso e do Poder Judiciário que foram provocados pela sociedade civil em conjunto com partidos de oposição.
Salles também admitiu sem qualquer pudor que tinha como objetivo restringir a eficácia de dispositivos da Lei da Mata Atlântica, os quais exigem a recuperação ambiental de áreas ilegalmente desmatadas antes de 1990. A intenção seria reduzir o número de áreas a serem regularizadas por grandes proprietários, que as exploram ilegalmente e pressionam o governo a legalizar o desmatamento praticado. Com essa medida, o responsável pelo ministério mais uma vez atua contra o meio ambiente, ao pretender anistiar multas, acabar com embargos e impedir o reflorestamento de regiões degradadas, tudo em sintonia com os discursos e práticas do próprio Presidente da República.
O ano em que o Brasil pegou fogo – O fogo e o desmatamento foram utilizados como instrumentos para abertura da fronteira agrícola, preparando o campo para a boiada passar. O fato demonstrou bem os dois lados que se completam no processo da acumulação capitalista no campo brasileiro: o latifúndio e o agronegócio. Na Amazônia, até setembro de 2020, foram registrados 89.604 focos de incêndio. Número maior que o do ano anterior.
No Cerrado, foram registrados 56.000 focos de incêndio. Já no Pantanal, seguimos assistindo à natureza gritar e em chamas. De acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), houve um aumento de quase 200% em queimadas no bioma entre 2019 e 2020. O bioma Caatinga, apesar registrar um número significativamente menor em relação a outros biomas, também corre riscos e está severamente ameaçado, sendo o incêndio criminoso um dos principais vetores de sua degradação
O fogo teve endereço certo: os territórios tradicionais. Cerca de 60% de terras indígenas foram atingidas por mais de cem mil focos de incêndio, segundo levantamento da Global Forest Watch. O agro-é-fogo. O aumento dessas queimadas é reflexo do desmonte de estruturas públicas voltadas para combater o desmatamento e os incêndios nos biomas brasileiros. É reflexo da redução das fiscalizações, dos investimentos em prevenção, das autuações e das aplicações de multas. O modus operandi do Governo foi incentivar, com isso, ações criminosas por parte do latifúndio e do agronegócio.
Eleições municipais e a luta pela terra
O ano também foi marcado pelas eleições municipais, quando dezenas de milhões de brasileiros e brasileiras foram às urnas eleger seus/suas candidatos/as a/à prefeito/a, vice-prefeito/a e vereador/a. Em geral, elegeram-se membros de partidos que defendem pautas conservadoras, de retirada de direitos da classe trabalhadora, do campesinato e dos povos originários. Entretanto, setores oprimidos e excluídos aumentaram seu espaço na política partidária. Negras e negros, mulheres e LGBTIs ampliaram sua participação no comando das prefeituras e no número de cadeiras nas câmaras de vereadores/as. Junto a esses grupos, algumas lideranças indígenas, quilombolas, camponesas e sindicais rurais também se inseriram.
Também ganha espaço na política partidária municipal o debate sobre a agroecologia. Ao todo, 47 prefeitos e 125 vereadores, conforme levantamento da Articulação Nacional da Agroecologia (ANA) assinaram a carta-compromisso Agroecologia nas Eleições: Propostas de Políticas de Apoio à Agricultura Familiar e à Agroecologia e de Promoção da Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional em Nosso Município.
Apesar da mobilização aparente em torno das eleições, destaca-se o dado do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o qual revela que a soma de abstenções, nulos e brancos passou de 30%, sendo esse o maior índice em três décadas. Apesar de vivermos tempos de limitações e pandemia, o número pode transparecer um cansaço e uma desesperança diante de um modelo de organização política distante da vida do povo. Destaca-se também o grande desafio de mandatos oriundos da base, das comunidades e dos povos tradicionais, que atuarão dentro das estruturas de um Estado Neoliberal e também Colonial. A única resposta possível deve ser reafirmada: a transformação vem dos de baixo; e não haverá democracia enquanto a terra, a água, os bens da natureza, o fruto do trabalho e a justiça não forem democratizados.
Solidariedade camponesa, solidariedade política
Se, por um lado, o ano de 2020 foi atípico em razão da pandemia da Covid-19, que impôs uma realidade ainda mais dura para os setores oprimidos; por outro, foi marcado pela solidariedade de classe e pela importância da Reforma Agrária e da agroecologia.
Seguindo esse sentimento de zelo pela vida, ações solidárias foram realizadas de norte a sul do país. Milhares de toneladas de alimentos foram doados por comunidades da Reforma agrária, tradicionais, posseiras e sem-terras. Essas ações confirmam que a agricultura camponesa não apenas põe alimento na mesa do povo brasileiro, mas é um verdadeiro sinal de esperança e de cuidado com a vida e com a Mãe Terra. Cuidar da natureza é cuidar do planeta, como diz o Papa Francisco na Laudato Si: “cuidar da Casa comum é também é cuidar da Causa comum”.
A partilha de alimentos neste tempo de pandemia nos faz entender que a solidariedade humana e social é uma opção ética com a qual devemos nos comprometer. Essa é uma decisão existencial, espiritual e política. É viver a espiritualidade como “solidariedade política”, o que nos leva não só a curar com caridade as pessoas feridas e necessitadas de hoje, mas, também, a trabalhar por uma mudança global de sociedade, lutando contra as causas estruturais da pobreza, contra o “descarte” de pessoas e de alimentos, contra a desigualdade, contra a falta de trabalho, de casa e de terra. É urgente dar prioridade à vida, colocá-la acima do dinheiro e da apropriação individualista dos bens.
O fruto da terra foi partilhado: dos povos empobrecidos e injustiçados no campo para os povos empobrecidos e injustiçados na cidade. Uma aliança pela vida, pela partilha e solidariedade foi formada e ela nos aponta para onde a esperança caminha, obstinada e resistente.
[1] https://mst.org.br/2020/12/09/organizacoes-populares-realizam-ato-e-protocolam-adpf-em-defesa-da-reforma-agraria/