cropped-logo-cpt-1.png
Acesse o Caderno de Conflitos no Campo Brasil 2023

CPT BAHIA

Agroecologia no quilombo de Lage dos Negros (BA): Uma experiência vivida por Roseli

Localizada no município de Campo Formoso (BA), região do Semiárido com bioma Caatinga, que é unicamente brasileira e abriga rica biodiversidade, a comunidade quilombola de Lage dos Negros abriga mais de 720 famílias e preserva práticas sociais e culturais próprias. Neste ambiente vive Roseli Araújo, uma jovem agricultora e técnica agrícola, formada na Escola Família Agrícola de Antonio Gonçalves – EFAG. Com atualmente 20 anos, ela é casada, tem uma filha pequena e desenvolve sistemas agroecológicos, onde planta e cria na propriedade da família, que se localiza na comunidade Patos III, no mesmo território. Intitulada Fazenda Morro, tem uma área de 100 hectares e está dividida entre os pais, ela e seus/suas dez irmãos/ãs, fazendo a gestão e as atividades agrícolas em conjunto.

Conheci Roseli no projeto Ater Quilombola, onde continua trabalhando até hoje, sempre demonstrou ser uma mulher realizada em poder fazer diferença positiva na vida de muita gente, além dos benefícios ambientais. Seus conhecimentos foram herdados na vivência com a família, outros encontrados por meio de pesquisas na internet e  importante aprendizado na EFAG, possibilitando aplicar tecnologias e métodos culturais-político-educativos da mais alta relevância, sendo hoje fundamentais para a sustentabilidade do sistema, para a reprodução familiar e para ampliar estes processos na sua comunidade.

Apesar de ser comum a sub-representação das mulheres nos espaços de poder e decisão, ela e algumas mulheres da sua família estão à frente da Associação Comunitária Agropastoril e Quilombola do Povoado de Lage dos Negros, que discute os desafios na luta pela agroecologia, por igualdade racial e de gênero, entre outros. Dentre as conquistas, ela cita que em 2012 esta associação forneceu para o programa PNAE, doce e geleia de umbu, de manga, de goiaba, sequilho, bolo, avoador e tapioca, favorecendo tanto as famílias como o reconhecimento produtivo do território.

Em Entrevista a Revista Propost, Emília que é diretora da FASE, fala da contribuição das mulheres na diversificação dos produtos, com importância tanto do ponto de vista da segurança alimentar como das possibilidades de geração de renda; continua dizendo que as novas práticas, novos valores e também novas propostas de políticas acontecem nos locais onde as mulheres se organizam de forma autônoma e participam das dinâmicas sociais, criando condições para sua participação ativa nas decisões sobre o planejamento agrícola. A participação das mulheres nos projetos não está dada, é resultado de uma conquista e está associada à sua capacidade organizativa (PACHECO, 2005).

Roseli Araújo

Na propriedade de Roseli, assim como na maior parte do território, as roças e os quintais produtivos são providos de uma diversidade de plantio na mesma área, tendo as hortaliças, maracujá, melancia junto com o feijão, andu, milho, maxixe, pimenta, tomate cereja, batata doce, abobora e os cultivos permanentes como as frutíferas: goiaba, manga, carambola, acerola, seriguela, banana, laranja, abacate, limão, além da palma forrageira, mamona, plantas medicinais e outras, também integram a produção das espécies vegetais com os pequenos animais como galinha, porcos, caprinos e ovinos. Comercializam na feira local, o que sobra do consumo familiar e como outra fonte de renda desfrutam da aposentadoria, Bolsa Família, Garantia Safra, PRONAF e outros programas governamentais.

Sendo mais específica, observei que a família dela planta o sisal utilizando a fibra para vender e agregam valor, aproveitando seu resíduo (mucilagem) como alternativa de alimentação animal, assim como o mandacaru e outras plantas da caatinga que são transformadas em fenagem para usar na época da seca; produzem defensivos ecológicos como a tintura de iodo com casca de angico, caju e outras plantas que ajudam na cicatrização dos ferimentos nos animais e também o biofertilizante e a compostagem, além do sal mineral com alho e catingueira para os caprinos/ovinos, que serve como suplemento e prevenção da verminose, mosca-dos-chifres, carrapatos e outras doenças. Constantemente higienizam as instalações e procuram manter bons reprodutores para melhorar o rebanho; fazem o manejo das abelhas que ficam na serra, de onde coletam mel e desenvolvem outras tecnologias sociais como a enxertia para o melhoramento vegetal, a irrigação localizada, o milho hidropônico para alimentação animal, o filtro biológico para reuso da água cinza e na roça possuem uma cisterna de telhado fornecida por uma instituição regional, para captar água da chuva. Enfim, convivem no sertão aplicando e se apropriando de tecnologias adequadas ao uso e manejo dos seus bens naturais disponíveis no território-abrigo.

Este comportamento de Roseli surge da sua sensibilidade feminina e da consciência, adquirida com as vivências que teve, além do seu compromisso ético com o meio ambiente e com seu povo. Conduta como esta, é de grande importância, sobretudo no atual momento em que a promoção do autoconsumo familiar possibilita o acesso direto aos alimentos. Outro fator observado é a solidariedade entre as famílias, onde há o costume de dar e trocar produtos, e isso também contribui imensamente para o acesso mais diversificado a alimentação, garantindo mais saúde e consequentemente mais imunidade para enfrentar uma pandemia, por exemplo. 

Esta experiência se parece com tantas outras existentes nos quilombos, que é uma agricultura socialmente justa, economicamente viável e ambientalmente sustentável, contribuindo para a preservação da saúde das presentes e futuras gerações. Contradizendo a isso, existem no território agricultores que usam agrotóxicos e cultivam amplas áreas de monocultivo, imitando o modelo do agronegócio, muitas vezes estimulados pelo próprio Estado, cuja liberação de alguns créditos vem atrelada a pacotes tecnológicos maléficos tanto para as populações, quanto aos ecossistemas.

Caracterizado por este modelo, o desmatamento vem causando diminuição das florestas naturais, aproximando as pessoas cada vez mais dos patógenos causadores de enfermidades transmitidas por animais, representando uma importante ameaça à saúde humana. Também o uso de agrotóxicos é um dos responsáveis pelo adoecimento da população, onde muitos entram no grupo de risco, aumentando as chances de complicação pelas pandemias, como é o caso da Covid-19 que, atualmente, ameaça a existência humana, sobretudo, as populações mais vulneráveis das periferias das cidades, das comunidades tradicionais e os povos originários.

Clara e Miguel falam no seu artigo, publicado no Jornal Brasil de Fato, que a pandemia de coronavírus, como nunca antes, nos revela a natureza sistêmica do nosso mundo: a saúde humana, animal e ecológica estão estreitamente vinculadas. Sem dúvida, a Covid-19 é um chamado de atenção para a humanidade repensar o modo de desenvolvimento capitalista, altamente consumista, e as formas de se relacionar com a natureza. Os tempos exigem uma resposta  integral à crise atual, onde se abordam as causas profundas por trás da já aparente fragilidade e vulnerabilidade sócio ecológica do nosso mundo.

Neste sentido, a agroecologia representa um exemplo inspirador de uma abordagem sistêmica poderosa e, neste momento da pandemia de coronavírus,  a agroecologia pode nos ajudar a explorar os vínculos entre agricultura e saúde, demonstrando que a maneira como a agricultura é praticada, pode por um lado promover a saúde ou, pelo contrário, se for mal praticada como na agricultura industrial, pode causar grandes riscos à esta. (NICHOLLS, C.I. e ALTIERI, M. A, 2020).

Assim, faz-se necessário fortalecer a luta pela transição agroecológica, com ações de organização popular, no meio rural e urbano, incluindo o movimento das mulheres por autonomias e acesso aos seus direitos, e assim fazer a transformação social. Espera-se que a atual crise provocada pelo Covid-19, acenda nas pessoas a vontade de participar das iniciativas que visam a sustentabilidade do planeta, com impactos positivos para o ser humano, que co-habita esta casa chamada Terra.

Referências:

PACHECO, M. E. Entrevista: construindo um dialogo: feminismo e agroecologia, Revista Proposta nº 103/104, FASE. São Paulo. Disponível em https://fase.org.br/pt/informe-se/noticias, 12/2005 .

NICHOLLS, C.I. e ALTIERI, M. A. Artigo: a agroecologia em tempos de covid-19, , Abril de 2020, São Paulo (SP). Disponível em
https://www.brasildefato.com.br .

Nildnea Andrade de Castro, CPT Ampliada do Centro-Norte, Diocese de Bonfim – Bahia. Engenheira agrônoma, especialista em Desenvolvimento Sustentável no Semiárido, com ênfase em recursos hídricos; especialista em Ciências Ambientais e presidente da Associação Regional das Organizações Sociais do Semiárido Baiano – Umbuzeiro.

Gostou desse conteúdo? Compartilhe
Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp